Ultimamente tenho tentado comer melhor e mais sustentável, mas dezembro é dezembro, não me vou castigar, sou demasiado nova, há um montão de locais que adoro visitar nesta altura, para verificar se estão como sempre e sentir os cheiros e sobretudo os sabores próprios da saison. Num destes dias de chuva na região de Lisboa, dei por mim a descer do Cascais Shopping até ao Estoril, rumo a um dos meus cafés favoritos em Portugal, a Pastelaria Garrett, na avenida de Nice, perto da Marginal, junto do poderoso Atlântico. O objetivo? Tinha um lanche com amigas marcado nesse final de dia e fui em busca de um dos famosos bolo rei portugueses, que por vários motivos nunca provara e me pareceu uma boa estrela para o nosso lanche. Comigo levava um certo nervosismo, porque ouvira recentemente que a Garrett tinha sido comprada e havia mudanças.

Em França temos o Bûche de Noel (o tronco de Natal), aqui há o bolo rei, que adoro e me dizem ser uma receita que veio de França noutro tempo e, vão por mim, melhor que um bolo rei só um bolo rei plein d’histoire, sem essas parvoíces de Nutella e outras invenções recentes. Como noutros locais, também na Garrett se faz fila para levantar o bolo nos dias 23 e 24 e achei engraçado não haver nenhum tipo de sistema de senhas instalado, como que dizendo ao mundo que tudo o que implica um certo esforço e paciência, acabará por saber melhor.

Numa Garrett em tempos de Natal, confirmei que um sorriso dos empregados era uma impossibilidade e voltei a lembrar-me como os meus amigos portugueses me estão sempre a dizer que acham os franceses antipáticos. Ah l’ironie… Na altura em que lá passei, já não aceitavam encomendas para bolos e guloseimas da saison. Fiquei a sabê-lo não porque houvesse algum aviso, mas porque as empregadas o repetiam de minuto a minuto, irritadas, fosse ao telefone, fosse in loco a quem aparecia e perguntava, dizendo-lhes “apareçam no dia 23 ou 24, que há fornadas sempre a sair”. Imagino que quem seja habitué não vá ter estes problemas, pelo menos espero que não.

Devo dizer que me estou a habituar aos ambientes próprios dos sítios históricos em Portugal, onde a tensão dos empregados tem de ser bem gerida pelos clientes, como se fosse um problema nosso querer gastar lá o nosso dinheiro.

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Tive sorte, havia uma fornada acabada de sair e consegui um belo bolo-rei, um pouco caro (32,70 euros/quilo, o que acabou por chegar aos 50 euros), mas um belo bolo rei, elegante, sem açúcares histéricos por cima e com muita fruta cristalizada por cima, como eu gosto. Embalado numa espécie de envelope marrom com monograma da Garrett para que ninguém tenha dúvida da proveniência, o bolo revelou-se excelente algumas horas depois e foi a estrela no lanche.

Devo dizer que até as pessoas que não gostam muito de bolo rei, comeram pelo menos uma fatia. Fofo, húmido, com a justa medida de frutos secos crocantes, sem se desfazer na boca como torrões de areia, nem empapar como uma bola desagradável que fica ali eternamente a ser mastigada, este não é um bolo rei de Instagram, nem dessas novas marcas com nomes estranhos e modernas que querem reinventar as bonnes choses de la vie e estão sempre na televisão, a cozinhar bacalhau às dez da manhã com apresentadores irritantes, dizendo que é tudo fácil de fazer.

Importante, no fim do lanche, trouxe um quarto de bolo comigo e quatro ou cinco dias depois mantinha-se fresco e saboroso.

Quando falei a um amigo olisiponense que me preparava para escrever este texto, ele disse-me que a Garrett da avenida de Nice é uma filial de outra Garrett que existiu há muito na avenida Saboia, que por sua vez teve origem numa Garrett que houve em Lisboa, no Chiado, há muitas décadas. Ouvi com interesse moderado, bastou-me confirmar que a Garrett tem muita história e que se pronuncia Garrete (como raquete) e não Garé (como maré). Afinal de contas, o próprio Almeida Garrett mandou adicionar um tê extra ao seu nome, para que não sobrassem confusões a esse respeito (disse-me o tal amigo).

Voltei à Garrett para levar o bolo rei e cheirar o Natal e acabei por ficar para almoçar, nem sequer sabia que funcionava como restaurante. Com o bolo debaixo do braço, dirigi-me para o outro lado e, ao fim de três tentativas, consegui a atenção de um empregado que me disse para me sentar onde quisesse. Havendo mesas por todo o lado e até um terrace com várias zonas, senti-me perdida, mas não comovi o empregado e lá me sentei a um canto, depois de algumas hesitações. Comigo na sala quase vazia, duas mulheres orientais e uma que me pareceu a Lauren Bacall, lembrando-me que o Estoril será sempre o Estoril, onde espiões e mulheres lindíssimas traficam segredos e conspirações e que agora se calhar continuam a fazê-lo, com Golden Goose verdadeiros nos pés, olhar ennui, sweats de algodão e rabos de cavalo impecavelmente repuxados.

Não percebi se podia simplesmente pedir uma torrada ou se era obrigada a pedir um dos plat du jour. Ao fim de demasiado tempo, lá recebi sem sorriso um menu, elegante e extenso, que li com algum cuidado, descobrindo que a Garrett tem uma imensa quantidade de pratos, incluindo frango de cabidela, vários arrozes e mariscos, inúmeros bifes e até tofu panado. Sentada numa linda e confortável cadeira com braços e monograma, com toalha e guardanapo de pano, acabei por pedir um bife grelhado (18,5 euros), sabendo que daí a umas horas haveria de comer o bolo-rei.

Levava um livro que comprara na FNAC, mas naturalmente passei a refeição a espreitar coisas engraçadas nas redes sociais, tal como quase todas as pessoas que se iam sentando e chegando. Ainda assim pude verificar a classe da decoração, sóbria, em vários tons de verde pastel, cinzas e castanhos, que denotavam elegância e calma. Pensei que se um dia tiver uma coisa importante para dizer a alguém posso muito bem escolher a Garrett. Há sítios feitos para falar des choses importantes e este é um desses, a iluminação é no ponto exato, a musique d’ambiance também, detalhes tão importantes como os outros. A comida é boa, em tons de médio, mas é o ensemble que faz tudo valer a pena.

Malheureusement, le service prossegue em geral português, ou seja, lento, distraído, carrancudo ou simplesmente indiferente aos clientes. Encontramos tantas vezes este clima cansado e pouco amistoso que talvez devamos pensar que pode fazer parte de uma lógica que o universo reserva para cá, quem sabe o preço de não engolir a serra da Estrela ou simplesmente um equilíbrio misterioso. Há local para estacionar na rua, vemos o mar em fundo, o Estoril é lindo, a Garrett é confortável, por que haveria de ser tudo comme il faut?

Patrícia Le Mans estudou Filosofia e Moda. Gosta de queijo, champagne e de ameîjoas à Bulhão Pato. Tem mãe portuguesa, pai francês, vai flutuando entre Lisbonne e Paris e escrevendo para o Experimentador Implacável.