Em Clube Zero, de Jessica Haustner, filme estreado em Cannes do ano passado da Secção Oficial que chega agora às salas portuguesas, a transgressão joga-se a bem do planeta. Não há fumo, só chás dietéticos, meditações questionáveis e planos para mudar vícios numa questão fundamental: comer. É neste limbo entre querer espetar a faca num dos temas mais populares dos dias de hoje e deixar encarregados de educação a questionar as suas próprias escolhas que o filme se insere. No entanto, atacar os problemas do mundo sem ter uma boa história para contar pode deixar o espectador de barriga vazia. É o que acontece aqui.
Uma professora, miss Novak (uma gélida Mia Wasikowska), traz um novo método para um colégio interno internacional que ajudará os alunos, através de uma “alimentação consciente”, a melhorar as notas e a conseguir bolsas de estudo para a próxima fase. A relação com a comida, os distúrbios, a excessiva dependência da escola na educação dos filhos, deixam fugir um pequeno grupo de alunos para um culto onde o objetivo é deixar de comer. Menos uma grafada aqui, fechar a boca ali, tudo sem ser bem explicado aos pais, que acreditam piamente em miss Novak, mulher aprumada, sem filhos, que nunca deve ter dito uma asneira na vida. “Só é preciso ter fé” e os resultados aparecem. Uma sátira (não muito) negra a apontar para as discussões sobre as alterações climáticas com um menu de mensagens atuais sobre o excesso de consumo que está a destruir o planeta e a cabeça dos jovens.
O prato até está bem servido: uma cinematografia que nunca se excede, nem na cor, no guarda-roupa ou nos movimentos de câmara. Os miúdos é que vão transgredir para se libertar, os décors podem estar ridiculamente impecávies. Nem se apressa a esgotar as potencialidades daquele ambiente — o que não tem sido o caso de algumas produções internacionais de maior escala que ficaram obcecados com as vicissitudes da adolescência, ora romantizando-as, ora tornando-as num autêntico filme de terror que serve bem o negócio. O problema são os ingredientes que compõem Clube Zero, que anda a ver se nos consegue dar uma lição de boas maneiras sobre o que raio anda a acontecer nas escolas sem que quem está de fora (os pais, sobretudo) saibam.
[o trailer de “Club Zero”:]
Não é que o filme não acerte no alvo, é querer demasiado que esse alvo vá para casa a pensar de certa maneira. E, pelo meio, não acerta no tom. Nem muito dramático, nem muito cómico. Nem carne, nem peixe. Assim, assim, o que não ajuda. Conhece-se bem o problema deste universo, onde muitas crianças chegam mal nutridas às aulas e só na escola é que tem uma boa refeição, em que cada vez mais adolescentes se deixam apanhar pela superficialidade do corpo perfeito vindo das redes sociais e em que a parte laboral oprime (ou os pais deixam que oprima) o tempo para educar os seus rebentos. Esta grupeta de estudantes, em que cada um com o seu objetivo — que pode ir desde conseguir uma bolsa de estudo para não dar mais despesas à mãe solteira ou melhorar as técnicas de ballet para o espectáculo final do colégio interno — tem uma atitude desprovida de grandes emoções, um bando de jovens zombies à procura de salvação.
Quase como se Jessica Haustner quisesse mesmo alfinetar todo o processo de criação de discípulos à volta de um líder (miss Novak, neste caso) que costuma pairar em cultos religiosos. Alguns desses momentos têm realmente graça, como os que vemos na cantina, em que simulam que estão a comer, ou nas suas próprias casas, onde as discussões que mantêm com os pais — “não querias que eu perdesse peso?” — subvertem os seus papéis familiares e sociais. O fio do riso perde-se quando já não há mais caminho para talhar. Que é dizer: quando o segredo do método de miss Novak é descoberto e dá-se por terminada a “alimentação consciente” que estava a deixar os alunos em muito maus lençóis.
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▲ A transgressão faz parte do nosso crescimento. Só que o mais provável é acabarmos a dizer: não, neste clube nem sequer devíamos ter entrado
Acaba por ser curto o desafio que a realizadora nos propõe, porque nunca arrisca demasiado nem mostra vontade de borrar a bonita pintura que criou à volta das paredes da escola. Mesmo sendo um filme sobre um dos grandes problemas que assombram comunidades escolares, nunca é capaz de ultrapassar essa aparente responsabilidade de não se desviar do que realmente quer transmitir. À australiana Mia Wasikowska, que vai saltando entre produções grandes para crianças e cinema independente, nunca lhe dão espaço suficiente para brilhar, já que a sua simpatia neurótica podia ter piorado a situação dos seus alunos para nosso agrado (caso sejamos espectadores que gostam de boas provocações). Sendo que é o grande nome do filme, ao lado de Sidse Babett Knudsen (Borgen), esperava-se, imagine-se, muito mais protagonismo na tela.
Jessica Hausner, que ganhou um certo nome em festivais como Cannes (além de Clube Zero o ano passado, Amor Louco, 2014, estreou na secção Un Certain Regard nesse ano) ou Veneza (Lourdes, 2009, venceu o Prémio FIPRESCI), tem revelado apetite por temas pesados tratados com sabor a humor. O seu mais recente filme mostra uma viragem para o reino do cinema falado em inglês. Não há problema algum com isso. Menos quando se sente que a cineasta se deixou aburguesar, ser politicamente incorreta mas com maneiras, evitando ser menos ambiciosa do que o próprio tema do filme. Talvez não nos quiséssemos juntar ao Clube Zero, mas claro que o queremos conhecer, nem que seja às escondidas. A transgressão faz parte do nosso crescimento. Só que o mais provável é acabarmos a dizer: não, neste clube nem sequer devíamos ter entrado.