Quando o realizador mexicano Alejandro Monteverde começou a trabalhar, em 2015, com Rod Barr, no argumento de Som da Liberdade, inspirado numa reportagem televisiva sobre tráfico de crianças para exploração sexual, e nas experiências de Tim Ballard, um antigo agente do Departamento de Segurança Interna norte-americano, encarregue do combate à pornografia infantil, e depois fundador de uma ONG que combate o tráfico de menores, a Operation Underground Rairoad, não imaginava a dificuldade que o filme ia ter para chegar às salas, e que iria ficar no centro da “guerra cultural” que se trava nos EUA.

Som da Liberdade ficou pronto em 2018 e ia ser distribuído pela 20th Century Fox latino-americana. Quando a Walt Disney comprou a Fox, o filme foi posto na prateleira, por motivos ideológicos, pelo seu tema ser considerado demasiado sensível ou por razões meramente comerciais. O realizador e o produtor Eduardo Verástegui readquiriram então os direitos da fita à Disney e foram em busca de outro distribuidor. Depois de muitas recusas, conseguiram um acordo com os Angel Studios, que produzem filmes, programas e séries para a família e de conteúdo cristão, financiados por crowdfunding, processo esse também utilizado para a promoção e a distribuição de Som da Liberdade.

[Veja o “trailer” de “Som da Liberdade”:]

A inteligente e ousada campanha alternativa feita pelos Angel Studios para lançar e promover Som da Liberdade, usando um sistema de compra e oferta de bilhetes dos espectadores a outros espectadores, usando seus iPhones, seguindo o apelo do actor Jim Caviezel, que interpreta Tim Ballard, e que acompanha a ficha técnica final da fita, resultou em cheio. Beneficiando também de muito “passa-palavra”, Som da Liberdade tornou-se no primeiro filme independente a passar os 100 milhões de dólares de receitas nos EUA após a pandemia, e num dos vencedores das bilheteiras em 2023. E permitiu ao também independente AngelStudios esfregar esse sucesso na cara dos grandes estúdios, produtoras e plataformas de streaming que se tinham recusado a distribuí-lo ou exibi-lo. Incluindo a mesma Netflix que produziu o filme francês Mignonnes, de Maïmouna Doucouré, elogiado pela representação sexualizada e “libertadora” de raparigas menores, e premiado na Europa e nos EUA.

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[Veja uma entrevista com o realizador Alejandro Monteverde:]

Entretanto, e devido às associações – assumidas e nunca ocultadas — de Som da Liberdade com a direita conservadora, cristã e anti-“woke”, e ao facto de ter sido apoiado e recomendado por nomes com Elon Musk, Mel Gibson, Mark Wahlberg, Ben Shapiro, Jordan Peterson, a cantora Jewel ou o próprio Donald Trump, a esquerda mediático-cultural norte-americana, parte da crítica e um considerável setor de Hollywood começaram a atacar e a tentar denegrir o filme, procurando, nomeadamente, assimilá-lo ao movimento radical QAnon, ou a ignorá-lo como se não existisse. Nada disto beliscou o impacto sobre o público e a carreira comercial de Som da Liberdade, quer interna, quer internacionalmente, tendo acumulado até agora uma receita global de 250 milhões de dólares. 

[Veja uma entrevista com Jim Caviezel e Tim Ballard:]

Olhando para Som da Liberdade para lá de todas as controvérsias e como objeto cinematográfico acima de tudo, vemos um tipo de filme que se fez muito raro nos últimos anos, e que, nas décadas de 70 a 90 era comum: o thriller de produção média sobre um assunto de atualidade, e com ressonância social e projeção global. Só que em vez do batidíssimo tráfico de armas e de drogas, a fita fala do tráfico de crianças para exploração sexual, da prostituição de menores ao uso por pedófilos (e, por extensão, da pornografia e da escravatura infantil). Um tema “desagradável e incómodo de referir em sociedade”, como diz a personagem principal. E que mexe também com redes estabelecidas, e interesses e figuras poderosas e influentes (veja-se o caso de Jeffrey Epstein), tendo já, em termos humanos e de dinheiro, proporções muito próximas ao das armas e das drogas.

A história segue Tim Ballard (um calmamente magnético Jim Caviezel), que, frustrado por apenas capturar pedófilos e não conseguir ter influência no salvamento de crianças traficadas, vai para o terreno tentar resgatar uma menina hondurenha e o seu irmão mais novo, que foram raptados e enviados para a Colômbia por uma rede que usa uma ex-rainha de beleza para atrair as crianças com o pretexto de estar a recrutar talentos jovens para o mundo da moda. Lá chegado, Ballard conta com a preciosa ajuda de Vampiro (Bill Camp), um antigo membro de um cartel da droga que cumpriu pena e depois, arrependido da sua vida de crime, resgata crianças por conta própria, usando o seu conhecimento do submundo local.

[Veja uma sequência de “Som da Liberdade”:]

Som da Liberdade é filmado com eficaz sobriedade por Alejandro Monteverde, que sabe mexer-se no formato do thriller de “suspense” e ação. O realizador recorre à sugestão e à elipse nos momentos mais sensíveis, e ilude as armadilhas da manipulação lacrimal e dos discursos de “mensagem” (que fica para Caviezel na referida intervenção final, em que diz que os “verdadeiros heróis da história são as crianças”, e frisa que “os filhos de Deus não estão à venda”), com uma narrativa escorreita, clara e descritiva. E que, sem mochila de teorias conspiratórias, dá uma ideia das ligações, dos esquemas, dos circuitos, dos recursos e do tipo de pessoas envolvidos no tráfico de crianças para exploração sexual ou trabalho escravo na zona do mundo em que Som da Liberdade se ambienta.

Mas dois dos momentos mais impressionantes de Som da Liberdade têm a ver com imagens que não pertencem ao filme, e que Alejandro Monteverde achou por bem incluir na abertura e no fecho. São, respetivamente, de câmaras de vigilância a registar raptos de crianças (incluindo de um bebé) em ruas e lugares públicos de países da América Latina, e das crianças verdadeiras libertadas por Tim Ballard e pelas forças militares colombianas na “ilha de prazer” para pedófilos ricos que é recriada na fita. É a forma do realizador dizer que o que Som da Liberdade conta e que pode ser tomado por alguns como um exagero ficcional ou uma liberdade dramática, não o é: corresponde à própria realidade.