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Tony Bennett (1926-2023): ator principal de uma história musical americana

Este artigo tem mais de 6 meses

Cantor tinha sido diagnosticado em 2016 com a doença de Alzheimer. Autor de mais de 70 álbuns, teve uma carreira com mais de sete décadas e tornou-se um dos nomes incontornáveis da música americana.

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Ao todo, Tony Bennett terá vendido mais de 60 milhões de discos ao longo da sua vasta e prolífica carreira

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Ao todo, Tony Bennett terá vendido mais de 60 milhões de discos ao longo da sua vasta e prolífica carreira

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É o adeus ao homem que cantou (quase) até ao fim, batendo recordes de consistência e longevidade, tornando-se ele próprio numa lenda da canção norte-americana ao dar voz aos temas dos grandes compositores. Tony Bennett morreu esta sexta-feira, 21 de julho, aos 96 anos. Ao longo da sua carreira, gravou dezenas e dezenas de discos, deu várias centenas de concertos, espalhou o cancioneiro popular norte-americano por todo o mundo, mantendo-se sempre fiel ao seu registo.

Protegido de Frank Sinatra, também ele filho de imigrantes italianos, Anthony Benedetto teve os seus primeiros sucessos no início dos anos 50 — quando, enquanto cantor próximo do jazz, encantava as multidões nas salas de Times Square ou noutros clubes de música de Nova Iorque. Mas tudo começou mais cedo, ainda em criança. O seu pai, Giovanni “John” Benedetto, era um merceeiro de pouca saúde, muitas vezes impossibilitado de trabalhar. Morreu quando Tony, o terceiro filho, apenas tinha 10 anos. Mas deixou-lhe o gosto pela música, já que habitualmente trauteava em casa canções tradicionais de Itália, que o faziam lembrar da terra que havia deixado com a família, em busca de uma vida melhor. Além disso, o pequeno Tony tinha um tio bailarino nas performances de vaudeville, por isso o mundo do espetáculo era-lhe familiar.

Anna Suraci, a mãe de Tony Bennett, costureira de profissão, veio de Itália na barriga da sua própria mãe. Ela e Giovanni eram primos e casaram por arranjo de família. Tony foi o primeiro dos Benedetto a nascer num hospital, em 1926, em Queens, o bairro onde cresceu. O seu pendor criativo não se ficava pela música: Tony desenhava e pintava, interesse que veio a desenvolver ao longo da sua vida, tornando-se também um nome respeitado nessa área artística.

[Tony Bennett ao vivo no Ed Sullivan Show, em novembro de 1964:]

Tinha apenas 10 anos quando foi escolhido para cantar ao lado do mayor de Nova Iorque, Fiorello La Guardia, na inauguração da ponte de Triborough (que mais tarde mudaria de nome para homenagear Robert F. Kennedy). Chegou a frequentar o Liceu das Artes Industriais, em Manhattan, onde estudou música e pintura, mas nunca chegou a concluir o ensino. Aos 16 anos precisava de ajudar a família, que vivia em condições pobres, e trabalhou como estafeta e moço de recados para a Associated Press, entre outros empregos precários. Trabalhou numa lavandaria e como operador de elevador, por exemplo. Além disso, ia cantando —já o fazia desde os 13 — em diversos restaurantes italianos de Queens.

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Começou por usar o nome artístico Joe Bari — o apelido aludia à localidade italiana que fica na região da Calábria, de onde parte da sua família tinha vindo — mas quando começou a ter mais trabalhos pagos enquanto cantor, foi subitamente chamado para o exército. Eram os últimos meses da Segunda Guerra Mundial, com os EUA mais envolvidos do que nunca no conflito, e Tony Bennett serviu numa unidade de infantaria na Alemanha. Esteve na linha da frente de vários combates, uma experiência que o tornaria um pacifista profundo. “Qualquer um que olhe para a guerra de forma romântica obviamente não passou por nenhuma”, disse em tempos. Foi um dos soldados que libertaram o campo de concentração de Landsberg, e não pôde deixar a Alemanha assim que a guerra terminou.

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Tony Bennett na altura em que assinou pela Columbia

Bettmann Archive

Porém, o trabalho tornou-se mais pacífico e pôde aproveitar o tempo para atuar enquanto cantor nas bandas do exército — inclusive, participou numa versão do musical “On the Town”, na ópera de Wiesbaden. Quando regressou a casa em agosto de 1946, estava determinado a tornar-se um músico profissional. Teve aulas, aperfeiçoou o seu ofício e começou a cantar nos clubes da cidade. Tony Bennett nunca foi aclamado pela sua grande voz nem por ter um talento desmedido quando comparado com outros grandes cantores do género. A crítica sempre o elogiou mais pela forma como se entregava às canções, pela maneira como ia até ao âmago de cada tema para retirar de lá a sua melhor versão, colocando toda a sua alma para fazer jus à intenção original dos compositores.

Numa atuação bem-sucedida num clube de Greenwich Village, o famoso comediante Bob Hope adorou o que ouviu e convidou-o para fazer o espetáculo de abertura da sua performance no Paramount Theater, em Times Square. Só havia uma condição: o nome Joe Bari tinha de desaparecer. A partir dali, seria sempre Tony Bennett.

O início da jornada de sucesso

Foi em 1950 que Tony Bennett conseguiu o seu primeiro contrato discográfico, com a importante Columbia Records. Frank Sinatra tinha acabado de deixar a editora, havia uma lacuna a preencher, mas ao mesmo tempo existia a ideia de que não se deveria repetir a fórmula. Assim, Bennett foi direcionado para temas mais apelativos e comerciais. O seu single de estreia foi uma interpretação de “Boulevard of Broken Dreams”, mas o primeiro êxito só chegou no ano seguinte, com “Because of You”. Seguiram-se outros temas com algum sucesso: “Rags to Riches”, “Stranger in Paradise”, “Just in Time”. Depois de aproveitar a oportunidade para apresentar um programa televisivo de variedades, gravou dois álbuns com os Count Basie, que o reposicionaram como um crooner de jazz, apresentando-o ao público do género e abrindo o seu leque musical. Começou a fazer tours pelo país, atuando nas grandes cidades norte-americanas.

[no “MTV Unplugged”:]

Também foi nos anos 50 que se casou pela primeira vez, com uma fã que o vira a atuar em Cleveland. Com Patricia Beech, teve dois filhos: D’Andrea, que mais tarde se tornaria seu agente; e Daegal, que cresceu para se tornar produtor musical e engenheiro de som. Teria, depois, outros filhos fruto de outros casamentos.

Um dos seus maiores singles de sempre chegaria em 1962. Tony Bennett iria atuar em São Francisco e o seu pianista de longa data, Ralph Sharon, partilhou consigo uma canção que estava há um par de anos guardada, composta por George Cory e Douglass Cross. Bennett aceitou fazer uso do tema, gravou-o e assim nasceu “I Left My Heart in San Francisco”, que se tornaria um autêntico hino de amor à cidade californiana (tanto que, muitas pessoas, erradamente, julgam que Tony Bennett é natural de São Francisco). Foi o tema que lhe garantiu os dois primeiros Grammys — ao todo, conquistaria 20 galardões nos grandes prémios da música norte-americana. Nesse ano, deu ainda um concerto memorável no emblemático Carnegie Hall, que foi determinante para a consagração do seu estatuto e popularidade.

A difícil era do rock (e o seu apoio às causas progressistas)

À medida que o rock’n’roll se tornava no novo género entusiasmante da música norte-americana, no decorrer dos anos 60 e 70, os cantores clássicos como Tony Bennett iam perdendo alguma relevância e protagonismo. Muitos associavam-nos a sentimentos de nostalgia e tradicionalismo, achavam-nos antiquados, numa altura em que a América estava em profunda transformação: a guerra do Vietname e a ascensão do movimento hippie pacifista, bem como os marcantes protestos da comunidade negra que lutava pelos seus direitos civis, abalavam a sociedade e tornavam-na mais liberta dos moldes conservadores que a restringiam até então.

Apesar da sua música mais tradicional, Tony Bennett sempre foi um convicto apoiante do Partido Democrata, um homem de ideias liberais e progressistas que participou, por exemplo, na marcha pelos direitos civis entre Selma e Montgomery em 1965. Ao lado de Harry Belafonte ou Sammy Davis Jr., deu um concerto de apoio à causa, na noite que antecedeu o discurso de Martin Luther King que ficaria conhecido pelo lema “How Long? Not Long”. A voluntária que transportou Tony Bennett para o aeroporto após a marcha foi, nesse mesmo dia, assassinada por elementos do grupo extremista Ku Klux Klan. Mais tarde, o cantor também atuaria perante outras grandes figuras da história do século XX e XXI. Cantou para Nelson Mandela, na altura o presidente da África do Sul, em 1996 — anos depois de se ter recusado a atuar no país, quando ainda era governado pelo regime de apartheid. Fez a Casa Branca ouvir a sua voz quando cantou para John F. Kennedy e para Bill Clinton. Em 2002, no jubileu de ouro da rainha Isabel II, foi convidado para cantar no Palácio de Buckingham.

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Frank Sinatra e Tony Bennett em 1980

Michael Ochs Archives

Os anos 60 não foram fáceis. Por um lado, existia a pressão do lado da editora para se modernizar, o que o fez gravar o disco Tony Sings The Great Hits of Today! — com canções dos Beatles e de outros artistas da época —, um projeto que o próprio detestou fazer. Diria mesmo numa entrevista, mais tarde, que aquele álbum o deixou fisicamente indisposto. Na mesma altura, separou-se da mulher, graças à sua vida de constante estrada — e também, soube-se mais tarde, por causa de alguns casos de adultério. Eventualmente, a relação com a Columbia Records deteriorou-se e Bennett abriu a sua própria editora, a Improv Records, através da qual lançou o aclamado primeiro disco conjunto com o pianista Bill Evans.

Embora fosse um nome importante e estabelecido, o seu circuito estava cada vez mais diminuto e Tony Bennett dependia cada vez mais dos concertos nos casinos de Las Vegas para conseguir sustentar o seu estilo de vida. Em 1977, numa altura em que o punk rock e o hip hop emergiam da sua Nova Iorque, a sua Improv Records foi à falência, a sua mãe morreu e Bennett quase teve de entregar a sua casa em Beverly Hills. O segundo casamento, uma relação atribulada com a atriz Sandra Grant, também ficou pelo caminho nesses anos — e Tony Bennett começou a consumir drogas com alguma regularidade, desenvolvendo uma adição, naquele que ficou conhecido como um dos períodos mais negros da sua vida. Intoxicado e em pânico, numa noite de 1979 resolveu tomar um banho para relaxar. Quase morreu afogado. Foi a sua mulher, que ainda estava com ele, a literalmente tirá-lo da banheira e a salvar a sua vida.

Nessa fase difícil, começou a trabalhar com o filho. “Olha, estou perdido”, terá dito, como mais tarde explicou numa entrevista. “Parece que as pessoas já não querem ouvir a música que faço.” D’Andrea “Danny” Bennett compreendia que o ponto forte do pai eram os standards americanos — as suas versões dos grandes clássicos que todo o país conhecia —, que a nova geração admirava o estilo e que o caminho passava cada vez mais por aí. Aos poucos, e ao longo dos anos 80, Tony Bennett reergueu-se e, com o apoio do filho, cumpriu o plano que revitalizou a sua carreira.

O regresso ao estrelato

Convencido pelas alterações na estrutura da Columbia, aceitou regressar à editora em 1985, desta vez com mais condições para ditar aquilo que queria realmente fazer. No ano seguinte lançou o álbum The Art of Excellence, o seu primeiro trabalho editado em CD, um novo formato que estava a entusiasmar os jovens de então, que procuravam substituir as coleções de vinil dos pais. Os seus temas mereceram atenção em rádios mais jovens, ligadas ao universo do rock. “Apercebi-me de que os jovens nunca tinham ouvido aquelas canções, compostas pelo Cole Porter ou pelo George Gershwin. Para eles, aquilo era diferente. E se és diferente, destacas-te”, recordou numa entrevista mais tarde.

Além disso, Bennett participou de forma decisiva em programas importantes ao longo dos anos seguintes. Fazia participações regulares em “Late Night With David Letterman” e co-apresentou os MTV’s Video Music Awards de 1993, tendo gravado o seu MTV Unplugged no ano seguinte — numa altura em que a televisão vivia os seus dias de apogeu mediático. Tony Bennett conseguiu conquistar uma nova geração de fãs e reafirmar-se no panorama da música.

[em dueto com Lady Gaga:]

Por um lado, piscava o olho ao passado ao homenagear diretamente algumas das suas principais referências, como Sinatra, Duke Ellington, Billie Holiday ou Louis Armstrong. Por outro, colaborava com artistas mais novos ou de outros géneros musicais, refrescando e ampliando a sua audiência. Aos 80 anos, em Duets: An American Classic (2006), cantou com Céline Dion, Barbra Streisand, Sting e Stevie Wonder. Em 2011, no seu Duets II, partilharia o microfone com Aretha Franklin, Amy Winehouse, Queen Latifah ou Willie Nelson.

No século XXI, voltou a atuar com grande regularidade e a gravar diversos discos e canções. Passou por Portugal em 2003, quando se apresentou no Casino Estoril e no Casino da Póvoa de Varzim. Em 2007 casou-se com a professora Susan Crow, namorada de longa data que conhecia desde os anos 80. Com menos 40 anos de idade, Susan cresceu numa família particularmente fã de Tony Bennett — aliás, a sua mãe, quando estava grávida, chegou a tirar uma fotografia com o cantor. Juntos, Bennett e Crow abriram a fundação Exploring the Arts, para dar apoio a programas artísticos e educativos nas escolas, além de financiarem a Escola das Artes Frank Sinatra, em Queens. O seu legado filantrópico fez com que ganhasse mesmo a alcunha “Tony Benefit”.

Recentemente, a sua colaboração mais marcante aconteceu com Lady Gaga, outra cantora nova-iorquina de origens italianas, ainda que de uma geração e de um registo musical distinto. Os dois gravaram um álbum em 2014, Cheek to Cheek, fizeram uma digressão conjunta no ano seguinte e reuniram-se no estúdio para outro disco que chegou em 2021, Love for Sale, que também seria distinguido com um Grammy.

Ao todo, Tony Bennett terá vendido mais de 60 milhões de discos ao longo da sua vasta e prolífica carreira. Diagnosticado com a doença de Alzheimer em 2016, o progresso do problema de saúde foi lento o suficiente para que continuasse a atuar pelo mundo. Despediu-se dos palcos em 2021, aos 94 anos, quando foi revelada publicamente a sua condição. Ainda assim, aparentemente nunca deixou de fazer aquilo que melhor sabia. Segundo um pequeno texto publicado nas suas redes sociais, “ainda noutro dia estava a cantar ao piano”. O seu último tema? “Because of You”, o seu primeiro grande êxito. Como resumiu na sua autobiografia, “The Good Life”, editada em 1998: “Eu só queria cantar as grandes canções, canções que eu sentia que realmente interessavam às pessoas”.

 
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