Primeiro acena-se uma bandeira vermelha contra a exploração da floresta da Amazónia. No palco, a poeira da terra que cobre o chão ainda assenta e já se escutam os acordes de uma guitarra. Os brasileiros Frederico Araújo e Pablo Casella entoam primeiro uma canção, num dos lados do palco. “Há coisas monstruosas, mas nada é mais monstruoso do que a humanidade”, canta-se. No lado oposto, os belgas Sara De Bosschere e Arne De Tremerie fazem parte de um elenco que se estende simbolicamente até ao estado do Pará. Falam de Antígona, a personagem que dá nome à tragédia clássica de Sófocles, como a personificação de um gesto “radical” contra o patriarcado, a ditadura e a injustiça. “Antígona é alguém que está fora da sociedade, a quem é permitido viver na cidade, mas que não tem os mesmos direitos”, diz a atriz. Estamos na Antígona na Amazónia, a peça encenada por Milo Rau, em colaboração com o Movimento de Trabalhadores Sem Terra (MST), que se apresenta dias 11 e 12 de novembro, na Culturgest, em Lisboa. Segue depois para o Teatro Municipal do Porto, onde é apresentada dias 16 e 17.
Estamos perante uma alegoria sobre a luta política e a resistência. Uma peça onde o passado não se esquece e que irrompe pelo presente. Foi há 27 anos, a 17 de abril de 1996, que um grupo de trabalhadores rurais protestava, pacificamente, em Eldorado de Carajás, no estado do Pará, no Brasil, quando foram confrontados com a polícia militar que abriu fogo. Nesse dia fatídico, conhecido como Massacre de Eldorado do Carajás, foram assassinados 21 manifestantes, num evento que ficou para a história do Brasil e que agora se recria em palco. Estabelece-se assim um diálogo entre a peça de Sófocles, ambientada na antiga Grécia, e a luta de ativistas e indígenas no Brasil dos nossos dias. E tal como Antígona se insurge contra Creonte, também os ativistas se insurgem contra a tirania do Estado e a violência policial.
Em palco, as quatro pessoas-intérpretes revezam-se entre personagens de Sófocles e de si próprias, para dar corpo à tragédia grega, à sua adaptação à Amazónia contemporânea e à construção do próprio espetáculo. Em paralelo surgem ainda três grandes telas verticais, na qual são reconstruídos os acontecimentos de 1996, e onde o ativista indígena Ailton Krenak surge no papel do vidente Tirésias, sem que se altere a sua visão do mundo. Encontramo-nos ao mesmo tempo no coração da mítica cidade de Tebas e no estado do Pará, onde a floresta amazónica é saqueada e destruída pela ganância humana.
Para Antígona na Amazónia, Milo Rau e a sua equipa deslocaram-se ao estado brasileiro do Pará, onde as florestas ardem devido à expansão da monocultura de soja e onde a natureza é devorada pelo capitalismo. Num pedaço de terra ocupado, em colaboração com o MST – o maior movimento de trabalhadores sem terra do mundo – aborda-se a devastação e deslocamento violentos causados pelo estado moderno, que coloca a propriedade privada acimado direito tradicional à terra.
Ao Observador, o encenador suíço explica que todo o projeto surge devido a um convite feito pelo MST, a começar pela visita ao local do massacre. “Foi lá que fizemos um workshop junto com ativistas locais e nacionais do movimento, e conversar com alguns representantes dos povos indígenas”, conta Milo Rau. Foi também devido a esse encontro que surgiu a ideia de reinterpretar o mito grego. “A ideia veio do MST e entendi muito bem o porquê: trata-se da tragédia do choque da sociedade tradicional com a moderna, uma tragédia sobre a lei moral contra a lei do capitalismo. E começa com um massacre. É sobre corpos insepultos, sobre resistência — todos temas centrais para a luta do MST”, salienta o encenador.
O poder da reconstituição
A utilização do vídeo assume-se como elemento central, visto que muitos dos participantes vivem no Brasil, constituindo-se também como forma de transportar o espetador para o local onde tudo sucedeu. Entre as sequências de vídeos e a própria teatralização que acontece em palco, Antígona na Amazónia assume o seu carácter reconstitutivo – que aliás suscitou polémica nas apresentações da peça no Brasil e tentativas de repúdio. Demonstra-se a brutal opressão policial em vídeo e no palco. A poeira da terra volta a levantar-se. No ecrã surge igualmente a ativista indígena Kay Sara e o coro é formado por sobreviventes do massacre e suas famílias que vivem no Assentamento 17 de abril, terra ocupada desde 1996. Recorda-se uma vez mais a história clássica, em que Creonte, por alegadas razões de Estado não quer permitir o enterro do irmão de Antígona e viola a lei dos deuses, mergulhando sua família e toda a cidade em desastre. Aquilo que no tempo de Sófocles era cantado como noção sinistra de um apocalipse tornou-se facto histórico há poucas décadas naquele mesmo estado brasileiro.
Mas mais do que o futuro da floresta da Amazónia ou da sobrevivência daquelas comunidades, o que está em causa no palco é a própria sobrevivência do planeta, que “exige que sejam erguidos valores de solidariedade e empatia, de diálogo e respeito perante os valores humanos”. Traça igualmente um retrato histórico do Brasil, não deixando por isso de tocar em temas como o impacto da pandemia de covid-19 no país, a ditadura militar e a presidência de Jair Bolsonaro. O espetáculo, de resto, deu origem a um boicote a todos os produtos da Agropalma, uma empresa produtora de óleo de palma, assim como de outras grandes empresas agroalimentares. A “Declaração de 13 de maio”, nome do manifesto, foi assinada, entre outros, pela Nobel de Literatura francesa Annie Ernaux e pelo intelectual americano Noam Chomsky.
Um teatro da resistência
Ao pegar na tragédia grega, o encenador suíço não esconde o seu próprio posicionamento político, que transpõe nas suas criações. Como lugar de entendimento universal, em que o presente se confronta com a ausência, a beleza com o horror e o ativismo com a luta de certas comunidades, o teatro é “lugar de manifesto”. Não deixa por isso de afirmar uma mensagem, por mais instrumental que isso possa parecer: “A história não é simples e às vezes é dramática, mas a solidariedade pode superar tudo. Todos morremos sozinhos, mas deveríamos viver e criar juntos e nesse espetro vejo teatro como lugar de união”.
Por mais que Antígona na Amazónia suscite um olhar distanciado do massacre de 1996 e da própria exploração da floresta da Amazónia – embora resulte de um trabalho conjunto com ativistas e indígenas brasileiros – que nem sempre é bem entendido, traz para cima da mesa um tema que continua a suscitar debate. É a arte que neste caso suscita uma reflexão sobre o ativismo e sobre a solidariedade – uma vez que não deixa de ser uma peça produzida por uma companhia europeia, a NTGent, em colaboração com o MST. De regresso ao palco, volta-se à ideia inicial. O mais monstruoso dos monstros continua a ser o homem. É nele que principia e acaba um princípio de exploração e procura pela riqueza, mesmo que pelo caminho haja espaço para a violência e a opressão. Neste caso, dir-se-ia, que por mais séculos que passem a causa que move Antígona é também aquela que pode salvar a floresta da Amazónia, bem como a própria humanidade.