Finalmente, a bola começou a rolar. Num continente diferente, num país distante, num estádio igualmente emblemático, com adeptos das duas equipas de cada lado – algo que até nem deveria acontecer em condições normais. Esta é a história da final mais longa de sempre. O antes não mais será esquecido, o depois também não. Faltava saber o durante. E o durante trouxe um novo argumento para o River Plate poder assumir o atual momento de destaque face ao Boca Juniors.

O que nasce torto tarde ou nunca se endireita, diz-se. E tudo começou na primeira mão, com o adiamento de 24 horas devido a um temporal fora do comum que deixou o estádio alagado, do relvado às bancadas. No dia seguinte, 11 de novembro, a bola fez aquilo que não conseguia na véspera: rolou. E rolou mais um bocado, para um lado e para outro. Rolou para a baliza do River Plate ainda na primeira parte, rolou para a baliza do Boca Juniors na jogada a seguir. A Bombonera, aquele habitual vulcão em erupção, cuspia lava do mais genuíno e puro que o futebol pode ter. No final, tudo na mesma: empate a dois.

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Todos aguardavam o dia 24 de novembro de 2018. Em Buenos Aires, na Argentina, na América do Sul, no Mundo. Os rivais centenários iam a jogo mostrando a faceta mais destemida. Sabiam que quem perdesse ficaria com essa marca no currículo e no coração durante anos a fio mas nem por isso deixaram de preparar-se para ganhar e apagar com esse triunfo todos os insucessos no passe. Afinal, a probabilidade da mais importante competição continental ser disputada por dois clubes do mesmo bairro era pequena; isso transformava algo por inerência grande num jogo gigante. O mais importante de sempre. Aquele que só viria a ser realizado a 9 de dezembro, num contexto completamente diferente. Pelo meio, o futebol (e a própria sociedade, que chegou a temer também pela realização do G20) do país teve vergonha; no futuro, veremos também se a ganhou.

Tudo começou com o ataque com pedras e garrafas de alguns hinchas do River Plate ao autocarro do Boca Juniors. Pelo meio, houve gás pimenta de adeptos e gás lacrimogéneo da polícia. Muitos jogadores xeneizes ficaram com dificuldades respiratórias e irritações nos olhos, alguns sofreram pequenos cortes, o capitão Pablo Pérez foi o mais afetado e teve mesmo de ir às urgências do hospital pela lesão sofrida num olho. Antes e depois, houve variados focos de confronto com as autoridades. O jogo foi adiado, a seguir mais uma vez adiado, depois alterado para o dia seguinte, por fim atirado para uma data a definir. Foi um descontrolo total dos adeptos aos dirigentes, nos atos e nas palavras. Dois dias depois, a decisão estava tomada – contra aquilo que o Boca queria ia mesmo haver jogo, contra aquilo que o River queria ia realizar-se fora do Monumental e do país. Que esteve para ser na América do Sul. Depois em Miami. A seguir em Doha. Madrid foi como uma dádiva: quando surgiu essa hipótese, tudo acelerou e ficou resolvido. O número de candidaturas à organização provou que um SuperClássico nunca o deixa de ser.

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Durante duas semanas, aquilo que se falou foi da falência do futebol argentino. Da degradação social e económica que facilitou um ainda maior enraizamento dos elementos mais radicais nas barras bravas às ligações perigosas entre os líderes das principais claques e o principais setores de poder, como o político ou o judicial. Pediram-se medidas. Hoje, amanhã e para ontem. Por figuras ligadas ao desporto, à literatura, à economia, ao jornalismo. O primeiro verdadeiro passo foi dado pelos “desconhecidos”. Aqueles que se divorciaram, que ficaram desempregados, que venderam o carro, que deixaram a casa que tinham, que andaram à procura de sítio para dormir, que estiveram horas a fio em frente a um computador, que deram dois, três ou quatro ordenados por um bilhete. Havia um dispositivo de 4.000 efetivos e cada clube tinha as suas “zonas” de concentração mas foram muitos os cruzamentos com direito a imagem para a posteridade. Mais do que uma foto, era uma mensagem.

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Da parte dos jogadores, a melhor mensagem surgiu nas fotos da chegada e do aquecimento. Boa disposição, aquele brilho nos olhos, motivação em alta à procura daqueles segundos mágicos de uma carreira que se perpetuam por décadas a fio em caso de sucesso coletivo no final. Caras conhecidas, muitas caras conhecidas, para aquele que sempre teve todas as condições para, em campo e dentro das quatro linhas, ser um jogo memorável. A final mais longa (e atípica) de sempre prometia ser um hino capaz de, por 90 minutos, apagar todos os atos e palavras que a mancharam. Era tempo de escrever a melhor das histórias neste tipo de dérbis centenários que prendem milhões aos televisores, aquela que é escrita com os pés.

“Hoje, os jogadores têm um compromisso com a dignidade e os hinchas a obrigação de defender com orgulho e em paz a paixão que os une. A carne e os jogadores (neste caso, termos redundantes) são produtos argentinos de exportação. Esta semana, duas ganaderías inteiras viajaram 10.000 quilómetros para jogarem o jogo com mais alto nível simbólico da Argentina e com a máxima repercussão na América do Sul (…) Os jogadores, desconcertados, resignados e seguramente obrigados, não disseram uma só palavra perante o roubo à sua própria gente do espetáculo mais sonhado, do jogo mais amado no país mais futebolizado. Foi melhor assim. Porque se algo que está a sobrar nesta grande final são as palavras”, escrevia este domingo no El País Jorge Valdano, antigo internacional argentino e um dos maiores pensadores do futebol na atualidade.

Marcelo Gallardo, ainda a cumprir castigo, viu o jogo do camarote do River no Bernabéu. E que falta fez lá em baixo, no relvado: ao contrário do que tinha acontecido nos últimos dérbis, o Boca foi superior no plano tático e os millonarios andaram sempre presos a uma ideia de jogo onde deviam ser caçadores e passaram a presas com o posicionamento do meio-campo xeneize. Assim e sem surpresas, todos os lances com algum perigo pertenceram ao conjunto de Schelotto, como uma recarga ao segundo poste de Pablo Pérez após canto (10′); uma recarga também do capitão xeneize após livre de Benedetto que saiu a rasar a baliza contrária (30′); e mais uma grande investida de Villa na direita, com Armani a desviar de forma atenta (40′).

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Com linhas mais baixas, a explorar as transições e a profundidade, o Boca estava melhor, mesmo sem grandes oportunidades (o River nem uma teve). E acabou mesmo por conseguir adiantar-se em cima do intervalo, quando Nández, uruguaio que foi um dos melhores (e que provavelmente ganhou esta noite um contrato na Europa porque jogou muito mesmo), fez um fabuloso passe a lançar Benedetto nas costas da defesa contrária que, isolado, enganou Armani e voltou a marcar nesta Libertadores depois de já ter feito um golo na primeira mão e três nas meias-finais frente ao Palmeiras (44′).

Sem Gallardo no relvado, a mensagem não passou durante 45 minutos. O River Plate precisava de rever posicionamentos e testar outras movimentações ofensivas para criar perigo mas andou sempre perdido entre a teia do Boca Juniors. Após o intervalo, tudo mudou. E se os millonarios já estavam melhor, como se viu numa jogada tipo futsal com Pratto a deixar para o remate a rasar de Nacho González à entrada da área (48′), a entrada em campo do portista Quintero para o lugar de Ponzio adensou ainda mais essa superioridade, materializada com um golo de Pratto (que voltou também a marcar como na primeira mão) após uma fantástica jogada coletiva que deixou a defesa do Boca Juniors pregada ao relvado (68′). O encontro acabou mesmo por ir para prolongamento mas porque Esteban Andrada foi segurando as investidas contrárias nos instantes finais.

Havia uma notória diferença entre Boca Juniors e River Plate em termos físicos, que pior ficou quando Barrios viu o segundo amarelo por uma entrada duríssima logo no segundo minuto do prolongamento. Os minutos passavam, era necessário um rasgo de génio e o mesmo apareceu mesmo do pé esquerdo do colombiano que ainda pertence aos quadros do FC Porto, que apontou o 2-1 com um fantástico golo a 11 minutos do final. Mesmo a terminar, um golpe de teatro num jogo de loucos: o lateral Jara acertou no poste da baliza de Armanni, foi canto para o Boca Juniors e acabou por ser o River Plate a fazer o 3-1, com Pity Martínez, que vai jogar para os Estados Unidos, a conduzir a bola isolado até à baliza onde já não estava Andrada.