Há uma certa maneira lisboeta de ser um restaurante indiano. De ambiente escuro, forrado a madeiras e com umas tigelinhas de metal cheias de molhos mais fervilhantes na temperatura do que no picante. Era assim o Calcutá no Bairro Alto, em Lisboa. Tal como para o bairro, os últimos anos do Calcutá foram de decadência e, agora, pela mão de um antigo cliente, o restaurante renasce afinado e especializado na cozinha goesa sem rótulos de autêntico. É um goês lisboeta e chama-se Laranja Tigre.

A História

O anterior Calcutá ficou conhecido entre os moradores e trabalhadores do bairro nos anos 1990 e início dos 2000, quando os quarteirões traseiros estavam cheios de escritórios e redações de jornais. Este era um dos poisos noite dentro dos jornalistas, depois do fecho tardio das edições, e Afonso de Melo, então do jornal A Bola, era o cliente número 1.

“A certa altura ele tinha a chave, para quando queria vinha para cá escrever, e era ele que trazia pessoas — os amigos para ver a bola ou para a apresentação de um livro”, conta Ricardo Regalo, um dos sócios do novo Laranja Tigre, juntamente com Afonso de Melo. A história dos últimos anos já é conhecida: o Bairro Alto começou a perder moradores e a ganhar despedidas de solteiros estrangeiros cheios de sede.

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O declínio do bairro foi acompanhado pelo do Calcutá. O dono mudou-se para Londres e mantinha-se apenas o fiel chefe de sala, Nilesh, e o tal cliente com a chave. Surgiu assim a oportunidade de Afonso ficar com restaurante e daí a convidar o amigo Ricardo (que já tinha experiência na restauração em projetos como o Delidelux ou o Boi-Cavalo) para a sociedade foi um instante.

“A princípio nem estava muito para aí virado, mas percebi que o espaço era bom, conseguimos manter a renda — o que era importante. Entretanto a pessoa envolve-se, vê que isto tem piada”, conta Ricardo Regal. A história do espaço e a ligação pessoal de Afonso de Melo a Goa apontou a direção do restaurante e o nome foi roubado a um dos seus romances, Uma Sombra Laranja-Tigre, passado em Goa. Juntou-se a isto um cozinheiro com fascínio pelo desconhecido, pela falta de regras e que nunca pisou Goa ou a Índia: Hugo Brito.

Há dez anos que Hugo Brito mantém o nunca acomodado Boi-Cavalo em Alfama, noutra colina da cidade, onde se instiga a cozinhar com aquilo que não conhece e que encontra nas prateleiras dos mercados e mercearias étnicas de Lisboa. Abordar agora um receituário que só conhecia na ótica do consumidor “foi interessante, é trabalhar dentro fronteiras que não são definidas por mim”, diz. Correu e revisitou todos os goeses da cidade, do Tentações de Goa ao Zuari, encheu-se de livros de cultura gastronómica e de receitas. A conclusão a que chegou “é maradíssima: é perfeitamente possível fazer um restaurante goês de aletria e canja de galinha”, diz. Mas o ângulo que mais lhe interessa e que executa no Laranja Tigre é a ideia que os lisboetas têm da cozinha goesa: o sarapatel, o caril de caranguejo, o xacuti e a bebinca.

O Espaço

Quem nos dá as boas vindas é Nilesh, o chef de sala que há mais de 20 anos recebe os clientes neste espaço. O ambiente está, no entanto, bastante diferente, passou a ser luminoso e colorido, com a arrumação de um restaurante familiar de domingo.

A partir do Largo Camões, entrando no Bairro Alto pela Rua do Norte, não há que escalar muito. O Laranja Tigre está logo no segundo quarteirão, no número de 17. “Há restaurantes que as pessoas queriam que existissem”, diz Hugo Brito, “este restaurante é isso. Os portugueses adoram comida indiana e nós somos um restaurante agradável que nasce um bocado a partir da experiência que temos dos restaurantes indianos [em Lisboa], às vezes muito escuros e que usam produtos não muito bons. Não queremos ultrapassar um certo nível de preço, mas é essencial ter ingredientes com qualidade.”

No Laranja Tigre, há dois menus de almoço de 14€ ou 17€ e, ao jantar, uma refeição fica, normalmente, por 30€ por pessoa. Se ao início da tarde é fácil chegar e almoçar, ao jantar vale a pena marcar e talvez cruzar-se com um dos heróis da seleção de 2004. Afonso de Melo pertenceu à equipa de comunicação da Federação Portuguesa de Futebol durante o europeu. O futebol parece estar no sangue deste restaurante e Ricardo Regal promete que, em breve, este será um bom sítio para assistir a jogos, à tarde — estão abertos das 12h00 às 00h00 — com uma cerveja numa mão e cajus com malagueta na outra.

A Comida

Todas as semanas, os cozinheiros do Laranja Tigre atravessam o Largo Camões e vão buscar uns cinco frangos assados à Casa da Índia. Depois de desossados, são o segredo mal guardado das chamuças de frango do restaurante (2,5€), identificável à primeira dentada, suculenta e cheia de sabor a churrasco. Estas chamuças clássico-instantâneo são um bom exemplo do que Hugo Brito quer fazer no Laranja Tigre. Há que baralhar e voltar a dar.

Depois da pesquisa e de chegar aos elementos e processos estruturantes de cada receita, Hugo Brito quis “manter tudo o que tem de ser, tirar tudo o que não tem”, resume. Em vez da batata para ligar o recheio da chamuça, há pão ensopado no molho do frango que dá estrutura e extra sabor aos fiapos de carne: uma ideia praticamente pornográfica para amantes de frango de churrasco. As restantes chamuças tentam elevar este salgadinho — ora com pedaços grandes e tenros de vegetais sazonais (2,5€), outra com garoupa e batata (3€), a mais picante das chamuças, que “faz lembrar o nosso peixe assado com batatas”, ri-se Hugo Brito.

As chamuças são também um bom exemplo de como o menu se foi construindo com os cozinheiros que estão todos os dias na cozinha (ao contrário de Hugo Brito, mais presente no Boi-Cavalo). Manzoor é indiano e já tinha trabalhado no Calcutá e, neste regresso, trouxe consigo o conterrâneo Ashok. Ambos chegaram com técnica e experiência adquirida em hotéis e restaurantes lisboetas ao que juntam, aqui, o que aprenderam nas cozinhas de suas casas.

“No caso das chamuças ou das bases dos caris muitas vezes a receita começou com a pergunta ‘como é que a tua mãe fazia?”, recorda Hugo Brito. “Tivemos sorte das pessoas [que trabalham na cozinha] se conhecerem e serem amigas. É diferente estar num sítio onde as pessoas se conhecem e têm disponibilidade para fazer uma cozinha colaborativa”, continua.

Como se vê pelo caso das chamuças, não há o risco do Laranja Tigre parecer autêntico. O mesmo se poderá dizer em relação a pratos como o vindalho (15€), em que em vez de uma carne estufada é servido novilho marcado no ponto com o molho tradicional, ou o caril de couve-flor (12€), em que parte da couve é cozinhada separadamente para manter uma textura mais firme — por cima, leva um caramelo picante de pevides de melão, também pouco tradicional deste prato. No sarapatel (14€), enriqueceu-se o prato tradicional, adicionando carne de porco ao que era apenas vísceras e sangue; nos caris (12€ a 17€) opta-se por sabores mais aromáticos do que picantes e no ambot tik (16€) de tamboril procura-se o lado ácido da cozinha goesa.

A distância entre Hugo Brito e Goa é assumida quando fala sobre estes pratos e surge várias vezes a ideia de que este é um olhar ocidental e até pessoal. Houve por isto uma reflexão sobre a apropriação e recriação destas receitas. “Tudo o que está aqui vem de um lugar de curiosidade, não de autoridade. Há racismo em Portugal, há uma estratificação social baseada no local de origem. Somos um país com a nossa própria diáspora e um país de mistura. Há muito a fazer quanto ao nosso passado colonial”, diz o chef.

A cozinha goesa expressa precisamente essa história colonial, com o domínio do porto da cidade desde o século XVI e a administração imperial portuguesa até aos anos 60, quando os restantes colonialismos europeus já tinham deixado a Índia. O receituário goês torna-se uma interseção entre a administração burguesa portuguesa, os produtos locais e as culturas do sul da índia e a imigração entre Goa, Moçambique e Portugal adicionam-lhe mais camadas culturais e de sabor.

Numa região em que cada família tem a sua história complexa, continental e extra-continental, “não há um cânone”, apercebeu-se Hugo Brito ao estudar os livros de receitas. “Percebi que, de livro para livro, havia variações para cada receita, como de família para família. A estratégia foi pôr-me lá: como é que eu me adaptaria a esta cozinha? Eu tenho um palato mais ácido do que a cozinha goesa, então vamos mais para os ácidos. Temos menos picante porque não estamos num clima tropical em que tem de estar tudo super-picante para se conservar”. No Laranja Tigre, um dos receituários “mais picantes das cozinhas regionais indianas”, como descreve Hugo Brito, está amenizado, acessível aos palatos portugueses. É, assumidamente, Goa vista de Lisboa.

“Cuidado, está quente” é uma rubrica do Observador onde se dão a conhecer novos (e renovados) restaurantes e cartas.