Em Junho de 2023, surge, novamente com selo da Companhia das Letras, mais um romance de José Gardeazabal. Na linha dos anteriores, a estratégia de comunicação do autor passa pela difusão dos sentidos. Em A mãe e o crocodilo, tudo é simbolismo, nada é tijolo assente, e a leitura per se é uma procura em vez de uma recepção.

Aqui, temos uma cidade fronteiriça, em disputa, e um homem lá dentro em busca do passado. Este passado vai aparecendo numa prosa que salta com regularidade entre analepses e prolepses, cabendo ao leitor montar um puzzle. Aliás, cedo se entende que a leitura não será escorreita e que caberá a quem lê procurar o sentido das peças para pôr a correr a engrenagem. Vladimir, narrador, trabalha numa fábrica de reciclagem que é uma ironia por si só, uma vez que deixa ao deus-dará tanto os trabalhadores quanto o ambiente. Estes toques de ironia são já habituais em Gardeazabal, que deles fez uso permanente em, por exemplo, Quando éramos peixes.

Vladimir vive com um crocodilo que o pai lhe deixou e uma mãe que nada lhe diz sobre o pai desaparecido. Está algures no centro da Europa, num lugar ex-fascista, ex-comunista e ex-industrial, tudo por esta ordem. O homem vai observando o crocodilo e fantasiando com a ideia de uma relação com uma mulher. Com isto, a narrativa vai existindo em dois planos: existe a questão do quotidiano, de um homem que se volta para os seus elementos próximos e para o que lhe falta; e existe a questão de um contexto que já parece fazer a súmula dos conflitos europeus do século passado. E, pelo século passado, depressa se chega ao XXI. A chegada de um grupo de refugiados à cidade muda as rotinas a Vladimir e, a uma primeira vista, podia parecer que serviria para que o romance desse uma guinada, mas, sendo esta uma composição fragmentária, a mudança de rumo de rumo existe só como sensação ao longe. Tal acontece porque a própria empatia com Vladimir – e isto apesar de este ser narrador, de o leitor estar ligado à sua voz e à sua forma de dizer – já se torna difícil. Esta parece ser a intenção do autor, que depura a prosa até só haver, mais do que sentidos, a ressignificação dos sentidos.


Título: “A mãe e o crocodilo”
Autor: José Gardeazabal
Editora: Companhia das Letras

Páginas: 176

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Na prosa, todos os elementos, mesmo que aparentemente inócuos, são veículos para interrogações sobre si mesmos. A fábrica faz reciclagem, mas a prioridade não é o meio ambiente. A ironia vem de caras. A obsessão de Vladimir – que é necessidade pungente – com a possibilidade de uma relação com uma mulher vai marcando a narrativa e parece enformar a personagem. Como a narrativa se vai constituindo por mosaicos – parágrafos em puzzle, à primeira vista desligados uns dos outros, compondo-se só a posteriori –, o assunto vai surgindo e vai avisando o leitor a cada passo. Nisto, vão sobejando os mantras, uma vez que a composição vai parecendo inorgânica, um conjunto um tanto desconexo de ideias, quase uma lista de tópicas. Com esta estratégia narrativa, a empatia não é dada ao leitor, nem parece pesada, uma vez que o autor seca a fórmula até ao esquema, quase transformando a literatura em matemática. Ao brincar com os significados dentro do texto, o autor obriga a que o leitor brinque – ou trabalhe – com eles lá fora, exigindo-lhe atenção e aviso permanente.

Com isto, toda a construção social dada é simbólica. E a fronteira, ainda que traga, também de forma evidente, para o campo literário um drama coetâneo, também é tratada de forma simbólica, sendo teatralizada. Ao tecer-se em saltos temáticos, o autor vai criando um fio em que, à semelhança de Quando éramos peixes, o contexto é que é o elemento interno da estrutura do romance. Vladimir parece figura central, e realmente possibilita esse enredo, mas a relação directa dissolve-se no jogo de intenções. A construção difusa parece o objectivo permanente – e com isto quer-se mesmo dizer isto: o objectivo de cada ideia, de cada tema, de cada parágrafo, de cada interacção.

Os diálogos, muito breves, também parecem servir para que o leitor continue a busca incessante da dimensão simbólica que enforma o texto. Assim, é difícil ver as personagens como gente, como mais do que elementos que compõem um símbolo. Quem lê o discurso directo não consegue ouvir uma voz, porque já está preso no que é dado à cabeça: tudo o que ali está não é o que é, mas o que poderá representar num jogo de extrapolação bem conseguido. Isto faz com que literatura e vida se separem por camadas de texto, sendo o leitor obrigado a parar com frequência, numa experiência de leitura que sabe sempre a coisa transitória. A opção do autor – de não parar em cenas – faz com que este abdique da empatia, da relação directa com as personagens, e isso põe-nas em causa enquanto gente. O leitor encara-as como artifícios e mete-se a ler como numa arena, num jogo, num teste.

Assim, A mãe e o crocodilo não será para todos os palatos. Funciona para quem busca uma experiência de leitura em que a montagem de peças e o efeito são o primordial. E, de todo, não funciona para quem queira fingir a crença de que o romance como a objectiva tradução da vida. Os artifícios ou encantarão ou desesperarão, num romance que não encontra o leitor a meio do caminho ou lhe dá a prosa a meio-termo. Claro que, para uns e outros, é possível que a opção por se abdicar totalmente da intimidade entre personagens e leitores acabe por criar clivagens que até no primeiro exemplo sabem a queda no vazio: ao não se tratar da coesão emocional e da psique de Vladimir, que vai moendo em queixas repetidas, também fica difícil não só pegar nos mosaicos que o autor não une (cabendo aos leitores uni-los), mas também conceder o sentido a certos fragmentos, tais como:

*

O patrão da reciclagem, o seu nome é Lázarus. Parece intencional, Lázarus soa a pseudónimo de homem morto.

*”
(p. 41)

Estas quebras permanentes impedem a prosa de ser escorreita, num pára-arranca permanente. Lê-se o romance como quem olha para um pontilhado e tenta criar uma visão panorâmica de uma peça mundana.

Com mais um romance, José Gardeazabal mostra que a sua abordagem narrativa passa mais pela representação do que pela vida. Tudo é encenação – e a encenação é a própria ironia que é dada de caras. Finda a leitura, o leitor lá entende que o que viu era uma representação longínqua que não passava pelo mantra que costuma subjazer à escrita do romance: acreditar que a coisa subjectiva é mesmo a objectiva tradução da vida. Em vez disso, temos a subjectividade – talvez o único elemento que vem sem artifícios.

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia