Depois de ver Duna — Parte Dois, a continuação do filme de 2021 de Denis Villeneuve baseado no monumental clássico de ficção científica de Frank Herbert, fiquei a gostar ainda mais da versão que David Lynch rodou em 1984. Juntando um elenco fabuloso, o realizador de Veludo Azul conseguiu a síntese possível de uma história complexíssima passada num futuro muito distante, no interior de uma sociedade planetária imperial e assente em lealdades do tipo feudal, consistente e plausivelmente construída e em que se cruzam componentes políticas, religiosas, económicas, ecológicas e tecnológicas, conduzida por um poderoso sopro de grande aventura intergalática com reverberações de space opera, mas também rica de momentos humanos.

Esta segunda parte, em que Paul Atreides consegue alçar-se a líder dos Fremen, os habitantes do desértico planeta Arrakis fértil na preciosa especiaria que é a trave-mestra da economia naquele universo, e que combatem a tirania dos Harkonnen, tornar-se na figura messiânica de que falavam as profecias locais e levar os insurgentes à vitória, vingando-se daqueles e da traição do imperador, repete as qualidades da primeira. Tem pulmão épico, alguns momentos de grande cinema (ver o combate de Feyd-Rautha com os Atreides sobreviventes na colossal arena a abarrotar de público, num planeta tutelado por um sol negro, ou o ataque dos Fremen nos gigantescos vermes da areia), espectacularidade de encher a vista e uma boa visualização das tecnologias daquele mundo.

[Veja o trailer de “Duna — Parte Dois”:]

Mas além das qualidades de Duna, esta continuação mantém igualmente os seus defeitos — e acrescenta-lhes outros. Denis Villeneuve continua a insistir numa solenidade e numa circunspeção algo presunçosas, que tolhem o andamento do filme, prejudicam o tom e são um contrapeso à dimensão espectacular, fazendo com que a narrativa ande numa jiga-joga de tempos mortos e de sequências de ação; e abusa da palha visual dos grandes planos de “reflexão” angustiada do Paul de Timothée Chalamet, e de reacção da Chani de Zendaya (Villeneuve deve ter andado a ver filmes de Ingmar Bergman a mais).

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[Já saiu o primeiro episódio de “Operação Papagaio”, o novo podcast plus do Observador com o plano mais louco para derrubar Salazar e que esteve escondido nos arquivos da PIDE 64 anos. Pode ouvir também o trailer aqui.]

Por outro lado, em Duna-Parte Dois, a sociedade dos Fremen é desmesuradamente “islamizada” na sua caracterização global, fazendo com o planeta Arrakis pareça ter-se transformado numa versão galáctica de Marrocos ou do Sudão. Aquilo que na obra de Frank Herbert, e no filme de David Lynch, são referências, sugestões, implícitos e influências do mundo e da cultura árabe, e do tempo em que o livro foi escrito (Herbert disse que Arrakis era também uma metáfora do Médio Oriente, e a especiaria, do petróleo e da sua importância mundial), torna-se aqui, pese o interessante efeito cinematográfico, chapada e exageradamente explícito.

[Veja uma entrevista com Denis Villeneuve:]

Denis Villeneuve e Jon Spaihts, que escreveram o argumento a quatro mãos, deturpam também em vários aspetos a história original de Duna. Não se lhes perdoa sobretudo um clímax de que a pequena Alia, a poderosa e clarividente irmã de Paul, que consegue ver através do espaço e do tempo, está ausente. Neste Duna-Parte Dois, Alia está ainda na barriga da mãe e passa o tempo em diálogos telepáticos com esta, e o filme é bem mais pobre sem ela.

[Veja uma entrevista com alguns dos atores principais:]

O canastrãozinho Timothée Chalamet e Zendaya continuam insípidos, incolores e inodoros como Paul Atreides e Chani, e o Feyd-Rautha de Austin Butler não chega nem aos calcanhares do de Sting no Duna de David Lynch. Apenas Rebecca Ferguson em Lady Jessica, Charlotte Rampling na gelada Madre Superiora das Bene Gesserit, Xavier Bardem no fiel e místico Stilger e Josh Brolin no inafundável Gurney Halleck, se destacam num elenco em que Léa Seydoux como Lady Margot, Christopher Walken no imperador, e Florence Pugh na princesa Irulan, têm espaço para dar apenas um ar da sua graça.

[Veja uma sequência do filme:]

O realizador já disse que queria dar continuidade à saga Duna e filmar o segundo livro da saga, Dune Messiah, assinando assim uma trilogia, pelo que se percebe a conclusão meio “pendurada” de Duna — Parte 2. A rodar Dune Messiah, Villeneuve terá que se esforçar para fazer mais e melhor que neste Duna dividido em dois, onde é fiel ao livro de Frank Herbert com uma mão, para o trair com a outra. E ora está em ponto morto, ora anda em quinta a fundo.