O momento de fazer uma mamografia e passar depois à sala do lado, aguardando, deitada na marquesa, que o exame seja concluído e alguém diga alguma coisa sobre o que viu é uma rotina que causa uma ponta de ansiedade a quase todas as mulheres.

Guadalupe Cabral não é exceção. Também a investigadora da NOVA Medical School (Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa) se sente apreensiva sempre que chega a altura de fazer estes exames de rastreio.

O cancro da mama é aquele que mais mulheres mata todos os anos”, diz a cientista de 47 anos. “Além disso, surge cada vez mais em mulheres novas, com filhos pequenos, e é preciso investir em formas de tratamento que lhes possam dar tempo e qualidade de vida.” É precisamente esse investimento que ela tem feito.

Bióloga de formação, licenciada na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, Guadalupe fez o doutoramento em Biotecnologia no Instituto Superior Técnico (IST), numa área muito diferente: trabalhava com leveduras, para tentar perceber as respostas das nossas células a compostos tóxicos, como os herbicidas. Depois ainda começou um pós-doutoramento em plantas, mas cedo percebeu que não era a área em que se imaginava a trabalhar no futuro.

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Foi em 2007, quando integrou a Nova Medical School, que encontrou o verdadeiro interesse de investigação: a imunologia. Interessa-lhe compreender melhor o sistema imunitário e perceber como é que o podemos usar para tratar doenças ou minimizar o efeito delas, sendo que, nos últimos anos, se tem dedicado ao estudo do cancro, sobretudo da mama.

O cancro da mama não é apenas uma doença. São várias. Há vários subtipos, com características diferentes. O que Guadalupe estuda é um dos mais agressivos: corresponde apenas a cerca de 15% dos casos, mas é responsável por mais de um terço das mortes

Uma das grandes promessas – e esperanças – da medicina de precisão contra o cancro são os biomarcadores, moléculas expressas pelas células tumorais ou por outras, que podem ser medidas e servem para conhecer e tratar melhor o tumor. Porque a doença a que chamamos cancro da mama não é apenas uma doença. São várias. Há vários subtipos, com características diferentes, sendo os principais identificados por conhecidos biomarcadores: os cancros hormonodependentes com receptores de estrogénio ou progesterona e o HER2 – marcado pelo receptor de crescimento epidérmico tipo 2.

Mas há um quarto subtipo que não se define pela presença de nada, mas antes pela ausência: chama-se triplo-negativo, exatamente porque não é positivo para nenhum dos outros três biomarcadores que já estão estabelecidos. E isto é um problema porque conhecê-lo tão mal, significa que não é possível fazer tratamentos-alvo dirigidos.

É um subtipo muito agressivo, com muita tendência para metastizar e, apesar de corresponder apenas a cerca de 15% dos casos de cancro da mama, é responsável por mais de um terço das mortes. É uma frase difícil, mas a verdade é que cancros triplo-negativo metastizados não têm cura. Tenta prolongar-se a sobrevida das pacientes através de quimioterapia e, muito recentemente, a imunoterapia foi também aprovada para travar a doença. “Mas a taxa de resposta é de menos de 20%. Portanto, é  importante termos alguma coisa que ajude a predizer se faz sentido sujeitar as doentes a este tratamento.”

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Guadalupe e a sua equipa estão a desenvolver um biomarcador com esse objetivo,  num projeto reconhecido pela Fundação “la Caixa”, em colaboração com a Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT). A equipa identificou recentemente um sub-grupo específico de neutrófilos (um tipo de glóbulos brancos) com muitas propriedades imunossupressoras que se encontra no sangue das doentes com cancro da mama metastático. E Acreditam que eles contribuem para a agressividade do cancro e que, quando os valores estão muito aumentados, a imunoterapia não vai ser muito eficiente. “A imunoterapia pretende aumentar a resposta dos linfócitos – que matam as células cancerígenas”, explica. Mas se há muitas células imunossupressoras – que fazem exatamente o oposto, bloqueando a resposta imunitária – esta estratégia terapêutica não funciona. Assim, nos próximos dois anos, a equipa tentará estabelecer uma prova de conceito que demostre que este sub-grupo específico de neutrófilos pode funcionar como um biomarcador que ajude os médicos a orientar este tratamento, usando-o só nos casos em que há benefício.

Mas não é apenas isso que estão a tentar fazer. Seria, afinal, um trabalho um pouco ingrato desenvolver tanta investigação apenas para apontar as doentes que não vão beneficiar deste tratamento, não tendo elas outras opções disponíveis. Passada esta fase, querem trabalhar em soluções para oferecer a quem não vai responder à imunoterapia por esta razão.

“O nosso biomarcador também poderá servir de alvo terapêutico”, explica a investigadora. “Estamos a tentar arranjar uma forma de impedir que estes neutrófilos que estão em circulação cheguem ao tumor.” Isso aumentaria a possibilidade de resposta da paciente à imunoterapia.

Nos próximos anos, Bruna Correia, Guadalupe Cabral, Rute Salvador e Daniela Grosa tentarão estabelecer uma prova de conceito que demostre que um sub-grupo específico de neutrófilos pode funcionar como biomarcador

A cientista – que vai começar nos próximos meses o seu próprio grupo de investigação – está a desenvolver todas estas experiências em amostras de sangue de doentes com cancro triplo-negativo metastizado, através de uma colaboração com o Hospital Prof. Dr. Fernando Fonseca (Amadora-Sintra) e Hospital do Barreiro. Considera esta relação entre a academia e os hospitais absolutamente essencial. É por isso que, como professora, não se limita  a ensinar Biologia Celular e Molecular e Mecanismos Moleculares de Doenças – as disciplinas que leciona neste momento – aos estudantes de Medicina. Vê na docência uma oportunidade de mostrar aos alunos que a investigação e a medicina têm que andar de mãos dadas. “Como investigadora que quer fazer investigação translacional [a aplicação dos conhecimentos científicos ao “mundo real”], preciso muito da colaboração dos clínicos e, às vezes, isso não é muito simples”, refere.

Este projeto entusiasma-a precisamente por essa razão: pela possibilidade de vir a criar uma ferramenta que possa chegar à prática clínica e à vida das pessoas. “Às vezes é um bocadinho frustrante para o investigador publicar os seus artigos e depois não ver as coisas implementadas.”

Com este projeto, Guadalupe está determinada a que esta boa ideia não fique só no papel. Quer contribuir para um melhor tratamento de todas as mulheres que, no futuro, terão de ouvir um(a) médico(a) a dar-lhes más notícias nos fim dos exames de rastreio.

Este artigo faz parte de uma série sobre investigação científica de ponta e é uma parceria entre o Observador, a Fundação “la Caixa” e o BPI. O projeto de Guadalupe Cabral, investigadora da INOVA Medical School, foi selecionado para financiamento pela fundação sediada em Barcelona, ao abrigo da edição de 2023 do CaixaImpulse Validate, um programa que promove a transformação do conhecimento científico criado em centros de investigação, universidades e hospitais em empresas e produtos que geram valor para a sociedade. A investigadora recebeu 49 mil euros. As candidaturas para a edição de 2024 deverão abrir em breve.