No início era Maria da Graça. O filme de Dandara Ferreira e Lô Politi começa por aí, antes de Gal Costa existiu uma miúda da Bahia que em meados dos anos 1960 se juntou com amigos (Caetano Veloso, Maria Bethânia, Gilberto Gil, Tom Zé, etc.) no Rio de Janeiro para começar uma carreira como cantora. Eles estão lançados, com outra mentalidade, vanguardistas, visionários, a querer mudar as coisas, a querer absorver o mundo, e, ao mesmo tempo, que os mundo absorvesse o que eles tinham para dar. Maria da Graça era uma estranha no meio disso tudo.
No filme, Maria da Graça que é Gal Costa é interpretada por Sophie Charlotte e a atriz entrega-se totalmente a esta ideia de transformação que o biopic Meu Nome É Gal quer construir. É uma Gal balizada no tempo, entre a chegada ao Rio e o início dos anos 1970, momento de ditadura militar no país, mas também um período em que não há muitos registos audiovisuais da cantora. Por isso, o filme podia imaginá-los, há liberdade para reconstruí-los, para trabalhar uma Gal Costa que a maior parte do público nunca viu, só pode imaginar.
Por isso, Maria da Graça estranha-se um pouco, estranha-se ainda mais porque Sophie Charlotte faz um bom trabalho em esconder a sua Gal Costa. A atriz falou com o Observador via Zoom, durante uma pausa nos estúdios da Globo, estúdios esses onde conheceu, pela primeira vez, Gal Costa, quando estava a filmar a telenovela Babilónia. Nesse momento, Sophie Charlotte ainda estava longe de imaginar que um dia seria a diva no cinema. O convite já vinha aprovado pela própria Gal Costa: “E era o meu momento de a reencontrar e aproveitar essa oportunidade. Tivemos alguns encontros ao longo desses anos.”
[o trailer de “Meu Nome é Gal”:]
Um desses encontros, entre seis e dez, a atriz não consegue precisar, é recordado com alguma emoção e propósito: “Ela era uma mulher absolutamente simples no trato. Num dos nossos encontros, fomos a um restaurante em Salvador, era um restaurante super refinado, muito chique. E ela perguntou ao chef se ele podia fazer uma moqueca de ovo para ela. A moqueca de ovo é uma versão mais simples do que a de peixe, para quem não tem acesso a peixe ou aos frutos do mar; eu nem sequer conhecia moqueca de ovo. Ela era muito simples, muito humana, normal mesmo.” O episódio serve para ilustrar quem existia para lá da “super-heroína” (como Charlotte muitas vezes se refere a Gal), da super estrela da música brasileira.
Ao longo de Meu Nome é Gal, a mulher no centro de todas as atenções é também uma artista em processo de transformação. Uma transformação que termina no espectáculo ao vivo de Fa-Tal, o histórico álbum ao vivo de 1971. Porque depois disso há outra Gal, melhor, maior, uma outra Gal para um novo mundo, que pode ser procurada e (re)vista em vídeos de YouTube. O único momento que o filme replica, e bem, é a participação de Gal Costa no Festival de MPB da TV Record em 1968 com Divino Maravilhoso. Charlotte mimica o momento na perfeição, criando também uma espécie de rito de passagem para a Gal Costa que existe dentro do filme: “Eu estava muito apreensiva, fiquei assistindo incansavelmente o vídeo, e ficava cada vez mais apaixonada, procurando todos os momentos e movimentos. Não queríamos que fosse uma mímica absoluta e que perdesse a expressão, a expressão teria de ser mais importante.”
E é. Aí confirma-se o que já percebíamos nas cenas anteriores: Sophie transforma a sua Gal dentro do filme, até então ainda muito dentro da carapaça da Maria da Graça, tímida, medrosa, com pavor na hora de agarrar o momento, mesmo quando o momento era mais do que certo. Sophie, que passou os últimos anos e a pandemia enfiada na cabeça de Gal, solta-se, dá-nos a Gal Costa que se está à espera de ver e, com isso, transforma Meu Nome é Gal.
De certa forma, há aqui um ato de contrição. Seja porque se quer que o espectador veja a Gal que se habituou a ver na televisão, nos espectáculos, na música, a nascer daquela menina que chega ao Rio de Janeiro e que vai crescendo ao longo daqueles anos; seja porque há um desejo dos realizadores em mostrar aquele Brasil da ditadura militar e de criar um paralelo com os anos de Bolsonaro. “Passámos por uma criminalização da classe artística, sem precedentes, durante o governo de Bolsonaro. O medo começou a fazer parte do nosso pensamento, da nossa criação artística. Aqueles anos também ajudaram a perceber o que aqueles jovens artistas [os do filme] estavam passando na época da ditadura militar. Com outras proporções, claro, mas se o momento político fosse outro, talvez a gente se sentisse mais distante e não tivesse uma ideia tão romantizada. Mas como foi, distante daquela vivência [a ditadura militar] e sentir o medo e perceber a importância de você se colocar politicamente ativo para si e para o mundo.”
Em Meu Nome é Gal a ditadura militar é o antagonista. Como é que se quebra com isso, como se resiste? O filme de Dandara Ferreira e Lô Politi é uma tentativa de contar também essa história, misturando as ideias e as vivências de um grupo de artistas que encontrou o seu momento e queria virar esse momento a seu favor. E tal como nada disso se poderia contar sem Gal Costa, também a história de Gal Costa não poderia ser contada sem essa luta.