Lê-se por aí muita imbecilidade, mas a maior de todas é aquela ideia de que a saudade é uma coisa que só existe em Portugal, que só acontece aos portugueses, e que só tem palavra em português. A Saudade, a baía de Luanda, a Amália, o mar imenso, a melancolia com cheiro a sardinha, os brandos costumes, um rapaz moreno à janela com olhos de carneiro mal morto a pensar na prima casada com os Verdes Anos a tocar em fundo. Mas como qualquer imbecilidade tem uma explicação, e neste caso é uma confusão entre palavras parecidas: é que a coisa que só acontece aos portugueses, que só existe em Portugal, e que só tem palavra em português não é saudade, é saudades. Saudades plural. Ter saudades. Estar com saudades. Muitas. Imensas. Uma fome de sede na barriga, ah c”#$#$”#$ que saudades que eu tinha desta m”#”$. Saudades é coisa de que só se tem consciência de que se tinha quando já não se está a ter. É, por isso, o exato contrário da saudade. Saudade é kierkgardiano, saudades é hegeliano.

É isso que se passa com o Palácio, como com o Lopes, que era um Osteopata em Santarém, não sei se tem maiúscula, mas tinha pata, e sempre que ia à pata dele pensava nisso mesmo, que era mesmo aquilo que estava a faltar às minhas costas. Saudades plural são também as dela, de cada vez que decide voltar. No Palácio a comida é irregular – o pilim frito costuma ser muito bom, sem falhas, a batata frita é sempre boa, verdadeira, a salada com azeite de sabor acentuado, os arrozes secos e honestos, a mousse caseira e cremosa, o flan servido a preceito, com garfo e colher. E são estes pormenores de que temos saudades, saudades de ser tratados por quem sabe que flan pede garfo e colher, nem o utilitarismo de colher-só, porque não há nada que a colher faça que o garfo não faça, nem o desleixo do garfo-só a deixar o caramelo líquido a escorrer por todo o lado antes de chegar à boca (ela também era perita em caramelos plural, um universo de pormenor).

O marisco está em destaque na casa mas há outros atrativos, como o flan servido a preceito, com garfo e colher. © Palácio

No Palácio há ritmo e preceito, há pormenores. E com isto da idade, apesar de não fazer a medicação completa, começamos cada vez mais a ligar aos pormenores das coisas, e da coisa, mais do que à própria coisa até. Há uma grande sabedoria nisto de deixar de ver a coisa como objeto, como programa normativo do seu criador, mas dela escolher partes, detalhes, lampejos. Um amigo, que entretanto já morreu, dizia que, nos últimos anos de casamento, não era a mulher, era as mãos da mulher que, mesmo já sem lhe tocarem, o agarravam ali. Tinha ainda ideias de mudar para uma segunda mão, mas a Covid-19 teve outras ideias. Há no Palácio alguma irregularidade. E talvez aquelas sapateiras cozidas na vitrine, empilhadas num tétris quase em game over, não garantam a frescura constante do material, sobretudo mais para o fim do dia; as torradas com manteiga nem sempre no ponto de dureza ideal; a polme dos filetes não agrada a todas as bocas, sobretudo às mais esquisitas.

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Há ali muito preceito. E se na vida moderna falta pormenor, preceito é coisa que nem se fala (ela tinha muito pormenor, algum preceito). O excesso de comida é enviado para casa, as caixas envolvidas em papel vegetal e atadas com um cordel; a ementa diz no canto superior esquerdo, escrito à mão, estimados clientes || bom apetite || obrigado || Só isto. Só o que importa, mas tudo o que importa. Sem pontos de exclamação, verdadeira epidemia do século 21, a começar ali por volta de 2010. No Palácio há ritmo na imperial, reposta quando já estávamos com saudades sem saber que estávamos com saudades. Talvez esse ritmo ajude na indulgência, mas não é só isso. É o pormenor. E o preceito. O tempo certo das coisas. Há sítios na vida das pessoas, e pessoas na vida dos sítios, que estão sempre a reaparecer, sobretudo quando já estávamos cheios de saudades, mas ainda não sabíamos bem que estávamos. Coisas que sabem o ritmo das coisas. O carrocel das saudades. O Palácio é um desses sítios, e o Osteopata Lopes. E ela.

Palácio, Rua Prior do Crato 142, Lisboa. Das 12h00 às 00h00. Encerra à quinta-feira.

Lourenço Viegas é geólogo aposentado, tem duas filhas, três netos, quatro casamentos e qualquer dia um funeral porque já passa dos setenta e nem sempre faz a medicação completa. Nasceu em Lourenço Marques, vive no Ribatejo e durante a troika viveu no estrangeiro. Quando já só pensava noutras coisas, voltaram a pedir-lhe para escrever sobre estas coisas para o Experimentador Implacável.