Durante uma guerra, há lugar para o absurdo no campo de batalha e fora dele. O realizador Sergei Loznitsa, nascido na ex-URSS e criado na Ucrânia, autor de títulos de ficção e de documentários como “A Minha Alegria”, “A Praça”, “Funeral de Estado” ou “Babi Yar. Context”, e fervoroso defensor da causa ucraniana, por palavras, atos e filmes, foi recentemente expulso da Academia Ucraniana de Cinema. O seu pecado: ter feito a distinção entre o regime de Vladimir Putin e os artistas e a cultura da Rússia, falado em prol dos cineastas e dos artistas russos e criticado a exclusão daqueles dos festivais de cinema de todo o mundo. “Sou contra o boicote dos meus colegas”, afirmou.

A eliminação de Loznitsa da Academia Ucraniana de Cinema foi justificada pela sua “insuficiente lealdade para com o seu país” e por “cosmopolitismo”, frases e expressões que recordam os tempos dos julgamentos de dissidentes e das purgas comunistas na extinta URSS. Ora a lealdade de Loznitsa agora posta em dúvida pelos seus compatriotas e colegas pode ser confirmada em filmes como o documentário “A Praça” (2014), sobre a sublevação popular contra o presidente pró-russo Viktor Yanukovych e os acontecimentos da Praça Maidan; ou em “Donbass”, rodado em 2018 e que só agora se estreia em Portugal, mas está mais atual que nunca.

[Veja o “trailer” de “Donbass”:]

Organizado por episódios (vários deles referem-se a factos reais e são inspirados por vídeos postados no YouTube), com uma estrutura circular e personagens que se vão sucedendo de “sketch” para “sketch”, como numa corrida de estafetas, “Donbass” passa-se na região separatista homónima da Ucrânia, na bacia do Don, onde se localizam as auto-proclamadas repúblicas pró-russas de Donetsk e Lugansk. Desde 2014, após o triunfo do movimento Euromaidan e a subida ao poder do governo de Vladimir Zelensky, que ali se enfrentam forças pró-russas e pró-ucranianas, confrontos esses que ainda antes da invasão russa da Ucrânia tinham já causado muitos milhares de mortos e muita destruição, e representavam até há pouco uma guerra praticamente menosprezada pelo Ocidente.

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Recorrendo ora à comédia negra ou grotesca e à sátira de contornos absurdos, ora a um registo mais realista e documental, Sergei Loznitsa passa em revista as ações e práticas arbitrárias, intimidatórias ou abertamente cruéis das forças pró-russas, e denuncia a fabricação e encenação de notícias e acontecimentos pelos russos para fins de propaganda (o filme começa e acaba com duas dessas montagens). Estão lá as humilhações, a violência, os comportamentos prepotentes (o “sketch” da “requisição” do carro a um cidadão), o discurso justificativo da guerra com a perseguição aos “nazis” e aos “fascistas”, a manipulação e intimidação dos jornalistas, o calvário dos civis, os abrigos precários e sobrelotados, a informação falsa. “Donbass” podia perfeitamente ter sido rodado na semana passada.  

[Veja uma entrevista com Sergei  Loznitsa:]

A razão que assiste a Loznitsa e àqueles que ele defende não isenta “Donbass” de críticas, no entanto. O tom de parte do filme é muito ilustrativo e são várias as vezes em que o realizador tomba num histrionismo e num burlesco sub-Kusturica (ver toda a estridente sequência do casamento), e na ridicularização ou diabolização de todos os que não são anti-russos. As agressões e prepotências de Kiev sobre as minorias russófonas locais, bem como a corrupção e a arrogância das autoridades ucranianas, passam em branca nuvem, e a sequência final é de tal forma inverosímil, que funciona como o reverso da mais primária propaganda do Kremlin.

“Donbass” não precisava de ser tão demonstrativo, nem de recorrer ao mesmo esquematismo que é apontado ao inimigo. Mas mais do que tudo, perante um filme como este, a expulsão de Sergei Loznitsa da Academia Ucraniana de Cinema mostra que, numa guerra, o absurdo, a injustiça e a estupidez não são exclusivo só de um dos lados nela envolvidos.