No final da refeição, perguntei porque só tinham um prato de carne no menu, estando em terreno de vitela Arouquesa e de Lafões. João Guedes Ferreira respondeu com desconcerto: “A ideia é fazermos coisas que não há na região de Viseu”.

Fiquei a pensar. Talvez fizesse sentido. Dar às pessoas aquilo que elas não têm. Tanto mais que tínhamos acabado de jantar muito bem, uma sucessão de comidas cheias de sabor, encanto e mistério. Mas também era verdade que era uma sexta-feira e a casa, com apenas 14 lugares sentados, estava por encher.

Mesmo admitindo que o restaurante abriu há pouco mais de um ano, confirmei depois que tem tido uma clientela inconstante, por vezes mesmo ausente.

Porquê?

Em busca de uma resposta, perguntei a alguns amigos, a maioria pouco dados a investidas na cozinha criativa moderna, o que achavam do menu. Enviei-lhes uma foto da carta, através do Whatsapp.

O menu é desses modernos e sintéticos, que se leem como álgebra: “Grão de bico + pleurotus + trigo sarraceno”; “Espargos brancos + leitelho + koki mole”; “Gamba rosa + papas de milho painço + algas”; “Favas + enguia fumada + caldo de pernil”; “Presa de porco ibérico + kale + garum”.

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Um deles, natural do Porto, comentou:

“Não sei o que é pleurotus.”

“Garum não é umas papas de peixe que os romanos comiam porque, coitados, ainda não tinham inventado a batata?”

“Kale?!?”

“Recuso-me a comer uma coisa chamada leitelho”.

Outro amigo, de Leiria, fixou-se no formato da carta:

“Isso não é um menu, é uma lista de compras de supermercado.”

Admitindo que sejam opiniões deliberadamente provocatórias, deixaram-me a pensar. Pode um restaurante cheio de talento e sabor falhar? Pode, pode.

Mas recapitulemos.

Chegáramos pelas 19h30 e durante largo tempo estivéramos a sós com João e Anna, o casal que gere o restaurante, ela na sala, ele atrás do balcão, na pequena cozinha aberta. É bom ir-se cedo para os restaurantes: as pessoas que chegam cedo são melhor servidas.

Jantar cedo permitiu-nos apreciar em silêncio a pequena sala florida, paredes de cimento afagado, tudo elegante e leve, a contrastar com o edificado granítico da zona histórica de Viseu.

Corremos grande parte da carta. Falando dos espargos, fornecidos por um produtor de Oliveira do Hospital — dos poucos a fazer espargos brancos, em Portugal —, podia comê-los sem nada, à dentada, como o Bugs Bunny fazia com as cenouras. E na verdade também acabei por sorver o leitelho da taça, a solo, qual sopinha fresca.

O leitelho é a aguadilha que sobra de bater as natas para a manteiga, que aqui serve-se no início da refeição com um pão caseiro de trigo e cevada, untuoso por dentro, estaladiço na côdea.

São comidas de antigamente, mas que o Norte da Europa recuperou para o fine dining. Será essa, aliás, a inspiração principal do chef. Apesar de se ter licenciado em hotelaria já em 2015, João Guedes Ferreira passou os últimos anos a deambular entre a Normandia e Londres.

Em Londres, trabalhou com o chef Nuno Mendes, devedor dos ares que sopraram de Copenhaga nos últimos 20 anos, bem como com António Galapito, do restaurante Prado, em Lisboa, que aqui também entrevemos, no prato e não só.

A influência concretiza-se na pequena biblioteca gastronómica ao fundo da sala, na estética do Flora e no uso de técnicas popularizadas por restaurantes como o dinamarquês Noma.

Uma delas são as fermentações à base de koji. O koji é um fungo (Aspergillus oryzae) que produz açúcares simples e aminoácidos cheios de umami (aquele quinto sabor que dá a sensação viciante de satisfação), como em certos processados japoneses, do molho de soja ao saké.

Foram os japoneses que mais estudaram as fermentações com koji, mas foram os dinamarqueses que lhes deram aura de coisa sofisticada e as recriaram.

João Guedes Ferreira gosta de koji e não só. A ideia é desafiar-nos com combinações boas e isso é que importa para aqui. Estamos em terreno da neobistronomia, joalharia criativa, mas sem desenhos nem flores no prato.

No final, podemos achar que um ou outro prato não resulta tão bem, mas a emoção de descobrirmos algo novo cobre as falhas. Veja-se o gelado de levedura  (presumo que seja de levedura fresca de padeiro), café e broa de cacau: faltará afinação no gelado, dirão uns, faltará afinação em nós próprios, dirão outros — mas sobra, em qualquer dos casos, a alegria da descoberta.

Veja-se também a polenta, de fritura sequíssima, com um molho de azeitona doce e picante, e picles de funcho. Que maravilha, perfeita. E veja-se essa combinação das favas com a enguia fumada e um caldo que junta sucos de enguia e de pernil — o meu preferido da noite.

E, depois, há ainda o serviço. Nestes tempos de formações hoteleiras em cima do joelho, ter alguém como Anna, que conversa connosco e nos informa na medida certa, com bom espírito, vale ouro.

Foi ela que nos ajudou a decidir sobre o vinho. Neste particular, dá-se primazia às garrafas de pouca intervenção enológica, mas com opções sem verniz das unhas a entupir-nos as narinas, como são vezeiros alguns dos templos dos vinhos ditos “naturais”.

Neste estilo, é uma carta vínica mais interessante do que a maioria do que agora se encontra em Lisboa e Porto, com destaque para o Dão (António Madeira, Tavares de Pina…), mas cobrindo o Sul e o Norte, com garrafas escolhidas de entre produtores consagrados (dos Vale da Capucha aos Uivo), e entrando por Espanha e França adentro.

Ou seja, o Flora é uma pérola em Viseu. Se irá vencer? É uma questão de bom senso. Dos viseenses. E de José e Anna.

Eu acho que o restaurante já é maravilhoso mas também acho que pode evoluir. Que no futuro pode ter mais Viseu, sem deixar de ter o resto do mundo. Que pode ter mais conforto, sem deixar de ter desafio.

Ex-jogador de ténis, Tomás Cruges foi também inspetor para a área alimentar. Hoje em dia, dedica-se a um doutoramento sobre a influência gastronómica do Califado de Córdoba. Nos tempos livres, faz a revisão de livros de culinária para uma grande editora.