Um cérebro, um coração, dois ovos antes da final. Um cérebro, um coração, dois ovos depois da final, aqui com um vídeo onde exibia já a taça de vencedor do US Open (que tentou abrir, percebendo depois que essa parte de cima em forma de tampa estava colada). Um ritual, uma mensagem, uma mera forma de ganhar mais motivação? Um pouco de tudo mas com um contexto mais pessoal que entronca numa receita que o avô Carlos (como o filho e o neto, também ele ligado ao ténis tendo sido o primeiro sócio da secção no Clube do Campo) lhe deixou há muito: os 3 Cês, cabeza, corazón y cojones (assim se percebem os ovos). Ou seja, aquilo que fez a diferença em Nova Iorque e permitiu que fizesse história no ténis mundial.

Alguém poderia prever uma ascensão tão rápida que fizesse chegar ao topo da hierarquia ATP batendo o recorde de Lleyton Hewitt como o mais novo de sempre? Sim, pelo valor. Talvez, porque era preciso ver o que faziam os adversários diretos. Não, porque tudo foi demasiado rápido. Ainda em maio de 2021 o espanhol andava no Oeiras Open Challenger a conseguir a vitória num torneio 125 que lhe permitiu entrar pela primeira vez no top 100 do ranking. Hoje, ainda com 19 anos, é o número 1 mundial. Pelo meio, foi o mais novo a ganhar o Open do Rio de Janeiro, o Open de Miami (terceiro mais novo a vencer um Masters 1.000) e o Open de Madrid. No US Open, tornou-se também o mais novo a ganhar o último Major da época desde Pete Sampras em 1990 e o mais novo a ganhar um Grand Slam desde Rafael Nadal em 2005.

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O novo Nadal que não quer ser Nadal já supera Nadal: Alcaraz conquista US Open e faz história como número 1 mundial mais novo de sempre

De Oeiras a Flushing Meadows, em apenas 16 meses, tornou-se o centro do mundo e acordou para passear naquele que muitos catalogam como centro do mundo, Nova Iorque, fazendo uma sessão fotográfica com o troféu ganho na véspera antes de viajar de jato privado para Espanha tendo em conta a nova ronda da Taça Davis onde a Espanha vai defrontar Sérvia, Canadá e Coreia do Sul. O físico está diferente, após chegar ao Open da Austrália em janeiro já com mais cinco quilos de massa muscular do que tinha antes perante todo o trabalho de ginásio que foi fazendo (de 76 para 81 quilos), a cara de miúdo é a mesma – a mesma mas cada vez mais conhecida, o que fez com que o treinador, o antigo número 1 Juan Carlos Ferrero, fosse com o jogador logo de manhã para o complexo da final para evitar a atenção mediática.

Carlitos é mesmo assim. Humilde, trabalhador, avesso a luxos, com gostos como qualquer pessoa. No seu caso, e além do ténis, segue futebol (adepto do Real) e também joga golfe, não se furtando a um reggaeton apesar de ter o Eye of the Tiger como música preferida. Não por acaso, o filme que mais gosta é o Rocky e o seu ator preferido é Will Smith, que ganhou o óscar de melhor ator com o papel que interpretou como pai das irmãs Williams, Venus e Serena. Uma pessoa como qualquer outra que não esquece de onde veio (El Palmar, Múrcia) e que passa grande parte do tempo quando não está em viagens uma casa pré-fabricada de 90 metros quadrados na Academia Equelite de Villena de Juan Carlos Ferrero, em Alicante. Durante a pandemia, ficando no complexo, ainda vivia numa que era três vezes mais pequena.

Pelos feitos que conseguiu ir alcançando sobretudo em 2022, a história de Carlos Alcaraz é conhecida. O primeiro torneio no estrangeiro, o trabalho com Juan Carlos Ferrero, aquela frase que ficará para sempre do técnico quando disse em resumo que “parecia um fio de esparguete” que teve de ser trabalhado e muito no plano físico. No entanto, algo mudou no seu jogo. E a regra dos 3 Cês continua sempre vigente.

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“Não noto muito a diferença em relação ao ano passado e agora, estou a tentar apenas ser o mesmo miúdo de sempre”, tinha destacado antes do início do US Open, recordando a edição em que chegou aos quartos mas acabou por desistir por questões físicas – e essa foi logo uma distinção grande, tendo em conta que foi o jogador que mais tempo jogou até atingir a final na história do Grand Slam norte-americano. “É difícil mas eu sou assim, o mesmo miúdo de sempre. É importante manter a humildade”, salientou. “Em Montreal senti a pressão e tentei não pensar nisso, apenas aproveitar. Aqui, a minha única pressão é a de aproveitar todos os jogos. É um torneio muito importante, não sinto a pressão como algo mau”, referiu.

Em Montreal, Alcaraz perdeu na primeira ronda com Tommy Paul. Em Cincinnati, logo a seguir, foi aos quartos mas caiu com Cameron Norrie. “Suspeito que nessa altura o Carlos perdeu um pouco a alegria de estar no court“, admitiu Ferrero. “Sim, perdi um pouco a alegria de jogar. Admito, acusei a pressão. Não conseguia rir no campo, algo que estou sempre a fazer em todos os torneios. É isso que quero no US Open, aproveitar, sorrir no court, fazer o que mais gosto que é jogar ténis. Posso dizer que quando estou a rir, quando estou divertido em campo, vi o meu melhor nível, o meu melhor ténis. Quando ganhei o Open de Miami pensei que seria capaz de chegar também a um Grand Slam. Até aí, sabia que tinha de continuar a trabalhar como agora porque um bom resultado não era ainda ser campeão”, frisou. O adversário foi o mesmo de Miami, Casper Ruud. O resultado foi o mesmo de Miami, com vitória de Carlos Alcaraz.

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“Acredito que o Carlos está ainda a 60% do seu potencial. Pode melhorar muitas coisas, sabemos que o trabalho vai continuar. Agora que chegou a número 1 do mundo terá de continuar a ganhar, sabemos disso e também vou recordá-lo para isso. O que pode melhorar? O serviço, o revés de algumas situações, a sua consistência, tentar não quebrar em termos mentais. São detalhes que até que um jogador se retire tem sempre de trabalhar para melhorar”, destacou Juan Carlos Ferrero à agência EFE. “Ele nasceu para jogar estes torneios, para fazer estes jogos. Desde que vi o seu primeiro movimento que percebi que tem coisas diferentes de todos os outros rapazes e ainda hoje vejo isso. A primeira vez que o vi foi com 12 ou 13 anos, veio à Academia e treinámos um dia. Era muito pequeno mas toda a gente falava dele. Tinha tudo o que tem ainda hoje mas em ponto pequeno”, acrescentou o treinador espanhol, que elogiou a rapidez que sempre teve e o físico que lhe faltava. Isso, transformado em potência, faz de Carlitos o que é.

Há mais pormenores que foram ajudando à sua escala a ascensão a número 1 do mundo. O xadrez que o avô lhe ensinou já numa ótica de fazer com que se concentrasse (“É muito parecido com o ténis. Se te distrais, o jogo fica resolvido. Ajuda-me a pensar mais rápido”, disse numa entrevista). A raquete Babolat, marca com quem assinou por dez anos para utilizar a Pure Aero VS que tem uma corda a mais para dar mais velocidade e controlo. A referência Nadal enquanto exemplo e projeto de jogador sem com isso ter o desejo de ser um novo Nadal para evitar comparações. O sushi e as massas que gosta de comer antes dos jogos, sem prescindir também de uma pequena sesta de 20 minutos antes de entrar no court. Tudo ajuda mas não há nada como a regra dos os 3 Cês, cabeza, corazón y cojones. E isso faz a diferença.