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Quando em 1976 António Barreto se sentou pela primeira vez à mesa de um Conselho de Ministros tinha apenas 32 anos. Nesse governo, o primeiro constitucional depois da revolução, havia mais dois ministros mais ou menos da mesma idade. Hoje com 77 anos, na altura em que acaba de editar “Três retratos: Salazar, Cunhal, Soares”, olha inquieto para a ausência de representantes da “geração mais qualificada de sempre” não só do palco da política, mas de quase todas as primeiras linhas da vida empresarial, académica, até cultural.
Numa conversa que começou por interrogar as responsabilidades dos três políticos que mais marcaram o nosso século XX no inescapável “atraso português”, falámos da pandemia e do medo, dos erros da gestão política e dos limites da ciência, das vantagens do conflito e da discussão entre partidos mas da necessidade de existirem grandes acordos. Falámos sobre o que aproximava Salazar e Cunhal, tal como sobre o que distinguia Soares, mas também não esquecemos nem a singularidade do culto que ainda rodeia o antigo líder comunista nem o porquê da longevidade do professor de Direito nascido em Santa Comba Dão.
Nesta viagem que termina no Portugal de hoje falámos também das próximas Presidenciais, e de como mesmo este potencial eleitor de Marcelo Rebelo de Sousa gostava que ele tivesse de enfrentar um bom candidato à sua esquerda.
[Principais destaques da entrevista a António Barreto:]
Acaba de publicar mais um livro, que recolhe alguns dos seus textos revistos, mas também inéditos, sobre Salazar, Cunhal e Soares. É esse o ponto de partida para esta conversa. Diz que são as três figuras que mais marcaram o século XX português e que são responsáveis pela mais desastrada de todas as descolonizações. Não são também responsáveis por aquilo que nós passamos a vida a queixarmo-nos, o atraso português?
O atraso? Não.
Um governou quase 50 anos, o outro foi a oposição durante 30 desses 50 anos e o terceiro foi o político que mais marcou a nossa democracia…
O atraso português é muito antigo, é mesmo um lugar comum, um mito da história, da política portuguesa e do pensamento em Portugal pelo menos desde o século XVIII ou mesmo antes.
Os primeiros a que se podem chamar economistas ou equiparados, desde os primeiros escritos e depois nos finais do século XVIII na Academia das Ciências de Lisboa e durante o século XIX — e já lá estão historiadores, economistas, gente que tinha pensamento público — falam no atraso português, o atraso da agricultura, o atraso das indústrias, o atraso das universidades… O atraso da ciência foi um dos motivos para a atuação do Marquês de Pombal, por exemplo. Já há textos do Acúrsio das Neves a falar no atraso português. É verdade que os últimos 200 anos ficaram muito marcados pelo atraso. Mas as causas desse atraso são muitas.
No século XX Salazar tem alguma responsabilidade, certamente, mas, a meu ver, a responsabilidades principal dele não é ter feito, fabricado ou construído o atraso. A principal responsabilidade dele é de, através das suas políticas e da sua governação não ter aproveitado as oportunidades e não ter desenvolvido o país mais rapidamente. Era possível já nos anos 40 e 50 ter avançado mais depressa, ter desenvolvido mais. Ele deu alguns sinais de uma real vontade de modernização, mas o seu grande problema era o controlo. O controlo político, o controlo absoluto por parte dele. Não queria aventuras, não queria nem América, nem Europa, nem liberalismo, nem crescimento industrial, nem capitalismo, nem oligopólios. Ele queria mandar. Queria que a sociedade seguisse o seu ritmo de pensamento, de estudo, de expectativa. Não dava margem nenhuma, mesmo a industriais fiéis.
[Ouça aqui a entrevista na íntegra:]
Apesar de tudo, mesmo no final, lá deixou abrir alguma coisa, com a entrada na EFTA.
Anos 60. Ele dá sinais de que quer promover ou fomentar algumas infraestruturas. Os primeiros planos de fomento começam nessa altura. Acabou de construir o aparelho corporativo que não existia antes — que demorou imenso tempo a ser construído –, acabou a construção das famosas juntas das frutas, dos vinhos, o instituto dos oleaginosas, o instituto do bacalhau. Cada produto importante para a economia portuguesa, para a exportação, para a importação ou para a produção tinha o seu próprio instituto de coordenação económica. Tudo isso só está pronto e construído nos anos 50. Alguns projetos importantes de estradas, barragens, linhas elétricas, centrais de produção elétrica, as primeiras indústrias químicas de adubos, etc., nascem nessa altura. É aberta a porta à siderurgia, ao desenvolvimento dos cimentos, mas tudo isto é muito lento e muito disto podia ter sido feito antes ou com mais liberdade ou com mais concorrência entre os empresários.
Aliás, todos os grandes empresários do salazarismo, se se pode dizer assim, os Champalimaud, os Mello, os Espírito Santo, os Ferreira da Silva, todos eles se queixavam do intervencionismo, do dirigismo, da contenção. É verdade que também todos eles depois se iam aproveitar muito das políticas de condicionamento industrial, apesar de alguns deles terem feito coisas para romper com isso.
O próprio Champalimaud entrou algumas vezes em choque.
O Champalimaud tentou romper com isto e, ao mesmo tempo, queria aproveitar o protecionismo para o aço, para a siderurgia. Ele queria ter dimensão em Portugal e nas colónias, que eram muito importantes para ter dimensão. Precisava da proteção do Estado, mas ao mesmo tempo não queria a proteção do Estado para os planos em que não necessitava dela.
Muitos dos membros da grande burguesia, os grandes empresários e os grandes industriais do salazarismo, são bastante esquizofrénicos. Querem o que lhes convém. Muitas vezes são liberais de manhã e são corporativistas e protecionistas à tarde.
Não nos libertarmos dessa sina, porque passaram 50 anos desde que Salazar morreu e não temos industriais, nem empresários, que tenham do Estado uma visão radicalmente diferente.
Muito pouco. É provável que os haja nas camadas mais jovens industriais ou jovens empresários, talvez mais nos serviços do que na indústria, talvez haja gente com novas ideias e que queira ter mais concorrência e mais abertura ao mundo. Mas tem sido muito difícil. Apesar de os gestos que mais condicionaram o crescimento económico e o desenvolvimento em Portugal terem sido sempre gestos de abertura com o exterior.
A adesão à EFTA, Associação Europeia de Livre Comércio, no final dos anos 50, arranque dos anos 60, é a maior corrente de ar fresco na indústria portuguesa. Vêm dezenas de grandes indústrias europeias que se instalam em Portugal, evidentemente para aproveitar as condições de força de trabalho muito baratas e a ordem e segurança que interessa para os capitalistas internacionais. São desenvolvimentos muito importantes que alteram radicalmente o panorama económico português de 1961/62 até 1974. São 12 anos únicos.
Termos vários anos a crescer mais de 10% ao ano, é uma coisa quase chinesa.
Eu chamo-lhe a década de ouro da economia portuguesa. Nunca, nem antes nem depois, a economia portuguesa cresceu tanto.
Só voltamos a ter num período mais curto, mais concentrado no tempo e não tão espontâneo — porque aí já havia subsídios europeus — quando entramos na União Europeia.
Dos anos 80 para 90 tivemos também uma nova década, em que, uma vez mais, foi a associação ao estrangeiro via União Europeia, via redução dos preços — o dólar baixou o custo, o petróleo baixou de custo, as matérias primas baixaram de custo, as taxas de juro baixaram, tudo parecia fácil.
É a década da reprivatização da economia portuguesa, que é o segundo período do desenvolvimento em Portugal. Em todo o século XX até hoje há só esses dois períodos de real crescimento e desenvolvimento.
“O Soares não deixou crentes, o Salazar também não. O Cunhal é um fenómeno de crença religiosa”
Ainda sobre “Salazar, Cunhal, Soares” há uma coisa curiosa. De alguma forma, Salazar era admirado pelos conservadores e reacionários europeus como sendo um exemplo, alguém que teve um sucesso extraordinário. Às vezes também se dizia que se o Cunhal tivesse nascido noutro país, se tivesse sido um francês, o partido comunista francês teria sido outra coisa. E Soares era o Kerensky que tinha vencido. Por assim dizer, seriam políticos maiores que o país. Podemos dizer isto?
Eles tiveram os três os seus momentos de glória internacional. Mas, apesar de tudo, foram momentos em quantidades muito suaves. Os portugueses são muito carentes de afetos internacionais. Conheço gente de direita que diz: “O nosso Cunhal é melhor que os outros”. E gente de esquerda que não se importa nada de dizer que o nosso Salazar era melhor que os outros. O Salazar teve algum prestígio em círculos muito conservadores, nacionalistas, reacionários europeus, círculos muito pequenos. Para os grandes dirigentes democráticos europeus, do Blum em França até mais tarde ao Adenauer, ao de Gaulle, ao De Gasperi, para não falar do Churchill, toda esta gente não gostava muito do Salazar, achavam-no tacanho, rústico, provinciano — o que é mais ou menos tudo verdade. Tudo por ele não ceder à democracia, aos direitos fundamentais.
Agora, o Salazar tinha um grande trunfo. Para já tinha paz, entre os anos 1935 e 1950 teve paz. E depois tinha o império. O império sempre foi um motivo de atração dos europeus, mesmo dos que estavam a perder os seus impérios. Os britânicos, os holandeses e os franceses, que começaram nessa altura a perder os impérios um pouco antes da guerra, e sobretudo depois da guerra, tinham uma espécie de inveja, ciúme ou interesse no império português e no Ultramar português. Foi muito tarde, com o eterno exemplo da Suécia, já estávamos muito adiantados na guerra em África, quando alguns países europeus começaram a interrogar-se sobre se deviam ou não vender armamento a Portugal. A França forneceu, em democracia mais à esquerda e mais à direita, grande parte dos armamentos — os famosos helicópteros alouette –, a Itália fornecia a aviação e fornecia armas, a Alemanha fornecia tecnologia, como para as G3, ou fabricava.
A Europa teve uma atitude ambivalente. Os Açores e a Madeira interessavam muito, sobretudo os Açores, ao conjunto europeu e atlântico. Os Estados Unidos tinham interesse, mas não excessivo. Estavam interessadíssimos em substituir Portugal em África, o que foi sempre uma grande fantasia americana: substituir os impérios europeus na América Latina, em África e na Ásia, substituir os franceses e os ingleses, o que muitas vezes conseguiram por outros meios. Apoiavam as independências e depois tentavam economicamente entrar. Por exemplo, no tempo no tempo do Kennedy, em 1962, o Kennedy foi muito difícil e contrariou a política portuguesa em África. Não é que o Kennedy fosse homem de esquerda, simplesmente não lhes interessava apoiar Salazar por causa da África.
Do outro lado, na fundação da EFTA em 1959, Portugal é um dos fundadores e a Espanha não. Portugal é um dos fundadores da NATO e a NATO é o clube das democracias vencedoras da guerra.
Mas aí havia uma havia várias questões que vinham de trás. Há uma marca do Franco.
A simpatia europeia por Portugal e por Salazar, ou a menor antipatia, contrastava com uma grande antipatia por ele.
O franquismo tinha também uma brutalidade muito maior.
Em 1960 ainda havia um governo republicano espanhol no exílio que funcionava entre França e o México. Ainda havia uns ministros que achavam que tinham um governo legítimo.
Passando agora de Salazar para Cunhal, uma das coisas que às vezes pode parecer paradoxal é que Cunhal, mantendo a sua ortodoxia, como se fosse o último fóssil, o último guardião do templo, manteve vivo o PCP, enquanto os líderes que se foram adaptando ao seu tempo conduziram os seus partidos, na Itália, em França, em Espanha, à destruição. A ortodoxia paga?
É certamente difícil de compreender que o partido mais fossilizado, o partido mais austero, mais reacionário, mais conservador, mais obstinado na doutrina e nos princípios proclamados seja o partido que mais resiste e que hoje ainda tem 6% dos votos. Não é uma quantidade considerável, é um pequeníssimo score eleitoral, abaixo do Bloco. Mas o que o Partido Comunista tem ainda é uma influência excessiva, desproporcionada se pensarmos na sua força eleitoral.
Porque tem sindicatos e tem autarquias.
E tem intelectuais e artistas.
Isso tem cada vez menos.
Cada vez menos porque as gerações estão a dar cabo disso. Até há muito pouco tempo era o PCP que fazia o gosto literário em Portugal, o gosto artístico, que criava ou destruía as reputações no cinema, na música, na pintura. Foi quase a melhor produção de Álvaro Cunhal, que deu um contributo pessoal para isso tudo. Era algo a que ele não era estranho, não era só o partido. O Álvaro Cunhal tem uma produção literária, crítica, jornalística, artística importante desde os anos 40.
O melhor exemplo de duas ortodoxias fechadas é a ortodoxia do Estado Novo, salazarista, e a ortodoxia do Partido Comunista na oposição. Houve uma luta terrível no final dos anos 50 porque os portugueses queriam ter um prémio Nobel e metade do país apoiava o Aquilino Ribeiro, que era o Partido Comunista, e a outra metade apoiava o Miguel Torga, que nunca foi salazarista mas como não era comunista era considerado da situação. E então havia abaixo-assinados nos jornais a dizer: “Eu sou a favor de Torga” ou “Eu sou a favor de Aquilino Ribeiro”. A linha de rutura era clara e evidente: quem era a favor do Partido Comunista queria o Aquilino Ribeiro. Não serviu para nada, nem sequer eram candidatos, ninguém ligou nada a esse assunto, mas em Portugal houve uma verdadeira campanha eleitoral.
No final ganhou o Partido Comunista, mas com José Saramago.
É como o futebol: jogam muito bem duas equipas e no final ganha a Alemanha. Creio que é dos raros casos onde, já em democracia, ainda houve muitos anos destas réstias de dupla ortodoxia — a ortodoxia de direita nacionalista, patriota, que depois se juntou à democracia com o 25 de Abril, e a ortodoxia comunista.
O Cunhal, ao contrário do Salazar que não se sentava na mesa europeia, a partir de certo momento passou a ter um lugar importante em Moscovo, nas organizações internacionais e até nos convidados de honra. Isto no mundo comunista mede-se com centímetros: quando os centímetros separam o chefe do número 2, o número 2 do número 3. Não há confinamento, mas há distâncias significativas e o Cunhal a partir de certo momento é protegido pelo famoso Ponomarev, que é um dos últimos grandes pensadores do Partido Comunista Soviético. Os quase êxitos do Cunhal em Portugal e nas colónias são reconhecidos em Moscovo, que é uma espécie de cardeal, não é só um serventuário. O Cunhal nos primeiros anos servia aos interesses do Comintern e um dos seus piores momentos foi o apoio descarado à invasão da Checoslováquia, onde dez, 15 dias antes o Cunhal dizia que era favorável à experiência checoslovaca, à nova liberdade e ao novo socialismo que estava a nascer, e depois muda de opinião e é o primeiro partido europeu a apoiar descaradamente a intervenção e a ser quase mais intervencionista que os soviéticos.
Internacionalmente há uma diferença. O Soares é diferente deles todos. O Cunhal e o Salazar são de outro género, de outra espécie. O Soares, como é um plebeu, é um homem de prazeres, de discussão permanente — o Soares o que mais gostava na vida era de ter um bom debate na televisão, em público, nas sessões públicas no Parlamento. Os outros dois eram tudo menos isso.
Vou pegar numa frase do livro que achei muito engraçada sobre a forma como os portugueses se relacionaram com estas três figuras. Diz que elas são muito diferentes, mas que os portugueses “aceitaram, desejaram, aguentaram ou toleraram” Salazar, Cunhal e Soares. Quer dizer que os portugueses ou são volúveis ou são tolerantes ou são qualquer outra coisa. Isto fez-me lembrar uma famosa ovação a Marcelo Caetano no Estádio de Alvalade poucos dias antes do 25 de Abril, antes de a maior parte daquela gente ter-se mudado daquele estádio para o Estádio Primeiro de Maio para celebrar precisamente Mário Soares e Álvaro Cunhal. O que é que isto nos diz sobre os portugueses?
A mim não me diz que os portugueses são volúveis. Não concluo nada disso porque creio que noutros países não é muito diferente. O que quero dizer é o contrário: não há um caráter nacional português favorável à autoridade, ao caos, ao prazer ou favorável à frugalidade autoritária e burocrática. Não há. Os portugueses vão votando, tolerando, muitas vezes com bons sentimentos, outras vezes com maus sentimentos ou com impotência ou com fraqueza.
Sei que não é de bom tom dizer, mas os portugueses toleraram o Salazar durante 40 anos. Ou se quiser dizer doutra maneira: não tiveram força, nem vontade, nem meios para derrubar o Salazar. Há povos que derrubam os seus líderes, os seus dirigentes, através de qualquer que seja o meio.
O herdeiro de Salazar acabou por ser derrubado por um golpe militar.
O levantamento começou depois. O Cunhal, dez anos antes, diz que em Portugal poderá acontecer qualquer coisa que começando nos militares ou no governo possa acabar num levantamento nacional. Os portugueses elegeram principescamente o dr. Mário Soares como Presidente da República, mas também o dr. Cavaco Silva e também o general Ramalho Eanes. Não há personalidades mais diferentes do que estas, entre a frugalidade, a autoridade, o encanto, o plebeísmo e o quase autoritarismo. São pessoas muito diferentes e qualquer delas com altíssimos scores eleitorais, sobretudo à segunda volta. E foi o mesmo povo que os elegeu. Há uma diferença com o Cunhal em relação ao Salazar: do Salazar não temos medida. Nunca houve eleições, não há medida. A única medida são os 40 anos. Não é justo dizer que o povo aceitou, mas o povo tolerou, que é diferente. Isto tem de ser dito. As pessoas pensam sempre “Ai que horror”. Não! Foi verdade.
Também não se pode dizer que fosse um regime de medo, em que as pessoas aceitassem apenas porque tinham medo?
Medo era, havia medo. Eu lembro-me. No sentido de haver receio. Isto é medo.
Mas não havia medo no sentido em que havia medo nos regimes totalitários?
Eu já não sei quem foi que disse, um deles foi o Manuel Lucena, que fala de ditadura minuciosa, ditadura jurídica, meticulosa, era o que era, se se pode medir pelo número de presos, de mortos, de torturados, etc. Comparando com os piores, até com o Franco, a ferocidade do regime de Franco não é comparável com a ferocidade do regime português, até porque o Franco sai de uma guerra civil. Excluindo a guerra civil, o que vem depois não há comparação. A Itália, a Alemanha, a União Soviética são regimes cuja ferocidade, dureza e aspereza não são comparáveis com o regime português.
O dr. Cunhal nunca exerceu o poder. Esteve no governo três ou quatro vezes ali à saída de 1974, era ministro sem pasta e estava lá para fazer os equilíbrios. Já morreram os três e, curiosamente, ainda hoje o dr.Cunhal tem mais adeptos, verdadeiros crentes, do que Salazar e Soares. Soares não tem adeptos. O Partido Socialista comemora-o como antigamente se comemorava o António José de Almeida.
O Cunhal teve um funeral muito mais participado do que o funeral de Mário Soares.
Foi. O dr. Mário Soares está a atingir o grau dos republicanos no antigamente: fazia-se a romagem ao António José de Almeida de vez em quando, ia-se ao cemitério do Afonso Costa, etc. O Soares não deixou crentes e o Salazar também não. Deve haver três ou quatro fantasiosos que são ainda salazaristas, é possível. Eu não conheço. O Cunhal tem um grupo humano, uma comunidade de crentes que o festejam como um deles, o chefe deles, o santo, o sacerdote, o cardeal. Festejam os aniversários, têm as obras completas, continuam a citá-lo e isto é interessante. É um fenómeno de domínio do totalitarismo doutrinário, de crença religiosa ou política, mas é interessante. Teve menos poder político, ou menos exercício real do poder, mas foi o que guardou mais crentes.
“Acho que o normal é ter medo, medo do vírus”
Mudando para os tempos que vivemos, os tempos de pandemia. Tem medo do medo da pandemia? Tem medo das consequências do medo na sociedade?
Tenho receio, sim. Quando começou esta epidemia, logo no princípio, escrevi um artigo que se chamava mesmo “O medo”. A primeira linha era essa. Com certeza que tenho medo. Acho que o normal é ter medo, medo do vírus.
O problema é ter medo das consequências do medo, do que o medo nos faz enquanto sociedade.
Desde que deixou de ser só receio, que implica precaução cautela, cuidado, etc., e passa a ser uma espécie de pavor em que se vive, se dorme e se está acordado a pensar nisso, entramos no domínio do pavor e é mau conselheiro porque o pavor gera egoísmo, gera irascibilidade, gera autoridade, só tem maus resultados.
Se na sociedade se instala medo nesse sentido, eu temo as consequências. Estou otimista só num sentido. Continuo cético em relação à capacidade portuguesa e europeia de ultrapassar esta crise — cheira-me que vai durar ainda mais tempo do que se pensa e ter mais consequências negativas daquilo que se pensa, nomeadamente económicas e sociais –, mas creio que o mundo, pelo menos o ocidental, vai ultrapassar o fenómeno medieval e mítico da peste negra se houver suficiente discussão pública, se houver suficiente liberdade. Se se esconde o que é mau está-se a prestar um mau serviço, seja à liberdade, seja à cura. Se se mostrar o que é mau e debater o que é mau, as más consequências e a má situação, alargam-se os meios de intervenção e os meios para ultrapassar isso.
Aqui em Portugal houve a ideia de quase fazer desaparecer política, no sentido do conflito, por causa da pandemia. De repente, tivemos menos conflito político, ou a ilusão de menos conflito político, tivemos uma grande unidade dos dois maiores partidos, do Governo e do Presidente e talvez alguma dificuldade em contestar e em discutir. Isso foi positivo?
Acho que foi errado, foi um caminho errado. Não faço parte daquele grupo de cidadãos que sabem tudo relativamente à pandemia, só sei algumas coisas e muito pouco. Mas estou convencido de que houve uma má gestão política da pandemia, não tenho dúvidas sobre isso. Houve informação a mais, informação inútil a mais para apagar os receios, contradições a mais dentro das esferas públicas, técnicas, tecnocráticas, científicas e políticas. É natural que haja contradições num caso destes, mas é mau que haja uma vontade acelerada em primeiro de dizer que está tudo bem — que foi a grande marca desta má gestão política — e depois a mudança rapidíssima de temperamento e de caráter: otimismo, ceticismo, pessimismo, outra vez otimismo. Depois houve a utilização desbragada da propaganda para tentar tratar do assunto. É raro ouvir alguém da autoridade dizer o que quer que seja sem ter pelo menos três ou quatro frases congratulatórias. “Nós fizemos. Nós vamos fazer. Nós estamos a fazer, nós fizemos”. Isto deu, a meu ver, má gestão política.
Uma das consequências foi essa espécie de desaparecimento do conflito político que deve existir e que faz falta, o que permite mais erros. Quanto menor for o afrontamento político, maiores são as possibilidades de errar no ponto de vista da gestão. Houve uma oscilação entre o otimismo e o pessimismo, entre euforia e ceticismo, que foi muito prejudicial. Estou convencido que, por exemplo, o desconfinamento foi precipitado ou foi mal gerido, tal como o confinamento eventualmente excessivo. Um dia, talvez daqui a uns meses, talvez daqui a um, dois anos, vamos ter meios, possibilidade e conhecimentos mais rigorosos para saber exatamente tudo quanto se passou, mas a minha convicção hoje é que houve muito má gestão política.
O próprio Presidente da República, que tinha um pouco mais de liberdade de escolha e de ação relativamente a isto, deixou-se enredar no otimismo desbragado. Creio que ele é um dos autores da utilização da frase do “milagre português”, mesmo com algum humor, mas teve sistematicamente um comportamento muito patrioteiro e muito nacionalista, o que nem sequer é próprio dele. Foi qualquer coisa que foi tirada da cartola recentemente. Associou-se ao Governo de uma maneira excessiva. O Governo passou a ser cúmplice do Presidente e o Presidente cúmplice do Governo. Os partidos da oposição ficaram com medo que se dissesse: “Estão as pessoas a morrer e vocês com ideias próprias”. Ouvir esta espécie de ansiedade, de retração de toda a gente foi negativo porque permitiu mais erros.
Até porque houve uma coisa nova. Há a ideia errada de que os cientistas e a ciência são infalíveis, quando a ciência se baseia em hipóteses, não em certezas. Isso devia ter-se tornado claro e houve muitas vezes a perceção de que os políticos tentavam passar a pasta aos cientistas como se dissessem: “Bem, está aqui a ciência, nós não temos muito a ver com isto”. Talvez tivesse sido bom ter sido mais didático sobre estas matérias.
Não posso estar mais de acordo. A ciência vai avançando, vai apalpando e vai errando. Cada conquista da ciência normalmente custa cinco, dez, 20, 50 erros puros cometidos. Se começarmos a contar relativamente à máscara, às luvas, às pomadas, aos desinfetantes, estar em espaço social ou não, a estratégia sueca, a estratégia dos checos, vê-se rapidamente que tudo isto foram fundamentos científicos também políticos.
Ainda hoje se discute a hidroxicloroquina.
Ainda se discutem os tratamentos. Isto é totalmente verdade e deveria ter havido, até das próprias autoridades, a capacidade de dizer à ciência: “Digam tudo o que têm a dizer como hipóteses e vamos considerar como hipóteses, como experiências”. O que acontece é que na política tem-se assistido, lamentavelmente, ao fenómeno parecido com o que aconteceu com os incêndios, por exemplo, que é remeter para os técnicos coisas que nem sempre são técnicas, mas que também são políticas. O nosso Governo não é o único. Alguns governos europeus têm tido uma grande arte em afastar das suas responsabilidades o que faz parte das suas responsabilidades. E remeter para os técnicos.
Tenha sempre receio de uma declaração política sobre o que quer que seja que comece com: “Dizem os últimos estudos”. Esta frase é terrível porque para haver estudos quer sempre dizer que é um ponto de vista científico inabalável.
O que se passou em Lisboa não terá sido sinal de que aqui, às portas da capital, há zonas de sub-representação política e sub-representação mediática? Zonas pobres. Não há aqui um Portugal que não é visível para os meios de informação e para o Portugal político e que só damos por ele quando ele já está mesmo a rebentar-nos à porta, a rebentar as listas dos hospitais?
É bem capaz disso. O poder político interessou-se mais pelos centros. A comunicação social e a informação interessou-se mais pelo que estava mais entre si, mais ao alcance da mão, o que era mais visível. Concordo com o que diz.
Eu não aceito, mas não tenho dúvidas que, como tantos outros fenómenos, a doença bate mais nos pobres. Os pobres têm menos meios e há menos hospitais, menos telefones, menos enfermeiros, menos comunicação rápida. Andar em meios de transporte sobrelotados ou com muita gente e poucos cuidados é sempre diferente de andar em carro fechado, poder ficar em casa. Poder ficar em casa não está ao alcance de toda a gente. Uma parte da sociedade tem muito mais facilmente a possibilidade de ficar em casa, tratar dos filhos, tratar de si e até tem quem a sirva. Estranhei que os resultados negativos em Lisboa começassem tão mais tarde relativamente ao Norte e que o desconfinamento negativo também fosse muito mais forte na zona de Lisboa relativamente ao Norte. Talvez no Norte não haja subúrbios tão importantes como em Lisboa, em quantidade e desconforto. Lisboa é maior, mais desconfortável, tem piores condições de transporte, de vida, de comércio e de trabalho.
Não houve o cuidado suficiente? A educação, por exemplo, não foi destratada neste processo?
Acho que foi o pior, não do ponto vista da saúde, sanitário, porque tenho poucos meios para perceber o que se passou exatamente, mas o que se passou na educação foi mesmo uma zona de desastre, com mudanças de orientação e de atitude. Não se pode mandar as crianças para casa, tirá-las da escola e pô-las em casa, e pô-las nas escolas em qualquer altura. De um modo ou de outro não pode, por exemplo, dizer-se que a partir de amanhã as escolas estão fechadas sem ter qualquer espécie de solução preparada ou mesmo de emergência. É uma coisa tão complicada, tão difícil e certamente o setor mais mal gerido até hoje foi o setor de educação.
O que vai acontecer a esta geração, mais uma vez, é que vai bater forte a desigualdade porque quem tem meios para explicações, para estudar, para acompanhar ou para estar em casa a trabalhar vai sair-se melhor do que quem não tem nenhum desses meios. É um ano perdido e acho que um ano perdido vai fazer falta. Não é simplesmente um ano de festa como foi o do 25 de Abril, em que toda a gente perdeu o ano e fomos em frente. Este ano vai fazer falta, vai criar dificuldades para o ano que vem. Até agora é dos piores setores, o mais mal gerido e o mais mal acompanhado.
“O primeiro-ministro está a pedir aos ministros planos para os próximos 15 dias”
Imagino que já tenha lido o plano Costa e Silva.
Sim.
É um plano ou é um catálogo, como foi dito por alguns críticos?
Já disse que, para mim, é um catálogo. É um catálogo muito completo, aqui e acolá com a marca do autor e o autor, repito, é um homem excecionalmente capaz, informado e inteligente, que se colocou numa situação muito difícil de fazer um plano de fora para um Governo que está ao lado. O Governo vai sempre poder acatar ou descartar esse plano conforme lhe apetecer. Este plano não, esta inspiração.
Aliás tornou-se ainda mais catálogo entre a versão preliminar e a versão final…
As grandes perguntas são: quem é que faz isto? Não se sabe. Quem é que paga? Não se sabe. Pelo dinheiro da Europa? Primeiro, o dinheiro da Europa não vem de graça, como é sabido, nem vem sem regras. Vem com tudo isso e com um controlo e fiscalização.
Depois, a minha convicção é que cada vez mais — e pessoas que sabem mais do que eu confirmam isto — o dobro ainda não chega. O dobro dos recursos para os próximos anos para poder relançar a economia, relançar a indústria, o comércio, os serviços e o turismo, etc., não chega. O que vem é bom, mas ainda é muito pouco. E o plano tem que contar isso e tem que tomar decisões sobre a intervenção pública e privada. Não se sabe se vai haver intervenção de capitais estrangeiros. Capitais portugueses não existem, praticamente não há capitalismo português, não há capital português. O plano tem de incluir a identidade de quem é que faz isto, quem é que se ocupa do ponto de vista financeiro, económico, comercial, empresarial, social e sindical. Isto exige uma preparação política, partidária e social enorme e que ainda não vi. Pode ser que esteja a ser preparada em recato, mas acho que já tinha chegado a altura de começar a fazer debates muito sérios no Conselho Económico e Social, por exemplo, entre partidos, no Parlamento ou fora dele, é indiferente.
No Parlamento ainda não houve nada e vai fechar para férias.
Nada. Até agora nada. Qualquer coisa parecida com o pacto MFA-Partidos, o Pacto de Moncloa, os pactos, uns implícitos outros explícitos, no fim da Segunda Guerra Mundial. Qualquer destes modelos pode ser inspirador. E não digo para fazer igual. Não é necessariamente o bloco central, o caldeirão, não venham com essas coisas. É necessário ter meios políticos, sociais, financeiros e económicos, nacionais e internacionais, muito superiores ao que aqui se diz, disso não tenho dúvidas.
O catálogo Costa Silva é um excelente catálogo, está lá tudo. Estão lá as terras raras, o alumínio, o lítio está lá, a indústria das conservas alimentares…
E as prioridades?
As prioridades não estão. O que é que caracteriza um plano? É ter prioridades, ter um calendário, ter o que que se faz em cinco anos, em dez, em 15 ou 20, quem é que faz, quem é que contribui, a definição dos meios adequados aos fins. Isto também não lhe competia. Se também lhe pedissem isso, então era melhor mudar de primeiro-ministro e mudar os ministros todos.
Agora, do ponto de vista estritamente pessoal, cria-se uma situação difícil entre este senhor e o catálogo dele e, do outro lado, o Governo, os ministros e os seus planos. O que eu peço a um bom ministro é que ele tenha planos para próximos dez anos. O que o primeiro-ministro está a pedir aos ministros até agora é que eles tenham planos para os próximos 15 dias ou seis meses. Será que ele tem uma intenção de fazer uma grande remodelação em setembro/outubro, antes do fim do ano? É possível.
Penso que a renovação está mais à espera das autárquicas. É o que vem nos livros. Diz-se que as remodelações se fazem depois das autárquicas.
É possível, tudo é possível e acho natural. Faz parte do jogo democrático este género de cálculos. Agora, a urgência atual é tão grave e tão séria que, para além da coreografia eleitoral ou pós eleitoral, deveria merecer uma atenção excecional de concertação, de entendimento — não é entendimento nacional, não vamos voltar a falar disso. Cada vez que em Portugal se diz que era necessário concertar alguns esforços, a resposta é sempre a mesma: “Tu queres a União Nacional, tu queres o Pacto Nacional, tu queres o caldeirão central”. Eu não sei o que quero, eu não quero nada de particular. Sei que há países, como a Itália e a Alemanha e os países do Norte escandinavo, que nos momentos graves e difíceis fizeram o que tinham a fazer do ponto de vista dos meios e dos instrumentos políticos, económicos, sociais. Fizeram os acordos necessários para poder dar conta do recado.
Cá em Portugal continua-se a pensar, por exemplo, que a política ideal é a polarização esquerda/direita, o que acho um erro crasso. Se o primeiro-ministro, se o Governo atual, se o Partido Socialista insistem daqui para a frente na política de polarização pura e simples — esquerda para um lado, direita para o outro e vamos acertar nisto — estão a errar, mas a errar monumentalmente.
Esse que foi o apelo do debate do Estado da Nação.
Ou é um erro monumental ou é pura coreografia estratégica para fazer o contrário. Dizia-se que quem fazia isso era o professor Marcelo Caetano, que piscava à esquerda e virava à direita. Era o que se contava na altura. Ponho essa hipótese muito séria: obrigar a esquerda a dizer-lhe que não para ele dizer que não tem outro remédio senão ir para a direita. É possível.
Mas, independentemente do acordo político, há algo que também faz alguma impressão, que é quando se vê as pessoas a discutir, quando se olha para os debates e os fóruns e praticamente não se encontra ninguém com menos de 40 anos. Onde é que está a geração mais bem preparada de sempre? Quando foi para o Governo, o António Barreto tinha 33 anos e não era sequer um membro mais novo do Governo.
No meu governo havia três ou quatro jovenzinhos imberbes. Era o Mário Cardia, o Medeiros Ferreira, e eu próprio. Tínhamos 32, 33 anos.
O que é que aconteceu às pessoas com menos de 40 anos? Porque é que nós não conseguimos que elas neste momento participem na vida pública?
Isto é das coisas mais graves que se estão a passar em Portugal. O que tem sido feito para atrair as gerações novas ou é tentar comprá-las com facilidades e dinheiros ou é levá-las para as jotas, para as juventudes partidárias, ou arranjar-lhes atividades que sirvam aos partidos e que sirvam o marketing político promocional. Isto diz respeito a muito pouca gente, são umas tantas centenas ou milhares de jovens que estão a ser chamados para vir dar cor à política. Mas é só isto. O essencial das jovens gerações não se interessam sequer.
Mas não falo só na política. É muito difícil encontrá-los nas empresas, em lugar de destaque na academia, é difícil ver onde é que estão a romper. Porque eles podiam aparecer, a não ser, enfim, nas startups.
Penso que há muitas iniciativas artísticas, culturais e empresariais, mas concordo consigo. Esta geração está invisível, entusiasma-se com muita rapidez. Agora o racismo entusiasmou-a, antes disso a sexualidade e o género entusiasmou-a e depois, de repente, desaparece outra vez. Sinceramente não sei o que se está a passar, mas estou atento ao deserto. Estou atento que há aí um deserto geracional que se criou no mundo político e no mundo também social, artístico ou empresarial.
Fim dos quinzenais: “Uma das decisões mais lamentáveis de toda a democracia portuguesa em 40 anos”
Saíram esta semana várias sondagens que parecem indicar que estamos provavelmente a assistir à primeira alteração de fundo no sistema político português. O CDS pode estar a desaparecer, o PCP está a entrar num eclipse ou a confirmar o seu eclipse, e há três novos partidos que pouco a pouco estão a afirmar-se. O mais importante deles é o Chega, mas há também o PAN e a Iniciativa Liberal. É normal, é o que se esperava? Os outros partidos vão vir atrás? O PS e o PSD vão também sofrer?
Acho que é normal. A minha surpresa até agora é que não tivesse ocorrido antes porque se olharmos para a Europa só há um país ou dois onde a velha terminologia partidária se mantém. Ainda há um Partido Conservador, ainda há um Partido Trabalhista. Em alguns casos ainda subsistem partidos antigos — na Alemanha, por exemplo, mas já rodeado de três ou quatro partidos novos. As mudanças veem-se em Itália, em Espanha, em França, no Presidente Macron.
Sempre me surpreendeu, até hoje, o caráter estático do sistema político português, que nos últimos 20 ou 30 anos conheceu a alteração do Bloco, que é a mais importante de todas que aconteceu nestes 30 anos, e antes disso houve uma espécie de um soluço que foi o PRD e que depois desapareceu. Os sinais atuais parecem indicar que estamos em vias de uma alteração mais funda. Agora será que os dois grandes partidos, PS e PSD, aguentam e que as transformações são todas à volta, seja na direita seja na esquerda? Ou será que também esses dois partidos vão ser envoltos no turbilhão? Isso não consigo dizer. Ambos parecem mais sólidos do que aquilo que se imagina. Estes dois partidos ocuparam a vida política portuguesa durante 40 anos de uma maneira ímpar na Europa nestes anos todos. Agora, às vezes tem-se a impressão de que esgotaram a vida política.
E vai acontecer uma coisa também rara. Provavelmente — não é seguro — vamos ter a reeleição de um Presidente que, de alguma forma, não representa nenhum desses partidos: Marcelo Rebelo de Sousa.
Ou representa os dois.
Representa os dois sem representar nenhum.
O Presidente Marcelo Rebelo de Sousa conseguiu a extraordinária façanha de ser eleito sem partido. Fez uma campanha solitária e governou até agora, até há pouco tempo, sozinho e solitário. A partir do momento em que ele quis começar a preparar a reeleição…
Mas, apesar de tudo, em 2016 a sua base ainda era o PSD. Tinha uma relação tensa com o seu velho partido, mas ainda era a sua base eleitoral.
Agora ou tem os dois ou não tem nenhuma e eu creio que vai ter os dois. Se tiver os dois partidos significa que um terço de cada um irá com ele. E se houver um bom candidato à direita e um bom candidato à esquerda corre o risco de não ter uma reeleição triunfal como gostaria de ter. O objetivo da reeleição são os famosos 70 e tal por cento de Mário Soares em 1991. A minha convicção é que Marcelo Rebelo de Sousa está reeleito, não tenho praticamente dúvidas sobre isso. E acho muito bem, acho que ele merece ser eleito e sou muito capaz de votar nele. Agora, seria péssimo se não houvesse um bom concorrente, um bom candidato à esquerda, pelo menos — à direita interessa-me menos, mas que houvesse um candidato à altura.
Ana Gomes?
É uma hipótese. O Assis é outra hipótese. Mas têm que ser candidatos sérios, honestos, com programa, com fogo político, com energia, com entusiasmo e disponíveis ao sacrifício político. As chances eleitorais desses candidatos, mesmo dos melhores, são muito reduzidas ou nulas, mas é uma candidatura que obriga a candidatura principal a alterar-se no seu projeto, no seu princípio, nos seus objetivos. É um sacrifício, mas que tem futuro para mais tarde
Acha que Rui Rio vai chegar a primeiro ministro?
Não.
Ele acha que sim, que vai chegar lá por desgaste da António Costa. Acha que lhe basta estar no sítio certo.
Não acho que ele conseguiu transferir para o plano nacional uma ou outra virtude que afirmou ou que exibiu no município do Porto. Até porque, eventualmente, essas virtudes não são transferíveis, exigem uma linguagem diferente, um caráter e uma maneira diferentes. Não conseguiu. Ele hesita entre a afabilidade e a autoridade de uma maneira incompreensível, não se percebe porquê. O gesto da diminuição ou da redução dos debates parlamentares revelou uma natureza, para mim, absolutamente surpreendente. Ainda por cima ele não precisava. Que o António Costa tenha aderido a essa ideia acho mesmo lamentável, mas é um primeiro-ministro que está exausto, cansado, pesado, que quer ter um pouco mais de agilidade para pensar, recuar para poder saltar. Percebo que um primeiro-ministro exausto cometa uma asneira destas. Não aceito, mas percebo.
Mas ele defendia esta ideia. Já a tinha defendido publicamente em 2013.
Então já nem sequer é cansaço do primeiro-ministro, já vem de trás. É pena. Que o líder da oposição, que tem ali uma arma excelente para fazer o que tem a fazer, até para conduzir o seu grupo parlamentar, para dar unidade àquele grupo parlamentar, que não tem — o grupo parlamentar do PSD está estragado, praticamente arruinado — e que ele tenha desejado ou colaborado nesta decisão, acho uma das decisões mais lamentáveis de toda a democracia portuguesa em 40 anos.
Tudo levava a crer que era preciso aumentar o número de debates, melhorar o número de debates. Podia-se fazer muitas coisas para reduzir certos tempos, certas capacidades de intervenção, podia-se especializar cada sessão em assuntos diferentes, os partidos falavam todos, mas de uma maneira diferente, menos tempo, retorquiam rapidamente, não havia aquelas longas intervenções. Havia muita maneira de alterar o debate parlamentar para melhor, porque o nosso debate parlamentar é pobre, é crispado, é malcriado, tem mau feitio, não serve para grande coisa. Hoje em dia com a televisão pode-se ver: vejam os debates parlamentares em 30 países europeus e ocidentais, talvez haja também um outro mau, é possível, mas vê-se a diferença de qualidade, de tom, de interesse destes debates parlamentares em relação a Portugal. Quando tudo levava a crer que se poderia melhorar o debate parlamentar, dar-lhe força, dar-lhe sintonia com a população, o que quer que fosse preciso fazer, não. Em vez disso encontra-se a solução mais fácil, que foi a cirurgia: vamos acabar com isto. Acho que foi lamentável.
Durante muitos anos considerou a justiça portuguesa como um dos nossos maiores cancros. Apesar de tudo, concluiu-se a acusação a José Sócrates — vamos ver se vai a tribunal ou não — e a acusação do caso BES. Melhorou a sua opinião? É um passo importante termos levado, pelo menos, essas duas investigações até ao fim?
Só mudo de opinião se vir em tempo útil os casos resolvidos. A acusação é só uma parte da cena. Depois da acusação vamos ter que ter os recursos, a instrução, todos os procedimentos que vão mostrar, a meu ver, a Justiça no seu pior, que é na capacidade dilatória, de adiar, atrasar, recuar, progredir, atrasar, etc..
Estou contente de que tenham terminado algumas das acusações, duas em todo o caso: o Marquês e o caso BES. Demoraram tempo a mais, muito tempo mais, e sofrem ainda da ideia de que é preciso fazer mega processos. É uma ideia errada. Muitas destas coisas podem ser divididas em vários processos, com vários tempos, mesmo que haja ligações entre as coisas. Mantém todo um universo quase obsceno de utilização das escutas, de utilização do segredo de justiça, de deturpação das normas do segredo de justiça, tudo isso continua conforme sempre esteve. Não são só os magistrados que tratam desse assunto, nem só as raparigas ou os rapazes das fotocópias.
Não são sobretudo eles.
Não são sobretudo esses. Essa dimensão continua de pé. Não se percebe porque é que há dois únicos juízes na instrução criminal, não se percebe. Uma grande parte da polémica e da controvérsia entre estes dois juízes, entre estes juízes e a Procuradoria, entre os magistrados judiciais e o Departamento Central, entre Judiciário e o Ministério Público. Este universo que está sempre à beira da guerrilha processual está inteirinho lá.
Temos duas acusações, finalmente, muito bem, mas guardo o aplauso para o fim da cena. Isto é só o primeiro ato.
[A entrevista a António Barreto na íntegra:]