Poucas linhas de diálogo adentro de “Os Piores”, primeira longa-metragem da dupla de realizadoras francesas Lise Akoka e Romane Gueret, depois da curta “Chasse Royale”, e acontece uma explicação do título, num diálogo entre as personagens filmadas – miúdos, adolescentes – e o realizador. A sequência inicial é interessante, porque gesticula o desejo de atores não profissionais de por vezes quererem aparecer na câmara e sentirem que a história das suas vidas é importante. Se uma câmara filma, é importante e é só isso que importa. Se eles estão a ser filmados, são importantes. Facto: foram escolhidos porque são os piores, os marginais da sociedade, os que dão problemas.
Dá vontade de rir e de chorar, parte da dualidade interessante que Lise e Romane querem explorar aqui: “Queríamos envolver os jovens num processo de criação, de os proteger ao máximo e de os acompanhar. É uma certa continuidade do nosso trabalho”, conta-nos via Zoom a realizadora Romane Gueret, que acrescenta a razão do título: “É um elenco não-profissional, são crianças difíceis. Mas que estão lá livremente e que aprenderam as suas personagens. Passaram muito tempo a decorar o texto.” O filme venceu o prémio Un Certain Regard na edição do ano passado do Festival de Cannes e é uma crítica ao uso de atores não-profissionais como exploração de uma realidade, muitas vezes servindo melhor uma visão de quem faz o filme do que a realidade em si. Do outro lado da câmara, dentro do filme, está um realizador, Gabriel (Johan Heldenbergh), “uma personagem ambivalente”, diz-nos Lise Akoka. Ambivalente porque acredita no que está a fazer, acredita que o que faz pode mudar – o cinema, a vida daqueles miúdos, a vida das pessoas – e está disposto a transformar essa realidade ao serviço do cinema.
[o trailer de “Os Piores”:]
Lise e Romane conheceram-se quando trabalhavam em casting. Durante esse tempo, cruzaram-se muitas vezes com o risco de usar atores não profissionais, percebendo a forma como isso afeta a vida dos jovens e de como viam, depois, surgir no cinema. A primeira longa-metragem, “Chasse Royale”, usa este tipo de atores e isso levou-os “a pensar, outra vez, na questão da responsabilidade de usar estes jovens no cinema”, conta Lise Como se cura tal maleita? Fazendo um filme sobre isso. Não sobre elas, mas sobre a forma como elas veem que o cinema farncófono tem explorado as realidades dos que têm vidas difíceis, problemáticas, muitas vezes no sentido errado, do falsamente responsável. “Para nós importa como acabam por ser vistos no cinema e, posteriormente, como isso pode mudar brutalmente as suas vidas.”
E como o fazer? “Os Piores” tenta. Talvez onde falha é no tal sentido de ambivalência que se cria quando se vê os jovens sujeitos à visão do realizador, a agir em conformidade com o que ele pensa que são as vidas deles – que imaginou através de relatos passados e padrões comportamentais – e a expectativa de que ajam de acordo com as expectativas que as câmaras ligadas geram. O realizador dentro do filme quer a sua realidade imaginada no corpo daquelas crianças, as realizadoras querem que isso passe sem julgamento da nossa – espectadores – parte. É difícil, porque seria sempre território minado.
Há adolescentes com próteses na barriga para representarem o estigma da adolescente pobre grávida no filme dentro do filme, e depois há a personagem dessa rapariga, só dentro do filme de Lise e Romane, que tem uma vida completamente diferente daquela que conta nas câmaras e que só quer ser uma adolescente — e que age como tal. Há também o miúdo problemático, infeliz, a quem lhe é pedido para revisitar situações traumáticas com uma intensidade maior.
O filme questiona, e bem, como Lise a dado momentos nos fala dos “benefícios – se os há – desta experiência” e joga na fronteira entre o que pode e pode não ser saudável. Há um lado de comédia em “Os Piores” que nos convence que a dupla de realizadoras explorou bem as boas intenções. Por mais que este género de cinema por vezes dê algum confortozinho como espectadores, seja pela forma como um filme pode transformar a vida daquelas crianças (mesmo que de forma efémera), ou por dar a conhecer ao mundo realidades locais muito concretas, há um lado negro, até pouco saudável. Lise e Romane viram isso quando trabalhavam em casting e tentaram jogar com a ambivalência da situação. O resultado é uma comédia – o título não deixa margens para dúvidas – que está sempre a questionar os limites deste género de cinema. Da comédia fica também a figura do realizador e uma construção que custa pouco imaginar, de um homem com boas intenções, com uma vontade grande de as canalizar através da sua interpretação de uma realidade: no fundo, alguém que quer ser ouvido, mas que não ouve, ou neste caso, alguém que quer ser visto e que, vai-se percebendo, não quer ver a realidade à sua frente, apenas a que quer construir.