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O labirinto subterrâneo que se esconde por baixo da terra em Gaza “parece uma teia de aranha” — a descrição vem de alguém que os viu recentemente. Yocheved Lifschitz, de 85 anos, mãe, avó e ativista pela paz israelita, foi uma das centenas de reféns feitos pelo Hamas no decurso do ataque de 7 de outubro. O kibutz onde vivia foi massacrado: um em cada quatro habitantes da comunidade terão sido mortos. Yocheved foi levada num grupo de cerca de 25 pessoas para Gaza, e para os túneis subterrâneos que a organização militar extremista mantém no território. Na segunda-feira, quando foi libertada, resumiu a experiência: “Vivi um inferno”.
Pouco se sabe ao certo sobre a real dimensão da rede de túneis utilizada pelo Hamas. O sistema interconectado de passagens, fortificações, armazéns e abrigos é há muito uma dor de cabeça para as Forças de Defesa de Israel (IDF) no combate à organização terrorista palestiniana. Tem evoluído em propósito ao longo dos anos: do armazenamento e contrabando de mantimentos e armas, ao treino e movimentação de militares, planeamento e execução de operações ofensivas e, agora, para manter os mais de 200 reféns nas mãos do Hamas (apenas quatro foram, até agora, libertados — uma quinta refém foi resgatada esta segunda-feira).
Não foi sempre assim. Criados durante a década de 1980, a rede de túneis era inicialmente usada para contrabando e para juntar famílias separadas pela divisão da cidade de Rafah, no seguimento dos acordos de Camp David que puseram fim à guerra entre Israel e o Egitpo. Com o passar das décadas, foi evoluindo, em propósito e em dimensão: em 2007, depois de tomar o poder na região, o Hamas reconheceu o potencial da estrutura, convertendo-a num autêntico centro de operações militar essencial à ação armada contra Israel.
À medida que Telavive vai avançando na sua incursão em Gaza, a relevância e utilidade dos túneis para os combatentes palestinianos, assentes na sua natureza camuflada e falta de preparação de Israel para lidar com uma eventual ameaça vinda do subsolo, aumenta. É um problema para o qual não há uma solução perfeita, mas que Israel terá forçosamente de enfrentar na sua missão para “exterminar” o Hamas.
Da ajuda vital do Irão aos túneis secretos. Como é que o Hamas consegue ter armas e rockets?
Uma unidade especial, bombas e robôs. As armas ao dispor de Israel
Israel há muito que tenta combater a ameaça representada pela rede subterrânea do Hamas. O equivalente a milhares de milhões de euros foram investidos ao longo dos anos, num misto de treino de unidades de elite especializadas, desenvolvimento de novas tecnologias e implantação de estruturas como a “parede de ferro” na fronteira com Gaza, cujo objetivo declarado era, precisamente, evitar ataques como o de 7 de outubro.
Toda a tecnologia de ponta militar não nega a realidade prática no terreno: o combate aos túneis é uma operação extremamente delicada e complexa e, com a atual situação no terreno e a presença de reféns, é de difícil solução. Como escreveu David Ignatius no Washington Post, “Israel prepara-se para entrar na ‘segunda Gaza’, no que poderá ser a mais perigosa e letal fase do conflito”.
Telavive tem, no entanto, algumas opções ao seu dispor. Desde 2014, quando invadiu pela última vez Gaza (e tomou consciência da dimensão do problema), as IDF passaram vários anos a treinar um grupo de elite, especialmente para lidar com com esta questão: a Unidade Yahalom, parte integrante do Corpo de Engenharia, uma célula especializada na localização, evacuação e destruição de túneis, que faz uso de tecnologia avançada com recurso a sensores para detetar esta infraestrutura.
A Yahalom está dividida em três companhias. A Yael, uma força de reconhecimento e engenharia; a Samur, especializada no combate em espaços limitados; e a Sayfan, perita no uso de armamento não-convencional. A Samur é particularmente relevante na questão do combate aos túneis, já que os seus membros são escolhidos pela sua capacidade de aguentar estar em espaços claustrofóbicos — razão pela qual o nome da sub-unidade significa literalmente “doninha” em hebraico. Toda a Yahalom conta ainda com o apoio de duas equipas de deteção e eliminação de explosivos, essencial para mitigar as armadilhas deixadas pelo Hamas.
Além destes operacionais, Israel, uma das forças militares mais avançadas do mundo, conta ainda com um leque abrangente de tecnologia de última geração, desenvolvida dentro de portas ou pelo seu mais próximo aliado, os EUA. É o caso das bombas GBU-28, criadas precisamente para destruir túneis, razão pela qual têm a alcunha de “bunker buster” (“destruidora de bunker” em inglês).
Para além disso, nos últimos anos, Israel tem testado um novo tipo de explosivos, denominado de “sponge bomb”. O sistema em questão não contém, na verdade, qualquer explosivo, sendo antes um tipo de arma química que, quando detonada, cria uma espécie de espuma que se expande e endurece rapidamente, podendo ser usada para selar pontos de acesso aos túneis e, assim, forçando combatentes do Hamas a sair sob risco de ficarem presos no subsolo (estratégia que, de resto, tem sido usada nos bombardeamentos, muitos dos quais visam os pontos de acesso conhecidos dos túneis palestinianos).
Ouça aqui o episódio do podcast “A História do Dia” sobre o “metro” de Gaza.
https://observador.pt/programas/a-hist-ria-do-dia/como-vai-israel-combater-nos-tuneis-de-gaza/
A robótica é outro dos grandes “trunfos” israelitas no combate ao Hamas. Sistemas robots podem chegar onde os seres humanos não conseguem, desempenhando importantes tarefas de reconhecimento e, em alguns casos, combatendo diretamente o grupo extremista palestiniano sem arriscar baixas do lado de Israel.
Há de tudo um pouco nesta área, desde pequenos robôs de “quatro patas” que, entrando em espaços pequenos, podem neutralizar combatentes do Hamas com recurso a armas automáticas ou bombas, até soluções dignas de um filme de ficção científica. É o caso, por exemplo, das “cobras robô” desenvolvidas pelo Pentágono, uma extravagante tecnologia cuja função passa por penetrar na terra e colocar sensores que permitam a deteção dos sistemas de túneis, ou as igualmente insólitas “minhocas robô”, aparelhos microscópicos que, à falta de melhor expressão, “comem a terra”, abrindo caminho à ação dos militares Israelitas.
Mas a robótica não resolve tudo, como notou ao Washington Post o engenheiro militar Scott Savitz: “Os robôs são úteis, mas não são uma panaceia”, avisou, citado num artigo de opinião do colunista David Ignatius. As “doninhas” do Samur notam isso mesmo, acrescenta o colunista, lembrando que depois das máquinas entrarem, chega sempre a vez dos humanos. E o desafio que as forças especiais israelitas enfrentam está longe de ser fácil.
As dificuldades logísticas do “Metro de Gaza”
Estas soluções espelham bem o facto de que, há quase duas décadas que a IDF tem vindo a lidar com ataques lançados a partir dos túneis – ataques para os quais, regra geral e apesar da superioridade tecnológica, as forças israelitas não estão preparadas. Baixas militares, equipamentos destruídos e raptos – recorde-se o caso de Gilad Shalit, um soldado israelita raptado em 2006 e que, cinco anos depois, foi libertado numa troca de prisioneiros por mil palestinianos e árabes – são reveladoras da dimensão do problema.
“A capacidade dos combatentes dos túneis só é superada pela sua criatividade”, disse ao jornal Washington Post o especialista militar Scott Savitz. “Criatividade” foi também o adjetivo usado por Khaled Meshal, antigo líder do Hamas, numa entrevista em 2014, ano em que Israel invadiu Gaza pela última vez:
À luz da desigualdade de poderio militar, que pende para o lado de Israel, tivemos de ser criativos. Os túneis foram essa inovação. Colocaram mais obstáculos aos ataques israelitas, e permitiram à resistência de Gaza defender-se”, disse.
No contexto do atual conflito, esses obstáculos são ainda mais pronunciados. O primeiro problema é, desde logo, encontrá-los: muitos dos túneis estão localizados a um nível de profundidade bastante elevado – cerca de 50 metros abaixo do nível do solo – o que dificulta a sua deteção por sistemas de radar convencionais. Uma vez encontrados, a questão seguinte passa a ser como combater dentro deles. Os sistemas de navegação e comunicação entre unidades não funcionam tão bem no subsolo, o barulho de um disparo é amplificado nos túneis e a própria utilização de equipamentos como óculos de visão noturna (que necessitam de um mínimo de luz) é comprometida. Ao Washington Post, o especialista militar Edward Luttwak sintetiza: “A guerra dentro de túneis não é para amadores”.
Ao mesmo tempo, há a complexidade acrescida da presença de reféns israelitas debaixo do solo, o que complica qualquer operação ofensiva da IDF, que dificilmente os conseguirá retirar sem entrar em combate direto com os militares do Hamas (o que, por seu turno, compromete a segurança dos reféns). Existe mesmo uma preocupação de que os radicais palestinianos venham a usar os prisioneiros como escudos humanos, para dissuadir qualquer tentativa de Israel atacar as passagens. “[O Hamas pensa], ‘Querem bombardear os túneis? É por isso que mantemos aqui estas pessoas’”, explicou David Makovsky, docente do Instituto de Washington para a Estratégia do Oriente Próximo.
Acima de tudo, o sistema funciona como um “último reduto” para os combatentes dos túneis, bem preparados e treinados especificamente para combater em circunstâncias como esta. Uma realidade que representa um desafio significativo ao objetivo declarado de Israel de “esmagar” o Hamas – algo que não será possível sem tomar controlo desta rede.
Comida, casas de banho, eletricidade e linhas telefónicas. A estrutura da “cidade subterrânea” de Gaza
A descrição que Yocheved Lifschitz faz do que viu enquanto foi mantida como prisioneira é esclarecedora: paredes revestidas a cimento, condições limpas, comida e colchões para todos os reféns, mantimentos e pessoal médico para cuidar dos feridos.
Daphne Richemond-Barak, professora adjunta da Universidade de Reichmann, na capital israelita, descreve a infraestrutura como uma “cidade subterrânea” por baixo de Gaza. A autora do livro Underground Warfare (“Guerra Subterrânea”, em português), refere que os túneis são na sua maioria estreitos: um metro de largura por três de altura. As passagens mais estreitas dão acesso a salas e locais de armazenamento mais espaçosos, onde o Hamas mantém muito do seu arsenal e mantimentos.
Localizados a menos de 50 metros do nível do solo, um só túnel pode estender-se por vários quilómetros; Yocheved Lifshitz referiu ter andado durante cerca de três horas nas passagens subterrâneas. A maioria dos túneis são escuros, mas uma parte tem eletricidade, e até casas de banho. Um artigo recente da CNN avança inclusivamente que o Hamas terá montado dentro dos túneis uma rede de telefones terrestres, com fio, que lhes permitiu comunicar sem serem detetados pelos israelitas.
Tudo somado, dá para ter uma ideia da complexidade da operação que o Hamas mantém ao longo da fronteira com Israel (longe, por exemplo, da imagem dos túneis subterrâneos usados pelos vietcongues na década de 1970, durante a Guerra do Vietname)
O grupo palestiniano, de resto, partilha periodicamente imagens e vídeos captadas dentro dos túneis, numa demonstração da capacidade de organização do grupo e que deixam perceber as fortificações neles contidas:
Os túneis integrados em toda a estratégia militar do Hamas
Os desenvolvimentos recentes vieram, por isso contrariar a ideia de que os túneis de Gaza funcionavam apenas como uma simples passagem ou método de deslocação para os combatentes palestinianos. “Este conceito integrado de luta de guerrilha combina os túneis táticos, logísticos e estratégicos com os métodos terrestres de combate. O subsolo é integrado em todos os aspetos da batalha, incluindo da dispensa de apoio de artilharia e na concentração secreta de forças, bem como no transporte de prisioneiros e reféns e na garantia do seu bem estar físico”, explica Roskin.
Numa altura em que as forças israelitas têm vindo a expandir a ação terrestre e levam a cabo uma extensa campanha de bombardeamentos contra o território de Gaza, a estrutura oferece um subterfúgio que permitirá aos militares do grupo palestiniano escaparem aos ataques e reagruparem-se, além de manterem protegidas as suas capacidades militares.
Ao mesmo tempo, os túneis de Gaza permitem aos combatentes deslocarem-se de forma rápida e eficaz entre diferentes posições de combate, lançando ataques contra a IDF à medida que esta continua a bombardear a por via terrestre, e, por outro lado, abandonar rapidamente posições que os israelitas possam estar prestes a atacar.
A rede subterrânea está equipada com sistemas de energia, ventilação, canalização e comida, o que permite também ao Hamas subsistir durante bastante tempo debaixo do solo. Como se isso não bastasse, os túneis têm ainda passagem para várias infraestruturas como escolas e hospitais – um dado importante atendendo à estratégia do grupo de se esconder entre a população, dificultando a sua identificação e aumentando o risco de mortes de civis inocentes apanhados na linha de fogo.
Tudo somado, as forças israelitas enfrentam uma tarefa extremamente complicada, quer no que toca a combater a ameaça debaixo dos seus pés, quer no longo e delicado processo para salvar os reféns. É difícil prever se a operação será bem sucedida, ou quando estará concluída; até lá, os prisioneiros do Hamas estão dependentes da boa vontade dos seus captores.
Questionada depois da sua libertação, Yocheved Lifschitz disse que o grupo a “tratou bem” e que se garantiu que o grupo em que se encontrava permanecia a salvo. Antes de ser escoltada em direção à passagem de Rafah, para o lado egípcio da fronteira, a ativista protagonizou um momento surpreendente: voltou atrás e apertou a mão ao combatente do Hamas que a trouxe até ali, ao mesmo tempo que lhe dirigiu a palavra “Shalom” – hebraico para “paz”.