“Entre nós e as palavras o nosso dever de falar”, escreveu há muito tempo Mário Cesariny. Isto quando a liberdade de falar estava vedada a um povo inteiro e, com ela a liberdade de pensar, de amar sem o perigo de ficar oxidado. Por todo o lado borbulha o medo, a sensação de estarmos de novo emparedados em Elsinore, agora por uma ditadura que policia a linguagem, que tenta reduzir à identidade a condição humana e todas as suas aporias, que apaga as metáforas, as ironias, que exige uma linguagem literal e persegue de forma fascista a arte, retirando-lhe a possibilidade de desassossegar, de aflorar estranhezas, interstícios, de se subtrair à ideia de que só existe a verdade dos factos, da tecnologia e da ciência, e não a verdade da poesia, do sonho, do mito.

Por isso, e antes que seja tarde, o encenador António Pires, encena “Os Gigantes da Montanha”, última e inacabada obra do italiano e Nobel da Literatura Luigi Pirandello, que vem avisar-nos, antes da II Guerra Mundial, que “no mundo dos homens já não há lugar para a magia mas apenas para o medo”.

Traduzida, em 2008, por Luis Miguel Cintra para o teatro da Cornucópia, esta peça, que se estreia esta quarta-feira, 26 de julho, nas ruínas do convento do Carmo, em Lisboa, agora pelo teatro do Bairro, faz deste monumento do século XIV um lugar aberto a todos os prodígios.

Os Gigantes da Montanha”, uma peça para 12 actores onde se discute o papel do teatro e a fronteira entre representação e realidade

A encosta de uma montanha, longe de tudo e de todos, talvez seja o ultimo lugar da terra onde é possível viver, como Alice, do outro lado do espelho. Onde é possível experimentar espaços nunca antes tocados pelos que transformam tudo em números, eventos, os que gerem o mundo. Medieval, Modernista, Futurista, esta montanha de geografia incerta faz ressoar ecos da Europa do Sul e da África e é habitada por gente que nasceu presa à forma humana, mas que sabe poder ser anjo, pássaro, marioneta, aristocrata, mendigo, poeta. Ali é, talvez, o último lugar da terra onde é possível ao teatro usar a sua principal matéria prima, a poesia.

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É certo que, na mesma montanha, habitam os gigantes sem nome, de quem nada se sabe a não ser que são muitos e acreditam ser os donos do mundo. Perante eles pode ainda fazer-se um teatro normalizado, numa sala, com cenários, adereços, dinheiro, máquinas, um teatro que já não é magia, mas um evento mundano que deve atrair multidões e gerar muito dinheiro. Os gigantes têm muitas opiniões, gostos, certezas e não gostam de coisas que não obedecem às regras, vigiam a linguagem, apontam o dedo a quem não segue a cartilha do politicamente correto, exigem submissão e não debate, reflexão, inquietude.

“Para mim estes gigantes são o público”, diz o encenador António Pires. “Há uma crise no teatro português que vem desde a decisão política de acabar com as companhias teatrais, colocar gestores que nos querem pôr a fazer o pino para terem muito público, mas depois as peças estão três dias em cena. Como é que se constrói um público para o teatro com este modelo? É impossível. O que acontece é que são sempre os mesmos que têm acesso e os outros, o que seria importante conquistar, nunca cá chegam.”

No complexo modernismo de Pirandello soam restos dos mitos que ergueram a cultura do mediterrâneo, as suas paisagens, as suas histórias ancestrais, os seus mistérios. Nela ergue-se uma visão do humano totalmente antagónica àquela que tenta implementar-se hoje em dia, onde a forma triunfa e esmaga  a subjetividade e o infinito que habita cada ser humano. A sua poética centra-se num questionamento continuo das fronteiras entre ficção e realidade, sujeito e objeto, rosto e máscara, ator e personagem. Nas suas peças, o poeta e dramaturgo italiano pergunta-nos, sem cessar, o que é a realidade, o que é a verdade, onde começa e acaba o Eu, e nunca dará uma resposta a qualquer destas questões.

O universo que criou, numa obra que passou pela poesia, o conto, o romance e o teatro é de tal maneira singular que deu origem ao neologismo “pirandelliano”. Ela instaura um mundo cheio de cisões e fraturas onde a verdade é sobretudo algo de subjetivo, onde habitam homens que perderam a capacidade de comunicar e que por isso se desintegram e se desconhecem.  Em “Os Gigantes da Montanha”, conta-se a história de uma companhia de teatro arruinada, da condessa Ilse Olsen que foi (ou é?) atriz, que tem como missão encenar a obra do seu amante morto, “A fábula do Filho Trocado”.

Sofia Marques, atriz com um longo percurso na Cornucópia, volta a fazer Pirandello, agora como a heroína trágica condessa Ilse Olsen

Desta companhia de aristocratas arruinados não conheceremos mais do que fragmentos e também nunca teremos a certeza de quem são, se estão vivos ou mortos, se são reais ou mais uma obra do mágico e poeta Cotrone (Adriano Luz) que governa a aldeia naquela encosta e desafia os atores a abandonarem a realidade e a materialidade dos seus corpos para viverem a todas as possibilidades anunciadas no porvir. Com ele habita a rilkeana Sirésia, que espera ser resgatada por um anjo, ou a mulher de vermelho que se deita com qualquer homem. Mas ali nada é aquilo que parece e todos estão sempre na iminência de se tornarem outra coisa qualquer, porque, como desvela Cotrone, “a realidade não é senão uma construção dos nossos sonhos ” e “cada um de nós cria o seu fantasma e fá-lo viver”. Descrente do mundo dos homens ele representa um mundo oposto ao da condessa (Sofia Marques) cuja luta por permanecer na realidade faz dela uma heroína trágica.

Esta fábula, escrita entre 1928 e 1936, que o dramaturgo deixou inacabada, espelha também a sua vida, as suas escolhas artísticas e políticas, pois Pirandello, sendo um defensor da liberdade e da fantasia, foi também membro do partido fascista de Mussolini. Porém, com esta peça ele parece dar-se conta dos perigos do futuro triunfal das máquinas cantado do Marinetti e celebrado por Hitler e Mussolini, onde a realidade só é entendida dentro dos domínios da razão e da lógica, e se rejeita toda a fantasia, misticismo, poesia.

Posicionando-se contra uma instalação progressiva do medo no seio da arte e dos atores, nos teatros e nos públicos, o encenador António Pires propõe-nos esta peça, onde se joga com as fronteiras permeáveis do que é verdade e do que é representação, dando ao público a possibilidade de resolver o final da história, convoca todos e cada um para pensarem se escolhem o caminho do medo ou o risco da liberdade.

A peça Os Gigantes da Montanha, de Luigi Pirandello, fica em cena até 19 de agosto, de segunda a sábado, pelas 21h30, e terá legendagem em inglês e língua gestual portuguesa