Por mais de uma vez ao longo das quase três – e bastante  penosas – horas de “Blonde”, o realizador Andrew Dominik contempla-nos com planos intra-uterinos de Marilyn Monroe, nas sequências em que a atriz é forçada a fazer abortos. Além desta ideia de cinema ginecológico ser de um insondável mau gosto, é ainda inconsequente. Se a intenção de Dominik era mostrar como Marilyn nem sequer podia dispor do seu corpo, bastava para isso a forma como a fita representa insistentemente a atriz de “Os Homens Preferem as Louras”, qual versão humana de uma bola de “flipper” atirada para todos os lados no interior da grande máquina da indústria cinematográfica de Hollywood.

[Veja o “trailer” de “Blonde”:]

Não é que Dominik consiga sequer ser subtil. Como se pode ver na altura em que uma Marilyn Monroe, carregada de barbitúricos e atarantada, viaja de avião de Los Angeles até Nova Iorque para ser depois literalmente arrastada por homens dos serviços secretos do governo para o quarto do hotel de luxo onde se encontra deitado numa casa o presidente John Kennedy, que a põe a masturbá-lo e a fazer sexo oral enquanto fala ao telefone e na televisão passam imagens de mísseis e foguetões a serem lançados e enormes canhões a elevarem-se para disparar (e logo a seguir, Kennedy praticamente viola Marilyn).

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[Veja uma entrevista com Ana de Armas:]

Há que ter bastante cuidado com “Blonde”, porque se baseia no livro muito, muito ficcionado que Joyce Carol Oates escreveu sobre Marilyn. O próprio Andrew Domink disse que o filme não é “uma biografia. Eu nunca diria que é. Joyce escreveu um livro que essencialmente dramatizava como ela se sentia em relação a Marilyn Monroe (…) Acho que Marilyn Monroe, a figura, é significativa para Joyce de uma forma emocional, em termos do que ela representa sobre a experiência de ser mulher.” Só que essa experiência, em “Blonde”, resume-se praticamente a retratar Marilyn, e de forma claramente excessiva e redutora. O filme está empapado numa das ideologias da moda: a da vitimização feminina “à outrance”.

[Veja uma entrevista com Andrew Dominik:]

Esta é uma visão de Marilyn Monroe que se compraz em sublinhar a traço grosso e contínuo a sua infelicidade. Em “Blonde”, ela é um frasquinho de instabilidade, angústia, vulnerabilidade sofrimento, desatino e desamparo; é maltratada, incompreendida e abusada por praticamente toda a gente, desde a mãe, na infância, até aos chefes dos estúdios, os realizadores, os maridos, os jornalistas e mesmo o presidente dos EUA e seus sicofantas. Como escreveu certeiramente o crítico Anthony Lane na New Yorker, neste filme, “Marilyn anda aos tropeções por todo o lado como uma gazela perdida num documentário sobre leões”.  

Um dos raros momentos de felicidade que lhe é concedido por Andrew Dominik, uma relação a três envolvendo não só sexo como também fortes laços de amizade, com os filhos libertinos de Charlie Chaplin e Edward G. Robinson, é, no entanto, falso (e o realizador comete o erro de pôr Charlie Chaplin Jr. a morrer antes de Marilyn, quando isso só aconteceu na realidade seis anos após a morte desta). Como falsas são as cartas enviadas a Marilyn pelo pai (que ela acreditava ser Clark Gable), ou ainda a tentativa da mãe a afogar na banheira quando era criança. E o filme abunda em freudismo hollywoodesco pronto-a-usar, por exemplo, na insistência na “ausência do pai”, com a atriz a chamar “daddy” aos homens mais velhos que ela, caso dos segundo e terceiro maridos, Joe DiMaggio e Arthur Miller.

[Ouça um excerto da banda sonora de “Blonde”, de Nick Cave e Warren Ellis:]

Com todo este empilhamento de desgraças, “Blonde” parece mesmo querer fazer-nos sentir mal – culpados, até – por nos termos extasiado com a beleza de Marilyn, excitado com a sua sexualidade, entretido e divertido com o seu talento de atriz nata, sobretudo de comédia (o realizador nem sequer lhe concede o direito de afirmar ou se orgulhar dos seus espantosos dotes cómicos, já que nas sequências de rodagens só vemos Marilyn em desatino ou a ter ataques de nervos, e naquelas em que ela está a assistir aos filmes que fez, ao invés de a mostrar a apreciá-los, põe-a a distanciar-se e a duvidar da figura que se movimenta na tela, Norma Jean de um lado, Marilyn Monroe do outro).

“Blonde” é um filme parcial, enganador, capcioso e injusto até para a própria Marilyn Monroe, a qual em vez de celebrar e fazer justiça, transforma numa figura sacrificial contra a vontade da própria, digna de pena, que mendiga a piedade e instiga a culpabilidade do espectador. Junte-se a isto o exibicionismo “artsy”, maneirista e fragmentado da realização, e de “Blonde” salvam-se apenas a interpretação de Ana de Armas, que consegue encarnar Marilyn Monroe de tal forma, das idiossincrasias vocais ao modo de estar e de se movimentar, que por vezes roça o sobrenatural, e a banda sonora “abstracionista” de Nick Cave e Warren Ellis. Mais uma vez, o cinema não prestou um bom serviço à sua mais resplandecente, trágica e mítica loura.

“Blonde” já está disponível na Netflix