O Cabo da Roca fica na região da Grande Lisboa, no concelho de Sintra e tem o privilégio de ser o ponto mais ocidental da Europa continental, ‘onde a terra se acaba e o mar começa’, como escreveu o poeta Luís de Camões. No campeonato das bucket lists (expressão inglesa que designa coisas para se fazer na vida pelo menos uma vez), este facto torna as coisas mais difíceis para outro cabo famoso na região da grande Lisboa, o Cabo Espichel, no concelho de Sesimbra, que dificilmente fará parte de uma bucket list comum, a não ser que se seja fã de Madonna e se queira visitar os locais onde ela gravou videoclips — em “Dark Ballet”, um dos temas do álbum “Madame X”, a encenação de um rito tipo “Guerra dos Tronos” foi filmada no terreiro do santuário do Espichel.

Vivemos um pouco a mania dos sítios especiais, aqueles onde dizemos sentir qualquer coisa que não sabemos explicar e o Cabo Espichel é um desses locais, não tenham dúvida. Neste particular nem é só a sensação que é difícil de explicar, é o próprio Cabo Espichel. Se forem como eu, quando vos falam de quelque chose, criam uma imagem na cabeça quase instantemente a partir das palavras. Cabo Espichel sempre me sugeriu um lugar ventoso junto do mar, onde se pode roer uma laranja na falésia, como na canção do Rui Veloso, mas a realidade é um pouco mais complexa. É quase impossível dizer o que é ao certo o Cabo Espichel, porque é tantas coisas ao mesmo tempo, promontório, santuário, farol, igreja, local de lendas, sítio arqueológico, parque de pegadas de dinossauros… Além da pista Madonna, valerá então a pena por lá passar? Sim, claro que sim, é sempre une belle promenade quando se está na região ideal para quem ama peixe, marisco, praias de nudistas, pão maravilhoso e a combinação serra e praia, para lá das outras mil e uma ofertas de Sesimbra e arredores. Se houver crianças e elas não quiserem ir, digam que toda aquela área foi habitada por dinossauros e talvez ainda viva lá um ou dois.

Num destes dias quentes, meti-me a caminho com duas amigas para visitar o Cabo. Teríamos ido de Mehari com lenço na cabeça se tivéssemos um, mas fomos apertadas no Fiat 500 da Sofia. À chegada, há uma placa toponímica de pedra, daquelas antigas, do tempo do Salazar, como disse logo a Mité, com um pouco de escândalo na voz. Sendo eu atraída por cor, vi de imediato três grandes chapéus de sol vermelhos dos gelados Olá num café e não deixei de pensar de novo como os portugueses são generosos na partilha da sua História e dos seus monumentos com marcas comerciais, desde que estas ofereçam chapéus de sol e cadeiras de esplanadas. Talvez pudessem ter escolhido cores mais sóbrias e apropriadas à dignidade dos monumentos, mas o argumento é difícil de defender quando olhamos e notamos um certo desleixo e falta de cuidado no Santuário ou até na fachada da Igreja. Enfin, a sensação de abandono está um pouco por todo o lado, não quero ser má, mas é verdade. Quando vamos ao farol e o vemos de perto, bem conservado e pintado, percebemos que quem cuida de um não cuida do outro. Como nada é perfeito, ao fundo do farol, praticamente em cima do mar, na direção do horizonte, existem umas casas inacabadas a dar cabo da vista, uma delas com grandes grafittis medíocres comidos pelo sol, a lembrar que até a arte urbana é perecível se não for bem cuidada.

Chegamos vindas da Aldeia do Meco, depois de atravessar a aldeia da Azoia por boa estrada, e deparamo-nos com um enorme descampado que agrupa um conjunto de edifícios, locais e zonas próximas umas das outras. O Espichel acolhe o conjunto do Santuário de Nossa Senhora da Pedra Mua, a Igreja de Nossa Senhora do Cabo, a Ermida da Memória (uma pequena capela em forma de merengue), a Casa dos Círios, alas de hospedarias, um terreiro, um Cruzeiro, a Casa da Água ligada a um aqueduto construído em tempos idos para trazer água da aldeia para os peregrinos que ficavam nos alojamentos por ali construídos. No alto do promontório pode ser vista, com cuidado, a Baía dos Lagosteiros. Não há um grande esforço em placas de orientação para o viajante ocasional, sublinhado sempre a grande verdade portuguesa do “se calhar ninguém se lembrou” que quase sempre é “alguém ficou de tratar” mas ainda não aconteceu “porque não foram libertados os fundos”. Quelle dommage.

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Junto das falésias, a paisagem natural é estarrecedora e não aconselhável a quem sofre de vertigens. Tudo aquilo existe porque está num local que os portugueses do passado consideravam fazer parte da linha de defesa da costa que era uma fortificação até ser abandonado nesse propósito no século XIX. Olhando para as escarpas vemos como o Atlântico é violento e se está nas tintas para qualquer um de nós e faz o que quer, batendo forte sem descansar, criando espumas contínuas de mar que desfazem rocha e tudo o que lá estiver. Ao nosso lado, um homem com ar de professor de História elogiava os navegadores portugueses dos Descobrimentos a uma mulher com grandes óculos escuros, explicando-lhe que o Atlântico separava o velho mundo dos novos mundos, exaltando a coragem dos descobridores, enquanto eu pensava com um pouco de embaraço no meu querido Mediterrâneo e nas férias de catamarã que vou ter em agosto. A dada altura ficamos fatigadas dos antepassados e do vento que nos começava a gelar os braços e viemos embora.

No que pude entender depois em casa enquanto pesquisava, aquele é o santuário mariano mais antigo de Portugal, local de peregrinações há mais de seis séculos, com pelos menos duas lendas, ponto de rendez-vous para passeios de moto e, pelos vistos, segundo um brasileiro no youtube até rituais de magia negra lá acontecem.

Não quero ser injusta, mas se não formos motards, praticantes de BTT, místicos, peregrinos ou feiticeiros, não há o que fazer no Cabo para além vaguear e picar o ponto das atrações daquela região. Não há sequer (ou eu não encontrei) lojinhas com ímanes para o frigorífico e outra parafernália. Em compensação existem roulottes no parque de estacionamento como nos jogos de futebol, onde pessoas com ar de quem trabalha em roulottes de comida desde sempre servem cachorros e hambúrgueres a quem tenha ficado com apetite com as vistas. Dois gigantes vidrões próximos sugerem que muitas cervejas serão bebidas por ali e fiquei a pensar se afinal não haverá coisas para fazer naquelas paragens. Quem sabe, um dia…

Portugal tem locais raros, de beleza incrível mas também no Cabo Espichel tive a mesma sensação que vivi noutros lugares. Muitos estrangeiros (percebo, os touristes têm de fazer passeios de touristes) e alguns portugueses com ar contido e discreto. Fico sempre com a sensação de que por mais majestosa que seja a vista ou a atração, os portugueses têm um pouco de vergonha do seu país, talvez temendo que os estrangeiros pensem que as coisas de Portugal sejam abaixo de um nível qualquer que eles imaginam. As autoridades parecem ser da mesma opinião e quem sabe é essa a razão porque não esmeram demasiado, preferindo ter aquilo, ali, assim, na soma das partes que é o Cabo Espichel.

No fundo, é um local de culto mas desafia a fé. Quando soltei este pensamento, que achei bem conseguido, a Sofia riu-se e disse que deveríamos era aproveitar e montar um negócio de venda de laranjas, junto à falésia. Elle est complètement fole naturalmente, mas deu para umas boas gargalhadas quando nos fomos embora cerca de uma hora depois e a verdade é que passamos o resto do dia a fazer um business plan.

À la prochaine, se houver novidades eu conto.

Patrícia Le Mans estudou Filosofia e Moda. Gosta de queijo, champagne e de ameîjoas à Bulhão Pato. Tem mãe portuguesa, pai francês, vai flutuando entre Lisbonne e Paris e escrevendo para o Experimentador Implacável.