Nadar quase quatro quilómetros, pedalar outros 180 e terminar a correr uma maratona não é para qualquer um, mas há quem o faça juntamente com o irmão, com paralisia cerebral, para demonstrar que o desporto é para todos.
A história dos dois irmãos, Miguel e Pedro Ferreira Pinto, no mundo do triatlo começou por acaso, depois de o irmão mais velho ter feito uma lesão a praticar crossfit e de uma amiga lhes ter mostrado um vídeo de dois irmãos norte-americanos, um deles com paralisia cerebral, que tinham conseguido o apuramento para o campeonato do mundo de Iron Man (Homem de Ferro).
O Pedro olhou para mim, com um olhar muito característico dele, como quem diz ‘eu também quero’, e eu na altura disse-lhe que ele era louco porque eu nem sozinho conseguia fazer metade de um Iron Man quanto mais fazer um Iron Man com ele”, contou Miguel Ferreira Pinto à Lusa.
O Iron Man é a variante de longa distância do triatlo, uma modalidade que inclui três desportos: natação, ciclismo de estrada e atletismo, em segmentos seguidos e sem interrupções.
Numa prova de triatlo clássica, a distância olímpica, que é a que serve de referência, inclui uma prova de 1.500 metros de natação, seguida de 40 quilómetros de ciclismo e 10 quilómetros de corrida, enquanto a prova Iron Man compreende 3,8 quilómetros a nadar, 180 quilómetros a pedalar e termina com uma corrida de 42,2 quilómetros.
A primeira prova que fizeram juntos “correu bem” e daí por 15 dias estavam a fazer o primeiro triatlo de distância curta, altura em que perceberam que precisavam de um nome à altura e em que nasce a dupla “Iron Brothers”, em 2018.
As necessárias adaptações passam por nos segmentos de estrada, ciclismo e corrida, o Miguel puxar ou empurrar a cadeira de rodas especial para competição que transporta o Pedro e no segmento de natação o Pedro ser transportado numa canoa rebocada pelo Miguel.
“Para mim isto era desporto, mas para o Pedro era uma oportunidade de ajudar a Associação de Paralisia Cerebral de Lisboa”, explicou Miguel, ao que o Pedro acrescentou que a associação é a sua “segunda casa”.
O Pedro toda a vida tentou ajudar a APCL ou porque faltava alguma coisa para o desporto adaptado ou algum equipamento e o Pedro chateava o nosso pai, os amigos do pai, toda a gente que pudesse para arranjar o dinheiro para comprar as coisas e o Pedro viu aqui uma oportunidade de fazer isso na primeira pessoa”, adiantou Miguel Ferreira Pinto.
Se no início começaram com uma prova pequena, em que nem bicicleta tinham, e fizeram só a parte da corrida e da natação, rapidamente perceberam que precisavam do equipamento certo para levar a ideia para a frente, tendo conseguido apoios de marcas, arranjado treinador e equipa de treinos.
“Nunca se tinha feito o que nós fizemos cá em Portugal. Fizemos em Oeiras e correu muito bem, foi muito divertido, começámos a pensar no ‘half Iron Man’ de Cascais”, contou Miguel, acrescentando que com a inscrição na prova vieram os treinos de maior intensidade e de maior duração, mas também a diversão que ambos tiravam de tudo isso.
Apesar da diversão, Pedro admite que os treinos são difíceis, ao que Miguel pergunta ao irmão de que parte do treino ele gosta mais.
“Da água”, responde.
“Da natação aqui em casa ou comigo”, questiona Miguel.
“Aqui em casa”.
“Ai gostas mais do que comigo?! Vais ver, vou mandar-te água para dentro da canoa, na próxima prova”, brinca Miguel, demonstrando a cumplicidade entre irmãos.
Segundo Miguel, os treinos semanais rondam entre 15 a 25 horas, dependendo da fase da época, já que quanto mais se aproxima a data de uma prova, maior é a carga de treinos, mas tudo isto só faz sentido a dois, uma realidade da vida familiar que transpuseram para o desporto.
Isto só faz sentido assim. Para mim é uma coisa que eu faço como desporto, mas para o Pedro é muito mais do que desporto, é uma oportunidade de falar de paralisia cerebral, é uma oportunidade de trazer para a ordem do dia um tema que foi esquecido. O desporto acaba por ser um megafone para uma causa muito maior”, sublinhou.
Defendeu, por isso, que é um direito de todos poderem praticar desporto, mesmo que haja muitas barreiras no acesso. Seja as barreiras financeiras, porque os equipamentos são caros, seja porque as pessoas com paralisia cerebral precisam de alguém que as acompanhe.
“Mas merecem e precisam de pertencer ao desporto porque o desporto é para todos, o desporto é a coisa mais abrangente que existe“, defendeu, acrescentando que o papel dos dois irmãos passa também por despertar consciências entre a comunidade do desporto ou os organizadores de provas — que não raras vezes recusam a participação de cadeiras de rodas — para que as pessoas como o Pedro possam participar.
De tanto insistirem deixaram de ser caso único em Portugal e não só já há mais uma dupla em que um dos atletas tem paralisia cerebral, como já têm também uma equipa de estafetas.
Com a pandemia veio uma paragem forçada, mas para não estarem totalmente parados organizaram uma prova inclusiva na distância entre Troia e Sagres (cerca de 200 quilómetros), para a qual desafiaram toda a comunidade de triatletas portugueses para pedalar.
Já em 2021, “chegou a altura de justificar o nome Iron Brothers” e abraçaram o primeiro Iron Man completo, que decorreu em Coimbra.
“Ao fim de 16 horas e 27 [minutos], tornámo-nos na primeira dupla europeia a concluir a prova“, adiantou Miguel, que recordou como a prova lhe custou.
O Pedro não se queixa e vai a puxar por mim o tempo todo e quando percebe que eu estou mal, que estou a sofrer, começa-me a falar de memórias de festas, de jantares, de almoços, de coisas que me tirem a cabeça dali. É incrível fazermos isto a dois”, sublinhou.
Para ajudar outras famílias com pessoas com paralisia cerebral, os dois irmãos vão começar um podcast mensal a partir de junho, para o qual vão convidar pessoas conhecidas para pedalarem ao seu lado e, em direto, angariar dinheiro para apoiar alguém previamente escolhido pela Associação de Paralisia Cerebral de Lisboa.
Agora, estão de olhos postos no Iron Man de Hamburgo, na Alemanha, em junho, tendo já definido que o segundo semestre do ano será preenchido a “fazer coisas para trazer pessoas com paralisia cerebral ao desporto”, provavelmente a fazer provas de 10 quilómetros.
Até agora conseguiram verbas para angariar seis cadeiras de rodas, mas a expectativa é de até ao final do ano conseguirem dez, indo depois desafiar os amigos do triatlo e das corridas para “virem empurrar essas cadeiras” nas provas.