Doze anos após o saborosamente fantasioso “Meia-Noite em Paris”, Woody Allen voltou à capital francesa para rodar, desta vez em francês e só com atores locais, “Golpe de Sorte”, fotografado por mestre Vittorio Storaro, que descobre em Paris o brilho e os matizes da luz estival e outonal de Manhattan. Aliás, pelo meio social em que se passa a história, o da burguesia urbana endinheirada, pela forma como o realizador encara visualmente a cidade, pelas características das personagens, pela direção dos atores e pela atmosfera geral,  “Golpe de Sorte” podia muito bem passar-se em Nova Iorque.

[Veja o “trailer” de “Golpe de Sorte”:]

Fanny (Lou de Laâge), uma rapariga bem casada e com um confortável emprego numa grande casa leiloeira, começa a enganar o marido, Jean (Melvil Poupaud), um investidor de sucesso mas de personalidade algo suspeita, com um escritor, Alain (Niels Schneider), seu antigo colega de faculdade. Fanny reencontrou-o por acaso na rua e ele veio recordar-lhe os tempos despreocupados de estudante, em que tinha interesses artísticos e culturais, e frequentava meios boémios muito diferentes do aborrecido, fútil e intelectualmente limitado círculo de amigos do marido, que só falam de viagens e de restaurantes.

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[Veja uma entrevista com Woody Allen:]

Pelo seu enredo, pela ideia narrativa, pelo desenvolvimento dramático e pelas implicações existenciais e morais, Golpe de Sorte é reminiscente de (melhores) filmes anteriores de Woody Allen como Crimes e Escapadelas e Match Point, tendo uma personalidade e um toque mais leve — e um desenlace digno da melhor comédia negra (que é ao mesmo tempo uma “piada de sogras” macabra). O filme é ainda evocativo do cinema de um realizador como Claude Chabrol, através do meio burguês em que decorre e de um enredo que envolve adultério, ciúmes e vingança, com uns pozinhos hitchcockianos.

[Veja uma cena do filme:]

Como sempre, Woody Allen escreveu também o argumento de Golpe de Sorte (numa entrevista recente, Martin Scorsese chamou-lhe “o único realizador americano realmente independente”), que trabalha as ideias de liberdade individual, acaso, sorte e coincidência, e o seu papel e peso na vida das pessoas. E tira interpretações caracteristicamente “allenianas” do seu elenco francês (Melvil Poupaud é particularmente impressivo no filistino e algo sinistro Jean), onde a encantadora Lou de Laâge e Valérie Lemercier (esta na sogra que lê policiais e capta o cheiro a esturro) fazem, respetivamente, os papéis que teriam ido para Scarlett Johansson e para Diane Keaton se o filme tivesse sido rodado nos EUA.

Allen filma Golpe de Sorte com a elegância eficaz e a limpidez no contar que lhe são conhecidas, o equivalente cinematográfico de um compositor cuja partitura não tem uma nota a mais nem a menos, e que flui sem a menor impressão de elaboração ou de esforço (e por falar em música, a banda sonora, cheia de jazz dos anos 60, é surpreendentemente “modernaça”, tendo em conta os gostos do realizador). Este é o seu 50.º filme, e talvez o último. Esperemos que não, porque mesmo em tom menor, Woody Allen faz-nos sempre falta.