Poucas pessoas se aperceberam, na noite de 12 de maio de 1982, que o Papa João Paulo II tinha acabado de escapar a mais um atentado — exatamente um ano depois de ter sido atingido a tiro na Praça de São Pedro e dessa vez em pleno Santuário de Fátima.
Marcelo Rebelo de Sousa, na altura Secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros, era um dos muitos milhares de católicos presentes — “Eu estava lá”, revela dias depois da estreia do podcast “Matar o Papa” ao Observador.
E, tal como a grande maioria dos presentes, continua a contar, também o agora Presidente da República não deu por nada. Estava demasiada gente, foi tudo demasiado rápido e demasiado confuso: “Escapou-me”.
[Já saiu o primeiro episódio de “Matar o Papa”, o novo podcast Plus do Observador que recua a 1982 para contar a história da tentativa de assassinato de João Paulo II em Fátima por um padre conservador espanhol. Ouça aqui.]
Instalado nas colunatas, com os restantes membros católicos do governo da AD, encabeçado por Francisco Pinto Balsemão, Marcelo, que dentro de muito pouco tempo viria a assumir a pasta dos Assuntos Parlamentares, assistiu à celebração a partir de cima. E à distância a que a histórica enchente de peregrinos obrigava. “Estava muito longe, quer da Capelinha, quer do percurso que o Papa fez. Quer dizer, via o percurso à distância. Havia uma multidão brutal.”
Era a primeira vez que João Paulo II, Papa desde 1978, visitava Portugal. E essa visita, muito ansiada, estava longe de servir apenas para cumprir calendário. João Paulo II anunciou desde o início que a passagem pelo país e, especialmente, pelo Santuário de Fátima, tinha um objetivo apenas: agradecer por ter escapado com vida ao atentado do ano anterior.
A multidão, que o acompanhou desde a chegada a Lisboa, nesse mesmo dia, pela hora de almoço, juntou-se ao Papa, quis agradecer com ele, e acorreu em massa à Cova da Iria.
Marcelo Rebelo de Sousa tinha 33 anos. Descreve um santuário diferente, com capacidade para mais pessoas, mas com níveis de segurança que deixavam muito a desejar e que “não eram o que são hoje”.
“O recinto era na altura muito maior do que é agora, porque não havia a Basílica da Santíssima Trindade. Portanto, eram mais umas centenas de milhares de pessoas que iam até ao fundo do santuário. E estava cheio, as ruas contíguas, tudo cheio”, recorda, 42 anos depois.
“Quando o Papa passava, havia, naturalmente, movimentação nessa zona. As pessoas aproximavam-se, queriam chegar, queriam contactá-lo e tal. Não se teve a noção de que, no meio dos que o iam contactar, com os mais diversos pretextos, havia alguém que iria tentar chegar ao Papa para o matar.”
Esse alguém, viriam a descobrir no dia seguinte Marcelo e o resto do mundo, era o padre espanhol ultraconservador Juan Fernández Krohn — que conta, no podcast “Matar o Papa”, toda a sua história de vida, antes, durante e depois daquela fatídica noite de maio de 1982.
Uma visita “verdadeiramente única”
Católico, devoto de Nossa Senhora e presença assídua em Fátima, mais até “ao longo do ano do que no dia 13 de Maio ou no dia 13 de Outubro”, Marcelo Rebelo de Sousa tinha estado na presença de João Paulo II escassas horas antes do atentado do padre Krohn, em Lisboa.
“Ele recebeu, na Nunciatura, os membros do governo. E, portanto, fomos lá, o primeiro-ministro, Francisco Pinto Balsemão, os ministros e os secretários de Estado da Presidência do Conselho de Ministros”, recorda. “O Papa João Paulo II era mariano, e isso aproxima-me muito dele, porque é exatamente como vejo a minha fé, é uma fé que passa por Maria.”
Foi a primeira, mas não a última vez que esteve com o Papa, conta. Em 1991 e no ano 2000, quando a terceira parte do segredo de Fátima foi finalmente revelado ao público pelo cardeal Angelo Sodano, na presença da Irmã Lúcia e com um já muito debilitado João Paulo II ao lado, Marcelo voltou a acompanhar o Papa em Portugal.
Nenhuma dessas visitas foi sequer comparável com a de 1982, garante. “Essa primeira vinda foi verdadeiramente única, porque ele percorreu vários pontos do país, e porque houve um grande encontro de juventude. E porque apesar de ele ter sido, de facto, atingido, tinha uma vitalidade que não tinha nada a ver com o Papa que encontrei mais tarde, quer quando voltou a Portugal, quer quando fui a Roma”, explica Marcelo Rebelo de Sousa, para recordar depois as missas a que também assistiu no Vaticano, antes de abril de 2005, mês em que João Paulo II morreu, aos 84 anos.
“Estive na Praça de São Pedro em algumas das aparições dele, e uma vez, no que foi uma das últimas vias sacras que fez, fisicamente. Era um Papa que embora psicologicamente tenha sido sempre forte e muito determinado, fisicamente estava muito, muito, muito diminuído.”
A “conversão” do Papa Francisco
A maior afinidade que tinha com João Paulo II, foi justamente a maior diferença que Marcelo Rebelo de Sousa descobriu em Francisco, o primeiro Papa que recebeu na qualidade de Presidente da República Portuguesa, em maio de 2017.
O Papa Francisco, revela, não só nunca tinha estado no Santuário de Fátima como duvidava das descrições que o próprio Presidente português lhe vinha fazendo. “É raríssimo. Os bispos vêm sempre pelo menos uma vez a Fátima, são convidados ao longo da sua vida, fazem peregrinações. Mas o Papa Francisco nunca tinha estado em Fátima. E então, para ele era uma dúvida: ‘Como é estar em Fátima?’. E chegou, não direi cético, mas perante as descrições que eu lhe fazia, e que lhe faziam, ele dizia: ‘Mas será mesmo assim?’”
No final, depois da Procissão das Velas e de uma travessia noturna do santuário, diz Marcelo Rebelo de Sousa, o Papa argentino, “para quem Fátima não tinha nenhum significado senão distante”, terá saído rendido. Ou melhor: convertido.
“Ele estava num lado do santuário e ia dormir ao outro, então decidiu atravessar a pé. E há ali uma realidade que é muito impressionante, um fenómeno estranho, coletivo, que se sente e que é indefinível, que concretamente o converteu”, explica Marcelo, para depois revelar a última conversa que teve com o Papa Francisco nessa ocasião, já à porta do avião que o transportou de volta a Roma.
“No momento da partida, depois da canonização dos pastorinhos, ele vai embarcar e eu pergunto: ‘E então?’. E ele diz: ‘Estou convertido, estou convertido. Eu entrei com dúvidas, mas estou convertido a Fátima’.”