O hábito de surpreender faz parte do ADN da Pixar e é evidente nos primeiros momentos do novo “Elemental” (que se estreia esta quinta-feira, dia 13), quando vem à memória outro filme do estúdio, “Divertida-Mente”, a obra-prima de 2015 de Pete Docter e Ronnie Del Carmen que deu vida às emoções e contou uma história recheada de criatividade. Tudo isto em coexistência com a inocência dos grandes filmes da Pixar, seja “Toy Story”, “Wall-E” ou “Up”. O segredo — se é que havia algum — estava na forma como as emoções eram representados, como individualidades de personalidades vincadas. Agora, em “Elemental” — e como o título indica — é a vez dos elementos. Ao longo de uma conferência de imprensa virtual, o realizador Peter Sohn bate com frequência na mesma tecla: “Não queríamos que as personagens se parecessem com os elementos, mas que fossem os elementos”.
“Elemental” é uma história querida a Sohn. Há anos que a queria realizar, mas não havia capacidade tecnológica para tal. Um exemplo: para fazer o render das cenas do filme, foi preciso usar um sistema que tem a capacidade de 151 mil computadores, muito mais desenvolvido do que os que foram aplicados em qualquer outro filme da Pixar. A componente visual tem importância. Fogo, água, terra e ar andam pela cidade e têm de existir de acordo com aquilo que são e, em simultâneo, como seres animados. São personagens, são figuras fantásticas, mas devemos senti-las como pessoas, o objetivo é estabelecer uma relação com estes elementos. O realizador quis contar a história de migração dos pais, que foram da Coreia do Sul para Nova Iorque e ali começaram um negócio de rua que foi crescendo com o tempo.
[o trailer de “Elemental”:]
A história dessa família surge representada pelo fogo, embora a filha do casal, que tem uma loja, não seja inspirada no realizador. Ember é impulsiva, inesperada e causa problemas muito rapidamente. Cresceu com a mentalidade de que tudo está alicerçado no esforço e, por isso, dá tudo o que pode naquilo que faz. Por ser de outra geração, tem menos paciência para os clientes chatos. Mas aí, estamos todos com ela. A cidade foi desenhada a pensar nela, diz-nos o realizador: “Queria que a cidade suportasse o que a Ember está a viver. Parte da viagem passa por ela perceber quem é, como se liga à sua cultura e à cultura da cidade, aquela onde vive e da qual faz parte. Por isso, o bairro onde mora é parte dela, é como um coração, porque é ali que se sente bem. Mas quando sai de lá, por exemplo, quando vai à baixa da cidade, tudo lhe parece mais difícil, quanto mais não seja porque está rodeada de água. Precisaríamos que ela descobrisse partes da cidade que tivessem significado para ela. Se parecesse mais arriscado, fazíamos com que os edifícios fossem memoráveis, perigosos, mas quando fosse o contrário, existiria mais vidro, beleza, uma linguagem visual diferente. Está tudo ligado à Ember”.
A forma como a Elemental City está desenhada conta parte da história do filme. Os elementos vivem em diferentes zonas da cidade e o facto de as partes mais ricas estarem rodeadas por água faz com que quem seja fogo se restrinja mais ao seu espaço, ao seu bairro. É uma forma engenhosa de falar de segregação, das próprias lutas pessoais do realizador e da sua família e, em simultâneo, dos movimentos de integração ao longo do tempo. Uma situação inusitada leva a que Ember conheça Wade Ripple, um rapaz água. E o que acontece a partir daí já se adivinha: querem conhecer-se mais, apaixonam-se. Os opostos atraem-se? Sim. Mas aqui há toda uma outra coisa a acontecer, que envolve integração, migrações, discriminação e que fala também do coração da Pixar, um lugar onde convivem muitas pessoas de diferentes nacionalidades.
Uma delas é Priscila Vertamatti, brasileira, que faz animação das personagens e com quem o Observador falou: “Identifico-me muito com a história. Eu, tal como a Ember, quis seguir o meu caminho. É verdade que o Brasil e os EUA não são culturas muito diferentes, mas há o estar longe da família, falar outra língua. Sinto muito esta ideia de querer ir para outro lugar, procurar uma oportunidade melhor”. Priscila está na Pixar há onze anos e surpreende-se com regularidade com o que são capazes de fazer ali: “Há sempre um desejo de melhorar a tecnologia. O render foi importante, porque como era antigamente, teríamos de esperar dois dias para ver o resultado, mas eles conseguiram otimizar o sistema para que pudéssemos ver o resultado o mais rápido possível.” Já Peter Sohn, que também realizou a “A Viagem de Arlo”, tinha dito momentos antes, na conferência, que adora “puxar os limites da tecnologia. Isso era essencial para antropomorfizar as personagens. Tivemos de fazer isso ao ar, tornar o ar vivo!”.
A animação foi feita em 3D, mas há qualquer coisa de 2D clássico em todas as personagens — especialmente no fogo — e isso garante-lhes um charme imediato, remete para os movimentos das primeiras animações da Disney, um balanço perfeito entre memória e presente. Têm aquela aparência 2D, mas é de facto 3D. Nos elementos isso faz uma certa diferença, o facto do fogo estar sempre a mexer-se pode atrapalhar o resto da animação. Por isso, é importante o rosto ser claro, definido, para criar uma ligação com quem vê o filme. Não se pode atrapalhar a expressão da personagem, por isso, usa-se o movimento do fogo para ajudar na sua animação, mantendo o foco no rosto da personagem. No estúdio preocupamo-nos com isso, porque é importante manter essas ligações com as personagens.”, conta-nos Priscila.
Peter Sohn & co. inspiraram-se na tabela dos elementos e imaginaram a Elemental City, usaram como referência outras cidades portuárias do mundo para perceberem a arquitetura e como ela abraça de forma diferente os fluxos migratórios. Nova Iorque, pela proximidade, é uma referência óbvia, mas não se deixa de sentir também como uma crítica para o presente, pela forma como as grandes cidades estão a evoluir e a perder os elementos de integração. Quando Ember sai pela primeira vez do seu meio natural, a mensagem é clara: ela não pertence ali. Por isso, “Elemental” tem mais do que a história inspiradora da família de Sohn, usa os elementos naturais como base para representar dilemas humanos do dia a dia. Sempre foi assim com a Pixar, capaz de dar valor extra ao que tendemos a entender como banal.