O relatório do Programa Nacional para as Hepatites Virais aponta para um ligeiro aumento de internamentos por hepatite B crónica, justificado com o aumento da migração forçada associada a conflitos armados, mas o aumento de casos confirmados de todas as hepatites, que ultrapassa os 400, deve-se também à retoma da atividade assistencial, afetada durante a pandemia.

Atualmente, Portugal realiza mais de quase 1,5 milhões de testes contra hepatite B e C em 2022 e os autores do documento insistem no rastreio. Para além disso, o relatório anual destaca ainda projetos de microeliminação da hepatite C, essenciais para eliminar as hepatites virais até 2030.

Segundo o relatório que é esta sexta-feira divulgado, os internamentos por hepatite B crónica passaram de 17 em 2021 para 21 no ano passado e os responsáveis alertam que tal pode ser explicado com o “aumento significativo” da migração associada a guerras em países onde a prevalência de hepatites virais B e C é muito elevada (1% e 3% da população da Ucrânia).

Teremos de estar atentos a esta situação, que pode vir a alterar a curva descendente que temos vindo a observar na última década, bem como implementar medidas de rastreio, diagnóstico precoce, tratamento e vacinação de hepatites virais B e C nas populações de imigrantes e refugiados”, alertam.

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Menos de 10% dos reclusos portugueses com hepatite C tiveram acesso a tratamento, diz relatório da OMS

Em declarações à Lusa, o diretor do Programa Nacional para as Hepatites Virais, Rui Tato Marinho, reconhece estes casos em imigrantes de países onde os cuidados de saúde não são bons, nomeadamente no continente africano e na Ásia, e diz que é recomendado aos médicos de medicina geral e familiar que assistam estas pessoas para, pelo menos uma vez, pedirem o teste.

Nós recomendamos aos colegas de medicina geral e familiar que, se avaliarem estas pessoas, (..) peçam o teste da hepatite B, C e HIV. Até para permitir que essas pessoas tenham os melhores cuidados de saúde, porque também precisamos deles para ajudar a fazer o país”, explicou.

O relatório aponta para uma diminuição dos internamentos por hepatites B e C crónicas na população portuguesa na última década: de 74 internamentos por hepatite B crónica em 2013 para 21 em 2022 e de 228 internamentos por hepatite C crónica em 2013 para 13 no ano passado.

Esta diminuição é mais significativa para a hepatite C crónica, sendo mais acentuada desde 2015, “coincidindo com o início da medicação com antivíricos de ação direta para a hepatite C”, refere o documento.

Os autores do relatório citam ainda um artigo publicado em abril de 2021 sobre a evolução dos internamentos por cirrose hepática em Portugal, de 2010 a 2017,que mostrou uma redução para metade dos casos de cirrose associada à hepatite C (de 424 internamentos em 2015 para 206 em 2017).

“Já no ano passado tínhamos notado, diminuiu muito. Até houve doentes que saíram da lista de transplante. E em relação à hepatite B a mesma coisa, por causa de 20 anos de vacinação”, explicou Tato Marinho.

O documento aponta, a nível europeu, a falta de dados epidemiológicos completos tanto na hepatite B como na C, incluindo as informações sobre a via de transmissão, casos importados e se se trata de hepatites crónicas ou agudas.

“Essa falta de dados abrangentes afeta negativamente a efetividade das estratégias de prevenção e controlo das hepatites virais, dificulta a monitorização das políticas e programas em curso e, em última instância, impede o progresso em direção aos objetivos globais de eliminação”, alertam os autores.

Retoma da atividade ajudou a aumentar casos confirmados notificados em todas as hepatites

De acordo com o relatório foram notificados na plataforma um total de 416 casos, dos quais 189 de hepatite C, 179 de hepatite B, 30 de hepatite A e 18 de hepatite E.

O documento aponta para uma melhoria na notificação de casos confirmados de todas as hepatites no SINAVE (Sistema Nacional de Vigilância Epidemiológica) de 2021 para 2022 e, segundo os autores do documento, este aumento do número de casos confirmados na plataforma de apoio “poderá ser justificado com a retoma da atividade assistencial, que foi afetada pela pandemia de Covid-19”.

O documento apresenta, pela primeira vez, dados referentes à hepatite E, que, apesar de menor magnitude quando comparada com as restantes hepatites, teve também um aumento de casos confirmados no ano passado (de 10 para 18).

A tendência de uma maior proporção de casos confirmados no sexo masculino mantém-se, representando cerca de 60% dos casos confirmados de hepatite B e 75% dos de hepatite C.

Considerando apenas os anos de 2021 e 2022, o documento indica que 45% dos casos confirmados de hepatite B têm apresentação crónica e 16% aguda.

Na maioria dos casos (84%) a forma provável de transmissão é desconhecida, em 4% admite-se que seja o contacto sexual heterossexual, em 3% a transmissão vertical (mãe/filho) e os restantes 9% terão outras formas de transmissão.

No que diz respeito à hepatite C, 41% dos casos confirmados têm apresentação crónica, 8% aguda e em 51% é desconhecida.

Nos anos de 2021 e 2022, em 38% dos casos confirmados a forma de transmissão da hepatite C era desconhecida, em 18% surgiu de lesões não ocupacionais (agulhas, mordeduras, feridas, tatuagens, piercings), em 15% por contacto sexual entre homens que têm sexo com homens, em 10% por contacto heterossexual e em 9% por contacto com sangue infetado.

Os últimos dados de prevalência nacional dizem respeito aos inquéritos serológicos nacionais 2015 — 2016, realizados pela Escola Nacional de Saúde Pública, pelo que os autores do relatório chamam a atenção para a necessidade de estudos mais recentes para se conhecer a atual prevalência nacional das hepatites.

Sobre os utentes em tratamento por problemas relacionados com o uso de drogas, relativamente à hepatite C, o documento indica que em 2021, após descidas consecutivas nos dois anos anteriores, houve um aumento da proporção de novas infeções “entre os injetores que iniciaram tratamento ambulatório”, sejam eles novos utentes ou readmitidos.

As hepatites virais foram reconhecidas como uma das principais causas de mortalidade a nível mundial, causando cerca de 1,34 milhões de mortes por ano (cerca de 4.000 por dia). Contudo, quando diagnosticadas precocemente, têm tratamento e são curáveis.

Na região europeia, 14 milhões de pessoas vivem com hepatite C e 112.500 morrem anualmente por esta infeção.

Portugal tem sido referido como um exemplo internacional no caminho para a eliminação das hepatites virais crónicas. Em 2021, registou uma taxa de 0,4 casos de hepatite C crónica diagnosticados por cada 100.000 habitantes, um valor inferior à média da UE/EEE (1,9 casos/100.000). No que se refere aos casos de hepatite C aguda, a taxa em Portugal foi de 0,1 casos/100.000 habitantes, também inferior à taxa de 0,3 casos/100.000 registada na UE/EEE.

A mortalidade por hepatites virais ultrapassa a mortalidade por outras doenças infecciosas, como a infeção por Vírus da Imunodeficiência Humana (VIH) (680 000), a malária (627.000), sendo similar à mortalidade por tuberculose (1,4 milhões).

Nas pessoas com hepatite C crónica, o risco de evolução para cirrose é de 15-30% aos 20 anos e, em caso de cirrose, a probabilidade de evolução para cancro no fígado é de 10-40% aos 20 anos.

A OMS estima que vivam em todo o mundo cerca de 58 milhões de pessoas com o vírus da hepatite C, que morram anualmente 290.000 por cirrose ou carcinoma hepatocelular, surgindo todos os anos cerca de 1,5 milhões de novas infeções. Para a hepatite B, as estimativas apontam para cerca de 300 milhões de pessoas que vivem com essa infeção, 820 000 mortes por ano e 1,5 milhões de novas infeções.

Quase de 1,5 milhões de testes contra hepatite B e C feitos em 2022

É uma das nossas mensagens principais: fazer o teste, pelo menos uma vez na vida, da hepatite B, hepatite C e HIV. Com apenas uma gota de sangue conseguimos saber se a pessoa está infetada ou não com três doenças que podem ser graves, mesmo mortais, mas que têm ou vacina ou tratamento ou cura”, disse Rui Tato Marinho.

O responsável alertou: “São doenças sem som — a hepatite B e C —, não fazem barulho. A pessoa pode andar uma vida inteira, 20 ou 30 anos sem saber que a tem e depois surgir numa fase mais avançada, como, por exemplo, o cancro do fígado”.

“O ideal é fazer as análises, como se faz para a diabetes, ou para as anemias, pelo menos uma vez na vida”, acrescentou.

Os autores lembram que a maior parte dos testes (cerca de um milhão) são prescritos pelos hospitais, mas avisam que os resultados podem estar subestimados, uma vez que existem centros de saúde com capacidade para realizar testes à hepatite C.

Peritos querem diretiva nacional para rastreio da hepatite em toda a população e apontam falhas no registo da doença

“De uma maneira geral, mesmo a nível mundial, há uma deficiente notificação das doenças, ou seja, os médicos não notificam muito os casos que lhes aparecem”, disse Tato Marinho, referindo que muitos dos casos são crónicos.

O relatório indica que, em 2022, houve acréscimo de 3% do acesso ao tratamento, tendo sido realizados 2.192. O diretor do programa diz que as coisas estão mais facilitadas, com menos burocracia, mas reconhece que depende de cada hospital o doente ter acesso imediato ao tratamento, na altura da prescrição.

“Por exemplo, no hospital de Santa Maria [Lisboa], o doente leva a medicação no próprio dia, portanto, não precisa de ir lá outra vez, como às vezes acontecia há um ano atrás”, exemplifica o responsável, lembrando: “Os hospitais de maior dimensão, que utilizam mais medicamentos, têm mais facilidade em ter stock ou pedir ao laboratório para trazer logo a medicação”.

A prevenção também teve resultados positivos em 2022, não só relativamente à vacinação contra a Hepatite B, com uma cobertura média de 97,8% nas últimas duas décadas, mas também através da distribuição de preservativos. Depois da redução na sequência da pandemia de Covid-19, houve uma subida de 34% no número de preservativos distribuídos, que ultrapassou os 5,2 milhões, um valor próximo do registado em 2019.

Apesar da tendência de decréscimo dos últimos 12 anos, o Programa de Troca de Seringas distribuiu no último ano mais de um milhão.

As metas para 2024 incluem a promoção do acesso imediato ao tratamento da hepatite C no momento da prescrição médica, da vacinação contra a hepatite B na população adulta, assim como uma melhoria do conhecimento sobre o tratamento da hepatite B em Portugal.

Melhorar a abordagem futura às hepatites “passará pelo acesso imediato aos tratamentos, de forma equitativa, ou pela melhoria do processo de notificação da doença, prevendo-se também a inclusão da Hepatite D como doença de notificação obrigatória”, refere uma nota da DGS.

Os autores do relatório mantêm para 2024 a intenção de cumprir “de forma global” os objetivos definidos pela Organização Mundial de Saúde para 2030 para as hepatites B e C, com uma redução da incidência (novos casos) em 90% e da mortalidade em 65%.

Segundo a DGS, como reconhecimento dos progressos registados na abordagem das hepatites, Portugal será, em 2024, o país anfitrião da 4.ª Cimeira Mundial das Hepatites, coorganizada pela OMS e pela World Hepatitis Alliance.

Relatório das hepatites homenageia organizações com projeto dos microeliminadores

Os projetos são incluídos, pela primeira vez, no relatório deste programa, um dos programas de saúde prioritários da Direção-Geral da Saúde (DGS), e abrangem grupos populacionais diversos como os reclusos, os utilizadores de drogas ou os doentes que fazem diálise.

Numa nota esta sexta-feira divulgada, a DGS salienta que, numa altura em que o número de novos casos notificados está abaixo dos 200 por ano, a aposta nestes projetos “depende muito da liderança das organizações não-governamentais”, a quem reconhece “o papel preponderante e de proximidade com as comunidades, nomeadamente no rastreio da hepatite B e C”, com tendência crescente desde 2014.

Um projeto piloto sobre a hepatite C abrangendo população sem abrigo do Grande Porto, que inclui rastreio, diagnóstico e tratamento, outro sobre redução de riscos e minimização de danos, que abrange intervenção de proximidade com pessoas que utilizam drogas no concelho de Espinho e outro que envolve a redução de riscos associados ao consumo de substâncias psicoativas e trabalho sexual nas freguesias de Barcelos, Arcozelo e Feitos, no concelho de Barcelos, são alguns dos projetos apontados.

O documento inclui ainda, como exemplo, o projeto Tolerância Zero, de eliminação da hepatite C na Figueira da Foz, um outro de intervenção de microeliminação da hepatite C em utentes internados para desabituação na Unidade de Desabituação de Coimbra, o SARA VI — Serviço Anónimo de Rastreio e Aconselhamento, em Leiria e na Marinha Grande, e também um projeto de rastreio e tratamento do vírus da hepatite C dirigido a população sem abrigo, pessoas que consomem substâncias psicoativas e pessoas migrantes na cidade de Lisboa.

Rui Tato Marinho, disse que a decisão de incluir estes projetos no relatório funciona como “uma homenagem” às organizações não governamentais envolvidas e ao trabalho que desenvolvem.

“Eles estão no terreno, vão dar alimento a estas pessoas, vão ajudar a recuperar, vão levá-los aos médicos. É uma forma de nós prestarmos homenagem a um trabalho extremamente importante. E estamos a falar de 50.000 portugueses que poderão viver nestas condições”, afirmou.

Rui Tato Marinho destacou o trabalho “extremamente importante” destas organizações e o seu “contributo social elevadíssimo”.

“Inclusivamente, contribuem para a pacificação social, pois muitas destas pessoas poderiam estar na prisão ou a fazer outras coisas menos próprias”, acrescentou.

Lembrou igualmente que estas organizações acabam também por contribuir para o controlo de algumas doenças psiquiátricas: “Se não fossem elas, [os doentes] não faziam medicação”.

Fazem um trabalho fantástico, muitas vezes não valorizado, porque são pequenas associações e médias associações, mas a quem o país deve muito. Na realidade, ajudam a salvar vidas, como nós, e também promovem a ligação destes cuidados mais de proximidade aos hospitais, onde se fazem os cuidados mais diferenciados”, sublinhou.

Este projeto dos microeliminadores envolveu igualmente o Infarmed e entre 15 a 20 organizações convidadas.