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Um capítulo (de três), menos de 60 páginas, mas muitos, muitos recados. Sem nunca nomear qualquer protagonista recente, Aníbal Cavaco Silva aproveita o seu novo livro para deixar várias lições: o poder, mesmo absoluto, não serve de nada se não for para transformar e reformar; um primeiro-ministro deve cumprir as suas promessas; um partido não se deve confundir com o país; é o chefe de Governo quem deve assumir responsabilidades pelos erros dos seus ministros e quem erra clamorosamente deve ser posto na rua à primeira oportunidade; culpar os antecessores é desculpa dos incompetentes; o sentido de urbanidade é uma exigência; e o respeito institucional pelo Presidente da República uma condição absoluta. O destinatário óbvio? António Costa.
No prefácio da obra O Primeiro-Ministro e a Arte de Governar, que será apresentado esta sexta-feira por Durão Barroso, Cavaco Silva explica que decidiu escrever este ensaio pela sua experiência pessoal — ocupou os cargos de primeiro-ministro e de Presidente da República —, mas também pela “observação do exercícios das funções dos seis primeiros-ministros que ocuparam o cargo” depois dele.
Uma vez que o antigo Presidente da República já aconselhou António Costa a demitir-se, dado que lidera um Governo que passa os dias a “mentir”, que desceu para lá dos confins da ética republicana, que está paralisado pelo “desnorte”, movido pelo “populismo”, a “hipocrisia” e o “desprezo pelos interesses nacionais”, não é um exercício arriscado assumir que grande parte das críticas deste livro sejam direitinhas para António Costa.
Ainda assim, Marcelo Rebelo de Sousa não parece escapar aos reparos de Cavaco Silva, que, na pele de primeiro-ministro, sabe bem o que é ter um Presidente da República hostil. “O primeiro-ministro e o Governo não beneficiam de um clima de conflitualidade com o Presidente da República, exceto se o Presidente cometer muitos erros ou extravasar claramente as suas competências e que tal seja percebido pela opinião pública”, escreve Cavaco.
O poder é um meio, não um fim
Esta não é a primeira vez que Aníbal Cavaco Silva ataca duramente António Costa. Logo em junho de 2022, num artigo de opinião publicado no Observador, o antigo Presidente da República desafiou o atual primeiro-ministro a “fazer mais e melhor” do que ele quando ocupou o cargo de chefe de um Governo maioritário. “Estou certo de que, encerrada a fase da ‘geringonça’, o seu governo de maioria absoluta fará mais e melhor do que as maiorias de Cavaco Silva”, provocava então.
É precisamente com essa ideia que o antigo Presidente da República arranca o seu livro e, ao terceiro parágrafo, Cavaco define o tom: “O sucesso governativo é definido não em termos de resultados eleitorais e preservação do poder, mas de progresso do país”. O poder, e a maioria absoluta em particular, não devem ser um fim em si mesmo, mas um meio para mudar o país. Costa, tantas vezes acusado de não ter feito reformas estruturais ao longo dos últimos anos e de estar a desbaratar a maioria absoluta, parece — como ao longo de todo o livro — o principal destinatário da mensagem.
“É fundamental que os cidadãos percebam que o Governo é liderado por um primeiro-ministro com visão de futuro, empenhado em resolver os problemas do país e melhorar as condições de vida da população, que cumpre as promessas feitas, que não tem medo de escolher e decidir, de fazer o que deve ser feito, mesmo que desagrade a uma ou outra corporação (…) O primeiro-ministro não deve fechar-se no seu gabinete de Lisboa”, remata.
A palavra dada deve ser mesmo palavra honrada
Logo a seguir, o antigo Presidente da República acrescenta: “[As pessoas] esperam igualmente que atue de modo a preservar a credibilidade do Governo, definida esta como o grau em que os cidadãos (…) acreditam que as políticas cumpridas são de facto cumpridas“.
Ora, nas últimas semanas e meses, António Costa — que chegou a fazer da frase “palavra dada é palavra honrada” um slogan dos seus governos — tem sido ensombrado por duas promessas que estão muito longe de estarem concluídas e que foram feitas logo no seu primeiro executivo, em 2016: um médico de família para cada português e casa condigna para todas as famílias portuguesas até 2024, por altura dos 50 anos do 25 de Abril. António Costa não passaria no exame de Cavaco Silva.
Mais à frente no livro, o antigo Presidente da República volta ao tema, com renovados avisos. “O mais importante é o primeiro-ministro ser rigoroso na prática da transparência e da ética na vida política e falar verdade, não tentar enganá-los ou criar falsas ilusões, primar pela clareza de atitudes, não fazer promessas que sabe não poder cumprir e evitar o discurso ideológico e propagandístico (…) A mentira corrói a autoridade do primeiro-ministro.”
O país não é o partido
O (ainda) detentor do mais longo mandato como primeiro-ministro (1985 a 95), Aníbal Cavaco Silva foi muitas vezes acusado de alimentar um clima em que uma maioria — a do PSD — que dominava todos os aspetos do Estado. Aliás, quando tomou posse como chefe do terceiro governo, em 2022, António Costa recordou esses tempos para deixar uma promessa: “Faço parte de uma geração que se bateu contra uma maioria existente que, tantas vezes, se confundiu com um poder absoluto“.
No tal artigo de opinião publicado no Observador, Cavaco Silva não deixaria Costa sem resposta. Agora, no livro O Primeiro-Ministro e a Arte de Governar, deixa um novo recado. “A realização do interesse nacional, motivação primordial do primeiro-ministro, exige-lhe a defesa inabalável do princípio de separação entre Estado e partido. O Governo atua no plano nacional e não no plano partidário; o Governo e a sua política não estão subordinados a partidos”.
Curiosamente, as palavras de Cavaco Silva surgem numa altura em que muitas vozes socialistas vão repetindo apelos para uma maior abertura por parte de António Costa. O último a fazê-lo, de resto, foi o insuspeito Carlos César: “O PS não é dono do país, nem o único a ter as melhores ideias. Deve entender que lhe cabe sempre aproveitar os contributos que sinceramente achar úteis e melhores para a governação”, pediu o presidente socialista.
O responsável pelos (maus) ministros é o PM
Em janeiro, num altura em que o Governo enfrentava (quase diariamente) pequenos, médios e grandes escândalos, António Costa desenhou um questionário com 36 perguntas para impedir que os futuros governantes que viessem a ser nomeados fossem apanhados em situações politicamente duvidosas ou até potencialmente ilegais. Entre ministros e secretários de Estados, entre demissões e saídas, já caíram 13 membros deste Governo.
Em alguns casos, como o de Miguel Alves, que foi nomeado para ser o braço direito de Costa quando já era arguido num primeiro processo (seria constituído num segundo processo e ver-se-ia envolvido na polémica do pavilhão multiusos de Caminha), Costa resistiu até ao fim para afastar o governante em causa.
Mais uma vez sem nunca falar de casos concretos, Cavaco Silva deixa a sua receita. “O escrutínio das pessoas escolhidas pelo primeiro-ministro para exercer as funções de ministro é da sua exclusiva responsabilidade e não pode ser feito na praça pública. (…) Apesar de todos os seus esforços, não se pode excluir a possibilidade de a informação recolhida se revelar a posteriori incompleta ou errada em relação a alguns deles, pondo em causa a sua permanência no Governo. Num caso destes o interesse nacional impõe que o primeiro-ministro utilize, sem hesitação, o seu poder de propor ao Presidente da República a exoneração de membros do executivo.”
O Presidente deve ter lista de ministros antes dos jornais
Foi uma das primeiras irritações entre António Costa e Marcelo Rebelo de Sousa neste novo ciclo de coabitação. Ainda antes de o primeiro-ministro comunicar ao Presidente da República a futura composição do Governo, houve uma fuga para os jornais que deixou o chefe de Estado profundamente irritado ao ponto de cancelar a audiência com António Costa. “Se aquilo que corre na comunicação social for confirmado, dispensa-se uma audiência [com o primeiro-ministro]. Pelos vistos, fiquei a saber pela comunicação social [da lista de ministros]”, lamentou então Marcelo.
Depois escrever que é “altamente inconveniente que os nomes dos ministros apareçam na comunicação social antes de serem apresentados ao Presidente da República”, Aníbal Cavaco Silva dá uma sugestão a António Costa e aos futuros ocupantes do cargo: “O primeiro-ministro indigitado deve pedir a cada um das pessoas contactadas que mantenha total sigilo”.
A culpa não é de Passos
Grande parte do arranque da era António Costa foi marcada pela sistemática troca de acusações entre PS e PSD. Se os socialistas não se cansavam de dizer que Pedro Passos Coelho fora “além da troika”, os sociais-democratas não deixavam de lembrar a bancarrota de José Sócrates. A discussão tornou-se de tal forma recorrente que originou, à direita, um hashtag irónico para justificar todas as falhas do governo socialista: #ACulpaÉDoPassos.
Ora, o debate sobre a paternidade dos problemas estruturais do país mantém-se, mas existe, hoje, um pormenor substancial: Pedro Passos Coelho não é primeiro-ministro desde 2015, há quase oito anos, e muitos dos problemas estruturais (Justiça, Habitação, Saúde) continuam a existir — ainda esta quinta-feira João Costa, ministro da Educação, pediu mais tempo para resolver a falta de professores nas Escolas.
Mais uma vez, o Governo não passaria no exame do antigo Presidente da República. “O primeiro-ministro deve recomendar-lhes [aos ministros] que acompanhem a execução das medidas, para que elas não fiquem só no papel e deve ser categórico na afirmação de que, passados seis meses, não devem insistir mais na atribuição ao Governo anterior das culpas da situação existente. (…) Culpar o Governo anterior para além daquele período é um indicador seguro de incompetência do ministro, que tende a revelar como óbvia a sua inaptidão”, escreve Cavaco.
Pedro Nuno e Galamba deviam ter ido para a rua à primeira
Neste livro, Aníbal Cavaco Silva também discorre largamente sobre o afastamento de ministros e as remodelações governativas. Sem nunca qualquer protagonista, antigo Presidente da República começa por deixar uma primeira ideia: “A popularidade dos ministros, medida pelas sondagens de opinião publicadas, não deve ser critério de avaliação de desempenho com peso significativo (…) Como se tem verificado, um ministro popular pode não ser um bom ministro do ponto de vista do interesse nacional”.
A seguir, Cavaco Silva explica aquilo que, no seu entender, deve motivar o afastamento imediato de um elemento do Conselho de Ministros, a começar pelos “casos de falta de lealdade” entre elemento do Governo e primeiro-ministro. O reparo do antigo Presidente da República parece apontar diretamente ao primeiro episódio de tensão entre Pedro Nuno Santos e António Costa, à boleia da decisão tomada pelo então ministro das Infraestruturas e da Habitação sobre o novo aeroporto.
Recorde-se que, já no final de junho de 2022, o ministério de Pedro Nuno Santos anunciou que o Governo ia construir o novo aeroporto no Montijo, com o agora ex-ministro a dar duas entrevistas televisivas a defender a solução. António Costa estava em Madrid, na Cimeira da NATO, e, assim que aterrou, mandou tudo para trás. O comunicado seria arrasador para Pedro Nuno: “Compete ao primeiro-ministro garantir a unidade, credibilidade e colegialidade da ação governativa”. Dessa vez, Pedro Nuno Santos ficou e assumiu a responsabilidade — cairia meses depois por causa da TAP.
Mas o antigo Presidente da República continua. “O primeiro-ministro não pode deixar de propor a demissão de um ministro de comportamentos reveladores de ausência de sentido de Estado (…) ou de outras violações graves da ética política“. O episódio com João Galamba (agressões no Ministério das Infraestruturas), tudo o que se seguiu depois disso (envolvimento das secretas e várias versões contraditórias) e o choque frontal entre Marcelo e António Costa — que recusou a demissão de Galamba — teriam, para Cavaco Silva, um único responsável: o primeiro-ministro.
“[Nestas circunstâncias] o primeiro-ministro não pode deixar de propor a demissão de um ministro. (…) Não o fazendo, a credibilidade e a autoridade política e moral do primeiro-ministro ficam duramente feridas e a coesão do Governo e a qualidade da sua ação serão postas em causa”, sublinha Cavaco Silva.
Por todos estes episódios — que não se esgotam na dupla Pedro Nuno – João Galamba –, António Costa tem sido muito pressionado (dentro e fora do partido) a fazer uma remodelação alargada para dar novo embalo ao Governo. Recuperando a sua experiência como chefe de governo, Cavaco Silva recorda que tal missão exige uma “preparação e execução meticulosas”, mas deixa (mais) um recado: “Só um primeiro-ministro provido de autoridade política e moral consegue fazê-la com sucesso”.
Cavaco não diria “Habituem-se”
A frase foi dita logo no arranque de 2023, quando se somavam “casos e casinhos” no Governo, e colou-se a António Costa como uma segunda pele: “Cansado? Desde as eleições, quem se cansou foi um líder do PSD, um líder da Iniciativa Liberal (IL) e um líder do PCP. Eu ainda cá estou… E por mais quatro anos, até ao final do mandato. Habituem-se! Vão ser quatro anos e habituem-se a viver com a escolha dos portugueses”.
Ora, o “habituem-se”, dito em entrevista à revista Visão, alimentou todo o tipo de ataques por parte da oposição, mesmo depois de o primeiro-ministro ter acusado a publicação de ter retirado aquela expressão do contexto. A questão é que, na mesmíssima entrevista, António Costa disse, entre outras coisas, que “os “‘queques’, quando tentam guinchar, ficam ridículos”, numa referência assumida à Iniciativa Liberal e que motivou outros tantos ataques ao primeiro-ministro e à linguagem por ele utilizada.
Nem de propósito, Cavaco Silva dedica um parágrafo inteiro ao sentido de “urbanidade” que deve guiar um primeiro-ministro em funções. “No debate político, o primeiro-ministro deve garantir conteúdo, relevância e credibilidade à palavra pública, evitar a demagogia e retórica fácil, e ser exemplo de urbanidade e boa educação, nunca recorrendo a linguagem insultuosa ou agressiva”, escreve.
O guia para uma relação feliz entre Marcelo e Costa
Aníbal Cavaco Silva dedica o nono capítulo da primeira parte do seu livro a uma dinâmica que conhece bem: a relação entre primeiro-ministro e Presidente da República. Ele que, tendo ocupado os dois cargos, travou duras guerras com Belém (Mário Soares) e São Bento (José Sócrates). E, talvez por isso, neste capítulo em concreto, Cavaco Silva pareça reservar críticas tanto para António Costa como para Marcelo Rebelo de Sousa, que vão alimentando um braço de ferro cada vez menos discreto e prolongado no tempo.
“A principal preocupação do primeiro-ministro no seu relacionamento com o Presidente da República deve ser o de evitar que o Presidente utilize os seus poderes para impedir o Governo de executar o seu programa e que tenha sucesso na sua ação”, começa por escrever Cavaco Silva, que chegou a responder aos bloqueios de Mário Soares com o célebre “deixem-nos trabalhar“.
Não é a única referência (que parece ser) para o atual Presidente da República, tantas vezes acusado de extravasar as suas funções — aliás, recorde-se que Marcelo Rebelo de Sousa pediu publicamente a demissão de João Galamba e acabou desautorizado (também publicamente) por António Costa, no momento de coabitação mais tenso entre os dois.
Ora, recorrendo à obra Os Poderes do Presidente da República, de Vital Moreira e Gomes Canotilho, Cavaco dispara (aparente) contra Marcelo. “’A responsabilidade do Governo perante o Presidente da República é veiculada exclusivamente através do primeiro-ministro, não podendo o Presidente da República pedir contas diretamente a um ministro, nem muito menos demiti-lo individualmente’“.
Continua Cavaco Silva: “O primeiro-ministro e o Governo não beneficiam de um clima de conflitualidade com o Presidente da República, exceto se o Presidente cometer muitos erros ou extravasar claramente as suas competências e que tal seja percebido pela opinião pública”. Ora, aqui o antigo Presidente da República parece censurar a precipitação de Marcelo no caso Galamba e assumir as dores dos socialistas, que há muito vêm lamentado as recorrentes referências do Presidente da República à possível dissolução do Parlamento.
No fundo, insiste Cavaco Silva, “o mais importante para o primeiro-ministro é que o Presidente adote uma conduta marcada pela isenção e independência em relação às forças partidárias, não interfira no combate político e não atue como força de contrapoder relativamente ao Governo” — Marcelo, dizem os seus críticos, e o antigo Presidente está nesse grupo, tem sido tudo isso e o seu contrário na sua relação com António Costa, de coadjuvante (exasperando a oposição) a opositor declarado (irritando os socialistas).
Ainda assim, o social-democrata não deixa de argumentar que um primeiro-ministro não deve, em momento algum, hostilizar abertamente o Presidente da República em funções, evitando (com habilidade e diplomacia) vetos políticos aos diplomas e, mesmo discordando, nunca comprar guerras em público — Costa já afrontou Marcelo em dois vetos (Educação e Habitação) e aproveitou o último Conselho de Estado para, com o seu silêncio, meter Marcelo no seu “galho”.
“O primeiro-ministro deve evitar responder em público às críticas [do Presidente da República], à política do Governo que considere injustas e reservar-se para manifestar o seu desacordo na seguinte reunião de quinta-feira ou através de um telefonema pessoal”, aconselha Cavaco Silva. Resta saber se os dois — Marcelo e Costa — lhe vão dar ouvidos.