Nascida em 1978, Nana Ekvtimishvili é uma escritora e realizadora georgiana. Onde as peras caem (2015) é o seu primeiro romance, tendo chegado agora a Portugal. A autora surpreende pela sua capacidade de incisão, por uma contenção permanente que tem impacto por abdicar de enfeites.

Aqui, o cenário é a Geórgia recém-independente. Nos arredores de Tbilisi, há um palacete, casa de uma instituição de acolhimento. Ali vivem órfãos e crianças com algum tipo de deficiência mental, razão pela qual é conhecida como a Escola dos Idiotas. O nome parece particularmente cruel, e é também desfasado, já que parte dos que lá habitam chegaram lá apenas por serem crianças abandonadas pelos pais. E o cenário é de abuso: os professores são peritos em colocar as crianças em situações de negligência, e elas mesmas crescem pela violência que a falta de empatia provoca.

É daqui que sai a personagem principal, Lela, que na verdade não sai. Pelo contrário, ao chegar aos 18 anos, com idade para deixar o estabelecimento, opta por ficar. Vive lá há tanto tempo que não se lembra da vida antes daquilo. Aceita, assim, um trabalho naquele lugar que odeia, e não o faz sem malícia. É desta forma que planeia vingar-se do professor de História. Só então poderá virar as costas, ter outra vida.


Título: Onde as peras caem
Autora: Nana Ekvtimishvili
Tradução: Maria do Carmo Figueira
Editora: D. Quixote
Páginas: 160

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O fundo de tudo isto é a forma como um grupo de jovens criados em negligência se defendem do mundo que conhecem. Tal não passa, contudo, por romantismo, já que é também com violência que aplacam a negligência. Prova disso é uma descrição tão contundente que até dói:

A partida de certas crianças marcou o fim de uma tradição brutal, um “jogo” que Lela nunca teve de jogar. O simples facto de a ele ter assistido deixou-a aterrorizada. (…) As crianças mais velhas agarravam uma rapariga nova ou uma adolescente, arrastavam-na para o lugar das pereiras e entregavam-na a um rapaz libidinoso, que a empurrava para o chão e depois a violava, enquanto os outros, tanto rapazes como raparigas, a agarravam pelos braços e pelas pernas.” (p. 57)

É aqui, claro, que apanhamos o título do romance. Pode parecer pouco atractivo, e é, já que só ganha significado depois da leitura, mas a partir daí remete o leitor para uma cena que é operante em todos os pontos da narrativa. Com estas frases, depuradíssimas, Ekvtimishvili traça um cenário. Numa só imagem, vemos toda a negligência abatida sobre aquelas crianças, e também a banalização da indulgência, a capacidade descomprometida de fazer mal ao outro. Ou, como é também invariável, à outra. São as meninas que são instrumentalizadas para o desejo dos rapazes, e não é de somenos notar que até outras meninas participam nessa subjugação, nessa humilhação. Sem directrizes morais, o mal banaliza-se ali. A autora, logo no parágrafo adiante, consegue densificar o horror:

Ver aquela rapariga ali deitada horrorizou Lela: as pernas abertas, os arranhões no rosto, o sangue… Quando o rapaz acabava, levantava-se e as crianças voltavam para o recreio, apra continuarem as suas brincadeiras, deixando a rapariga ali, deitada no chão. Depois também ela se levantava, ajeitava a roupa e passava alguns minutos sozinha, antes de se juntar às outras e continuar a fazer a sua vida como dantes.” (p. 58)

Em meia dúzia de frases, traça-se o cenário, e é esse o grande mérito de Ekvtimishvili. Nunca cede ao sentimentalismo, e é isso o mais agreste. Não precisa de explicar ou marcar posição: dá uma imagem, o leitor vê-a, e dentro dessa imagem há conflitos. A criança é violada, cala-se uns minutos, e a seguir brinca. Não há tempo para processar a violação e o horror, porque o horror já faz parte. Existe a dor física, e contra esta não há argumentos, mas a outra mói e aceita-se, constitui em silêncio. Aceita-se o inaceitável, não se pede perdão ao imperdoável porque o sistema de regras não é esse.

Com isto, o romance não fica dependente dos fios da narrativa, da forma como a acção se tece, já que os seus pontos mais fortes são os da construção das personagens, e o que mais interessa ao leitor é seguir a forma como interagem com as outras. Se, por um lado, a aparente indiferença com que as crianças vêem o que se passa no lugar das pereiras aponta para um endurecimento que se segura em negligência e falta de empatia a roçar a psicopatia, por outro o olhar de Lela permite uma defesa perante o que se passava ali. A vingança, ou a sua procura, sabem a hipótese de redenção, de dignidade. Lela é apresentada como estóica e justiceira, misturando zanga e rancor com uma luz de esperança.

Em pano de fundo, e porque se trata da Geórgia pós-independência, temos sempre a mudança social e o país pós-comunismo. Pelo olhar de Lela, o leitor vai vendo a mudança de atitudes. O romance é curto, não porque o que lá está seja simples, mas porque Ekvtimishvili nos deu uma prosa que nunca deixou de ser enxuta.

A autora escreve segundo o antigo acordo ortográfico