Enviado especial do Observador em Doha, no Qatar

Há uma ou outra exceção. O 9 porque é número de goleador. O 5 porque é aquela posição que os argentinos mais do que ninguém ligam e respeitam por verem nela um fiel da balança para equilibrar toda a equipa. O 1 se alguém tivesse a camisola de guarda-redes (que não tem). Depois, e em mais de 95% das vezes, há apenas duas opções para quem leva equipamento da Argentina para o estádio, que é quase toda a gente: ou não tem número ou tem 10 nas costas. E, entre todos esses 10, são raríssimos aqueles que arriscam colocar o seu nome ou apelido. Ou têm Messi, ou têm Maradona. É só escolher o Deus da sua geração e deixar que a fé faça o resto num mundo onde dizer que o futebol para todos os argentinos é uma religião acaba por ser curto.

Deus Leo, o remédio santo do costume para a bipolaridade de sempre (a crónica do Argentina-Austrália)

Por isso, e também para eles, o encontro no Estádio Ahmad bin Ali era especial. Jogava-se a passagem aos quartos tendo os Países Baixos como adversário para regalo de Diego Maradona e Johan Cruyff, que juntos já tinham visto do céu que ganharam pelas proezas em terra o confronto entre Nápoles e Ajax para a Liga dos Campeões e poderiam agora ter um duelo que outrora era quase uma final antecipada da maior prova de seleções. Mais do que isso, pelo menos esta noite, jogava-se a 1.000.ª partida do capitão como sénior entre Barcelona, PSG e Argentina. Um número quiçá pequeno para o que fez ao longo de quase duas décadas mas que marcava também uma era onde dois jogadores, Messi e Ronaldo, foram mostrando ao mundo como tantas diferenças entre a genialidade podem coincidir depois no ponto comum dos recordes.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

“Messi está mais dependente de ganhar o jogo 1.001, 1.002 e 1.003 do que celebrar o jogo 1.000”, contavam ao El País as pessoas que conhecem o esquerdino da camisola 10. “Pensa sempre à frente”, explicavam, com esse reforçar de que a sua ambição faz com que nem repare naquilo que vai fazendo ao longo de toda a carreira. “Mas costuma inteirar-se de tudo, dificilmente deixa escapar algo: ou sabe ou contam-lhe”, garantiu ao jornal um dos profissionais que cuidam da sua imagem. E os recordes são mais do que muitos, entre as sete Bolas de Ouro, os oito Pichichis ou as seis Botas de Ouro. A par disso, já conseguiu neste Mundial igualar o número de golos de Maradona e pode passar Lothar Matthaus se a albiceleste for à final como o jogador com mais encontros em fases finais de Mundiais. Contudo, o que lhe interessa são mesmo os títulos.

São muitos. No Barcelona, quatro Ligas dos Campeões, três Mundiais de Clubes, três Supertaças Europeias, dez Ligas, sete Taças do Rei e sete Supertaças. No PSG, uma Ligue 1 e uma Supertaça. Na Argentina, uns Jogos Olímpicos, um Mundial Sub-20 e mais recentemente a Copa América e a Finalíssima. Só faltava um Campeonato do Mundo para completar tudo o que era possível ganhar e numa fase em que quebrou em definitivo o complexo das finais perdidas pela albiceleste com dois triunfos seguidos. Entre 778 jogos pelo Barça, 169 pela Argentina e 53 pelo PSG, com 788 golos em 1.000 encontros realizados, era isso que movia Messi. Era isso que movia a Argentina com Messi. Era isso que movia os argentinos por Messi. E como não poderia deixar de ser, todos os olhos estavam na Pulga que queria deixar também marca com a Austrália, com quem procurava pela primeira vez marcar um golo num encontro da segunda fase (à quinta tentativa).

Messi é um líder em tudo. É líder na marcha para sair em direção do relvado na altura do aquecimento (de olhar focado em frente que só quebrou quando corria de frente para a central, acenando de braço esquerdo para uma zona onde poderia estar a família), é líder nos alongamentos quando se coloca ao lado do seu preparador físico, é mais do que líder quando é anunciado nos ecrãs do estádio como titular, é líder até nos cânticos dos australianos com “Who the f**** is Messi?”. Não é um bom caminho, claro está. Nunca corre bem. Estar a provocar o número 10 é atirar gasolina para uma fogueira que ainda não tem fogo mas que em qualquer vai buscar uma fasquia para a combustão. É líder porque ninguém decide jogos como ele.

Apesar de ter feito uma finta daquelas que valem bilhete em meia hora, e tendo apenas essa finta daquelas que valem bilhete ao longo de meia hora entre perdas de bola, um jogo muitas vezes mais a passo do que em corrida e fora do território natural para poder receber e virar-se para a baliza, foi em Messi que começou a vitória da Argentina com o tal espicaçar que nunca corre bem com o lateral Aziz Behich na zona lateral antes de um lançamento. Dois minutos depois, uma bola a pingar na área da Austrália, remate em arco, golo. A Argentina pode ser analisada de várias formas em termos táticos e técnicos mas, sem deixar de parte o lado emocional e a paixão que transformam os 90 minutos em mais do que um jogo de futebol, resume-se neste Mundial a uma ideia: a equipa protege Messi porque sabe que Messi protege a equipa. Assim foi.

Por mais do que uma vez Julian Álvarez tentou fazer a diagonal a procurar a profundidade pela esquerda mas veio depois lançamento até ao flanco contrário porque, sem bola, era ele que fechava ali para deixar o número 10 solto para fazer uma pressão-não-pressão meio a passo. Por (bem) mais do que uma vez Messi brilhou acabando ainda mais forte com o passar dos minutos, marcando um golo, tendo um remate a rasar o poste, oferecendo três golos não aproveitados e fazendo um sem números de deixar o estádio ao rubro. Entre algum sofrimento na parte final, dificilmente o esquerdino poderia querer melhor no jogo 1.000. E por ter sido considerado o MVP do jogo, Messi acabou por não ser um dos jogadores a falar na zona mista.

“Estou muito feliz por ter dado mais um passo rumo ao objetivo. Foi um jogo difícil, um jogo muito físico, não tivemos o tempo suficiente para descansar. Alegria dos adeptos? São sensações incríveis e adoramos estar a partilhar isso com eles. Sabemos que fizeram um grande esforço para estarem aqui e também não nos esquecemos dos que ficaram na Argentina. A união que temos é linda, é isto que tem de ser a seleção. Era algo que queríamos muito, estarmos com essas pessoas pela forma como nos transmitem alegria”, referiu na conferência de imprensa de MVP, no final de uma noite onde marcou pela primeira numa segunda fase do Mundial e chegou pela quarta vez aos quartos da competição no 1.000.º jogo como sénior.

“Estou muito contente por ter aqui a minha família, está sempre na minha cabeça. Os meus filhos agora são maiores, já entendem tudo e agora conseguem desfrutar mais de tudo isto. É o primeiro Mundial para os meus filhos mais pequenos e é sempre o mais feliz; no caso do Tiago, por ser o mais velho, ele não tinha antes consciência do que é um Mundial e agora tem”, referiu antes Lionel Messi, ao mesmo tempo que mais tarde iria ficar mais emocionado na flash interview ao ver a reação que tiveram quando marcou.

“A experiência faz com que veja tudo de uma outra maneira, desfrutando ao máximo de tudo o que estamos a viver e desfrutar de todos. Oxalá continue, oxalá possamos seguir em frente contra os Países Baixos, que vai ser um adversário muito duro. Estou a viver o último Mundial com normalidade, sabendo que é a lei da vida, que os anos passam mas por saber que falta pouco estou a aproveitar ainda mais: o ambiente, os jogos, o Mundial em geral, a minha família que está a conseguir viver com muita ambição mas nervosismo. Olhar para os meus filhos na tribuna é muito especial, ver como vivem tudo…”, concluiu o avançado.