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Antigamente, o país parava para ver o Festival RTP da Canção. Na noite de sábado, após duas semanas de intensa campanha eleitoral, parei e havia Festival RTP da Canção. Um evento que, não nos esqueçamos, festeja sessenta anos de existência. Muitos deles penosos, é certo, mas ele aí está, renovado e com a energia anárquica de um jovem. Em sessenta anos passámos de António Calvário para Mimicat. Talvez isso possa ser considerado uma evolução, ainda para mais tendo em conta que, na política, passámos de Américo Tomás para Marcelo. Talvez estejamos a precisar de entregar o sistema democrático a Nuno Galopim (o responsável por esta nova vida do Festival) que, a partir da sede da RTP, convidaria Tatanka a formar governo, Salvador Sobral a assumir uma pasta da Igualdade e um músico de Alcobaça para presidente da Assembleia da República, para fazer de um Yamaha-510 um verdadeiro órgão de soberania.

O certo é que o Festival, se não regressou ao que era na época em que só havia um canal e a televisão era a preto-e-branco, recuperou relevância e voltou a ser um tema digno de ser discutido à segunda-feira no trabalho e, mais importante, acompanhado ao minuto nas redes sociais. Quanto ao espetáculo em si, confesso-me rendido ao surpreendentemente excelente número de abertura, um primor de ritmo e de inventividade em que os apresentadores – Inês Lopes Gonçalves, Filomena Cautela e Vasco Palmeirim – acertaram em cheio no tom. No final, a atuação de Tatanka, Anabela, Tó Cruz e Mimicat com um medley de músicas dos ABBA, a maior banda a sair da Eurovisão, também foi mais do que competente.

Entre uma e outra, os concorrentes e, em muitos deles, sentiu-se o clima de apresentação de fim de ano letivo ou de programa de novos talentos, com nervos à mistura e fórmulas batidas, em que a tentativa de mostrar a vibração do panorama atual da música portuguesa resultou um tanto anquilosada: o novíssimo sofreu de algumas artroses e o diferente pareceu mais do mesmo.

“Change”

Silk Nobre

Lin-Manuel Miranda saves! Funk soul brother, sapatos de chulo, James Brown e Barry White, gospel, Broadway here we go, uma pitada de Northern Soul, Shirley Bassey, Tom Jones e não tarda nada estamos num filme de James Bond em que o vilão é um reverendo com unhas de alumínio e cabelo de fibra ótica. Silk Nobre dá tudo como pregador alucinado de uma pseudo igreja evangélica, a reclamar por segundas oportunidades e a exortar os fiéis à mudança enquanto a agitação frenética do corpo já não muito jovem até empresta uma certa credibilidade à mensagem. Na apresentação, o intérprete falou sobre um misterioso “tfonema” que recebeu e disse que “é urgente o mundo ouvir”, não se sabe se a canção se a mensagem, embora, depois de se ouvir ambas, as palavras de Silk pareçam francamente exageradas.

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“Criatura”

Rita Onofre

Ao contrário de grande parte dos participantes, que foram convidados pela organização, Rita Onofre candidatou-se ao festival, o que significa que tudo o que lhe aconteceu é da sua exclusiva responsabilidade, incluindo ter dito algo sobre fazermos coisas da tripa. A coreografia era minimalista, o que significa que não havia dinheiro para mais. Rita levou croquetes para a Green Room, aquele lugar em que os concorrentes fazem de conta que estão muito à vontade e que gostam todos uns dos outros e onde dizem coisas como “o melhor do festival é a oportunidade de fazer amizades” como se fossem um grupo de velhinhos numa excursão às Grutas de Mira de Aire. Ah, a canção. Pois, não prestei atenção.

“Memory”

Noble

É intrigante como um rapaz de 27 anos oriundo de Amarante vem ao festival cantar uma balada em inglês do ciclo, mas depois percebe-se tudo quando ele, ao referir-se à sua participação diz que “é uma oportunidade muito fixe [sic]”. Nada contra estas baladas sentidas, cantadas com emoção, de olhos fechados e tudo. Atenção que músicas deste género, quando são levadas à Eurovisão por um norueguês ou por um neerlandês, estão sempre entre as favoritas, mas eles, como têm a confiança nórdica e centro-europeia dos povos desenvolvidos, olham para a câmara e piscam o olho. Pelos vistos, a canção é dedicada ao pai e deve ser essa a única razão para ter sido autorizada a participar, visto sermos geralmente avessos a manifestações de sentimentalismo masculino expresso em inglês “follow me”. Isso ou recearmos que nos acusem de xenofobia linguístico-musical. Na verdade, é forçoso reconhecê-lo, detestamos estas baladas à Mr. Big ou Goo Goo Dolls sem os correspondentes cabelos sedosos.

“O Farol”

Buba Espinho

Vestido de sofá de pele e saído diretamente das Escolinhas de Formação António Zambujo, Buba Espinho trouxe a canção O Farol que, após eliminadas algumas possibilidades românticas, se conclui tratar-se de mais uma homenagem ao pai, também ele músico e que, segundo o filho, terá participado no festival, assumindo desta forma a existência de uma maldição familiar. Desconfio que dedicar uma música ao pai seja demasiado hetero-patriarcal para os tempos que correm, mas o júri do Alentejo votou nele em peso.

“Teorias da conspiração”

Nena

Agora que penso no assunto, já não sei se não foi Nena ou Rita Onofre quem levou croquetes. Seja como for, quem, por causa do título, estava à espera de Q-Anon, de uma releitura dos Protocolos dos Sábios de Sião ou de saber quem, afinal, matou JFK, encontrou outras teorias da conspiração cantadas naquele tom neo-melancólico quase obrigatório em todas as cantoras portuguesas nascidas entre 1994 e 2006. Se no lugar de Nena estivesse Bárbara Tinoco, Carolina de Deus, Milhanas ou Cláudia Pascoal não daríamos pela diferença. É o fadinho do século XXI (este sem caldo verde nem cavalos ruços), a chorar pelos cantos mas sem dar de beber à dor que é para ver se a maldita morre à sede.

“Aceitar”

No Maka

Vasco Palmeirim, especialista em cultura dos povos angolanos, explica aos telespectadores que, em quimbundo, “No Maka” significa “não há problema”, desiludindo muitos portugueses que achavam que “hakuna matata” era quimbundo. Um dos elementos da banda afirma que o pai tocou com o Duo Ouro Negro e fala sobre um estilo eletrónico com raízes africanas. Quando se ouve a canção que trouxeram, Aceitar, percebe-se que, desta vez, guardaram o estilo eletrónico numa gaveta e deixaram as raízes africanas tão bem enterradas que não houve sinal delas. De resto, aquela voz não me era estranha. O que é que estava ali a fazer a voz e a dicção da Luísa Sobral? Espera, não era a mana Sobral. Era a Ana Maria que, por ter dezassete aninhos, escapou ao nosso veneno, pois não queremos ser acusados de maus-tratos a menores. Aceitar é a canção que este ano veio preencher a quota da saudade. As regras do festival obrigam a que, todos os anos, pelo menos um concorrente cante a saudade, saudades, saudadinhas e demais variantes.

“Primavera”

Cristina Clara

Enquanto há enfermeiras que fogem do SNS e outras que fogem para o estrangeiro, Cristina Clara, que é enfermeira, fugiu para a música. Com ela, trouxe um adufe. O adufe! Já tínhamos saudade do adufe para exportação eurovisiva, embora aqui esteja discreto. Também sentimos falta do cavaquinho, mas esse não veio, talvez por ser dia de reflexão e a Comissão Nacional de Eleições estar atenta a mensagens subliminares. A letra fala de estações, do frio, do sol e, porque vem aí a primavera, há muita flora, jasmim a abrir em flor, e umas quantas andorinhas. A canção parece ir num crescendo e quando esperamos a explosão, é-nos oferecido um momento de spoken word em crioulo cabo-verdiano para o qual a intérprete deu uma explicação muito convincente mas de que me esqueci de imediato. Morna.

“Pontos Finais”

Rita Rocha

Mais estações do ano porque na música do festival não há alterações climáticas que alterem os ritmos bio-sentimentais. Na prática, Rita Rocha atualiza para a nova geração o clássico de José Malhoa, Amor de Verão. Cantava o pai da Ana Malhoa: “amor de verão / amor de verão / o inverno vai vir / e quando vier / e quando vier / tu irás partir”. Rita traz uma história semelhante. Conta-nos que foi no verão e que o inverno já acabou (pelas minhas contas, também é primavera nesta canção). José Malhoa, antecipando a partida da amada, sabia que ia ficar sozinho “na areia da praia / sem ver o caminho”. E é nesse estado que Rita se encontra quando confessa “ouço-te nas conchas do mar”. Ponto final.

“Doce Mistério”

Leo Middea

Noite solar, amor e água de coco, samba imortal, aracaju e Ibirapuera, sol de querer, bem de amar, Leo Middea é um enorme sorriso na voz a embrulhar aquela ideia amável do que julgamos que deve ser a MPB. Beleza rara, alegria pura, lalali e o ouvinte pressente desde o início que isto vai dar a Caetano. E não é que vai mesmo? Leo fala do disco Bicho de Caetano, mas nós já sabíamos que o baiano dos antigos caracóis estava aqui, por todo o lado, como um doce mistério que é doce, só que não era mistério nenhum.

“Bem Longe Daqui”

Perpétua

Anunciados como uma banda oriunda da Gafanha da Nazaré, trouxeram uma pop light, urbana, que me transportou para as novelas brasileiras das seis dos anos oitenta. Então fui investigar e, macacos me mordam, isto podia estar num álbum de Sandra de Sá! Basta ouvir o Pela Cidade, da cantora brasileira (que chegou a fazer uma versão de Lua, do Pedro Abrunhosa), para ver que a onda dos Perpétua é mesmo essa. City pop, Tim Maia meets Tatsuro Yamashita, let’s ride on time para bem longe daqui. Viva a Gafanha de São Tóquio de Janeiro!

“Pelas costuras”

João Borsch

Borsch é bom. Ou assim-assim. Alguém lhe chamou o David Bowie do século XXI, mas nunca, em nenhuma das suas múltiplas encarnações, Bowie exibiu um cabelo deste nível. Quanto à canção tem travo a glam rock, sim, guitarra operática, um nadinha de europop dos anos 80, influência estética dos Maneskin (deve haver tutorial de maquilhagem estilo Damiano David) e, ali a meio, um piscar de olho ao cançonetismo que era a tónica do festival há cinquenta anos, embora disfarçado sob doses massivas de eletrónica. Se fôssemos analisar a letra, corríamos o risco de entrar em interpretações abusivas em parte sugeridas pelas costuras rebentadas, portanto, e porque a hora já vai avançada para poesias, ficamos por aqui.

“Grito”

Iolanda

Não foi a última canção a ser apresentada, mas foi a última no palco, ao regressar por ter vencido o Festival — ganhando na votação do júri e ficando em segundo na do público. Não dá a volta às regras da pop nem transforma a história do Festival, mas é uma canção em que o acorde anterior bate certo com o acorde seguinte, em que a emoção dança no passo certo com a coreografia e a ideia cénica. Deixou no ar uma ideia de vitória logo à primeira semifinal e, de todas as canções apresentadas, foi a que melhor juntou os diferentes ingredientes da receita festivaleira. E, não menos importante (ou antes pelo contrário), Iolanda, numa entrega segura e sentida, sabe cantar e sabe o que canta. Segue para a Eurovisão, na Suécia. Vemo-nos em maio.