Depois de quatro cortes na taxa de juro, o BCE sinalizou que não irá ficar por aqui. Embora ainda não se possa “cantar vitória na inflação”, Christine Lagarde deixou implícito, nesta quinta-feira, que a “recuperação económica mais lenta do que se previa” deverá justificar mais descidas nos juros nos próximos meses. Aliás, alguns governadores – incluindo Mário Centeno – defenderam, já nesta reunião, cortes mais rápidos (de 50 pontos-base). “A direção do caminho é clara“, disse a presidente do BCE: é continuar a baixar juros. Mas há um risco que, acima de todos os outros, ameaça trocar as voltas a Lagarde: os prometidos aumentos das tarifas alfandegárias por Donald Trump.
“Restrições ao comércio, medidas protecionistas, não são conducentes a crescimento económico e, no final de contas, têm um impacto sobre a inflação que é muito indefinido“, salientou Christine Lagarde nesta quinta-feira, na conferência de imprensa na qual justificou a decisão de baixar as taxas de juro, uma vez mais, na “dose mínima” de 25 pontos-base. A taxa de juro dos depósitos, a mais importante para a política monetária, baixou para 3% (estava em 4% há menos de meio ano).
Já depois da conferência de imprensa, a agência Reuters noticiou, citando fontes do BCE, que “uma mão-cheia” de governadores defendeu, inicialmente, um corte de 50 pontos-base na taxa de juro – um grupo onde, confirmou o Observador junto de fonte próxima, se inclui Mário Centeno.
O governador português já tinha dito, numa entrevista no final de outubro, que o banco central “não precisa[va] de se restringir a uma métrica de descer apenas de 25 em 25 pontos base”. De acordo com Lagarde, a hipótese de um corte de 50 pontos foi debatida mas, no final, “todos se alinharam” na decisão de cortar os juros em apenas 25 pontos.
Para levar as “pombas” do BCE, como Mário Centeno, a aceitarem um corte de apenas 25 pontos-base terá sido decisiva um pequena mexida no comunicado final que, no entanto, tem um enorme significado para a previsão de como os juros irão evoluir nos próximos meses. A autoridade monetária retirou a referência à manutenção das taxas de juro em território “restritivo”, por quanto tempo fosse necessário, para controlar a inflação – uma formulação que era repetida, invariavelmente, nos últimos meses e que, agora, desapareceu.
Estima-se que um nível “neutral” nas taxas de juro na zona euro possa rondar os 2% – um nível que nem estimula nem restringe a atividade económica. Por essa razão, a retirada desta referência aos juros em nível “restritivo” foi interpretada como um sinal de que os juros vão continuar a baixar, para um nível mais próximo do tal patamar mais “neutral”.
Andrew Kenningham, economista da londrina Capital Economics, concorda que “as alterações feitas no comunicado oficial mostram que a maré no Conselho do BCE está a mudar, afastando-se gradualmente do combate à inflação e colocando uma ênfase maior no apoio à atividade económica“.
Inflação cada vez mais perto da meta. Crescimento cada vez menos animador
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Esta foi uma reunião de política monetária que coincidiu com a divulgação de novas projeções para a economia e para a inflação, o que são atualizadas trimestralmente. Os economistas do BCE reviram em baixa (uma décima) a projeção para a inflação em 2024, para 2,4%. Em 2025, a taxa de inflação deverá ficar ainda mais próxima do objetivo (2%), nos 2,1% – e em 2026 a previsão aponta para um ritmo de subida dos preços de 1,9%.
Por outro lado, os economistas “passaram a prever uma recuperação económica mais lenta do que apontavam nas projeções de setembro”. “Embora o crescimento tenha aumentado no terceiro trimestre deste ano, os inquéritos [que servem como indicadores avançados de como vai evoluir a economia] sugerem que a atividade abrandou no trimestre atual”, isto é, o quarto trimestre, diz o BCE.
Os economistas preveem que a economia irá crescer 0,7% em 2024, 1,1% em 2025, 1,4% em 2026 e 1,3% em 2027. “A recuperação projetada baseia-se, sobretudo, no aumento dos rendimentos reais – o que deverá permitir às famílias consumir mais – e no aumento do investimento das empresas”. Ao longo do tempo, o desaparecimento gradual dos efeitos da política monetária restritiva deverá apoiar uma recuperação da procura interna”, antevê o BCE.
Christine Lagarde afirmou, na conferência de imprensa, que “os riscos em torno das perspetivas económicas pendem para o lado negativo”, ou seja, é maior o risco de que as previsões se revelem demasiado otimistas do que o contrário. As empresas estão a adiar decisões de investimento, reconheceu a presidente do BCE, perante sinais de “fraca procura por parte dos consumidores” e num quadro de “perspetivas altamente incertas” na economia.
Já as exportações, também, estão “fracas”, com alguns setores económicos com “dificuldades em manterem-se competitivos” – uma referência (implícita) a setores como o fabrico automóvel. Embora existam razões para otimismo no consumo privado e o mercado de trabalho continue “resiliente”, o BCE está a detetar alguns sinais de enfraquecimento nas novas contratações.
Por outro lado, a inflação no setor dos serviços continua “quente”, próxima dos 4%, o que continua a preocupar os “falcões” dentro do BCE. E algumas negociações salariais também estão a contribuir para que a “inflação interna se mantenha elevada“, afirmou Christine Lagarde. Porém, a presidente do BCE pareceu desvalorizar esses dados mais preocupantes para a inflação, atribuindo-os ao facto de “os salários em certos setores ainda se estarem a ajustar, com um atraso substancial, ao aumento rápido da inflação que existiu no passado“.
Mas a principal ameaça para a evolução da inflação, indicou Christine Lagarde, não é interna – é externa. Além dos riscos geopolíticos, como a instabilidade no Médio Oriente e o conflito na Ucrânia, que se arrasta há quase três anos, o que mais estará a tirar o sono à presidente do BCE é o receio de que Donald Trump anuncie, mesmo, fortes agravamentos das tarifas (taxas alfandegárias) cobradas nas importações norte-americanas – um tema que foi dominante na conferência de imprensa desta quinta-feira.
Além de alertar que tarifas mais elevadas nunca são algo que promova o crescimento económico (porque introduzem areia na engrenagem do comércio mundial), a presidente do BCE salientou que é muito difícil prever o impacto que tais medidas – caso se confirmem – terão para o ritmo de subida dos preços. No início, podem fazer saltar a inflação, mas numa fase subsequente pode não ser bem assim.
“No curto prazo, em termos líquidos, provavelmente levam a um aumento da inflação, mas o impacto global [a médio e longo prazo] para a inflação é incerto, porque vai depender da abrangência das medidas [que Trump poderá anunciar], de eventuais retaliações que podem surgir, de possíveis deslocações das rotas de comércio proveniente de outras partes do mundo…”.
Os analistas da eBury, uma firma especializada em mercado cambial, diz em nota partilhada com o Observador que “o BCE apresentou uma avaliação pouco animadora da economia, com a presidente Lagarde a alertar para o facto de a dinâmica de crescimento estar a abrandar, enquanto também assinalou os riscos negativos colocados por maiores restrições ao comércio”.
Neste contexto, “a economia doméstica continua frágil, as tarifas de Trump surgem no horizonte e o BCE parece ter pressa em baixar as taxas para um nível neutro ou inferior”, acrescentam os analistas da eBury, notando a probabilidade de que o euro continue a perder terreno face ao dólar no próximo ano.
Esta reunião do BCE, além de ser a última do ano, é também a última antes de Donald Trump regressar à Casa Branca: a tomada de posse está marcada para dia 20 de janeiro e a próxima reunião do banco central só acontece no final desse mês, dia 30.
Durante a campanha, Trump falou insistentemente na necessidade de aumentar as tarifas – que são a sua “palavra favorita em todo o mundo” – apesar dos alertas da generalidade dos economistas de que isso irá voltar a agravar a inflação, aumentar o custo de vida para os norte-americanos e potencialmente desestabilizar o comércio internacional.
Riscos políticos em França e Alemanha? Lagarde pede que se mantenha viva a memória da História
Questionada sobre a incerteza política em França, o seu país-natal, Christine Lagarde recusou fazer comentários sobre Estados-membros em particular. Mas lembrou que há “vários países, pelo menos quatro, que não entregaram os planos orçamentais”.
A incerteza que isso gera, incluindo nas decisões de investimento das empresas, é uma incerteza “auto-infligida” no contexto europeu. Porém, estes são processos com os quais o BCE diz “não ter nada a ver” (porque são, inclusivamente, processos eleitorais). Ainda assim, a presidente do BCE mostrou-se confiante de que nos primeiros meses do próximo ano haverá mais visibilidade sobre estas matérias.
Anteriormente, Christine Lagarde tinha referido que o Conselho do BCE “não teve qualquer debate” sobre o TPI, o mecanismo que existe para, se for considerado necessário, intervir com a compra de títulos de dívida pública de certos países, como forma de conter períodos de instabilidade nos mercados. Para já, não parece estar a ser necessário, uma vez que os mercados de dívida continuam a não manifestar qualquer turbulência perante a incerteza política em França.
Perto do final da conferência de imprensa, a presidente do BCE também foi questionada sobre as eleições na Alemanha, que irão acontecer no início de 2025 e nas quais poderá acontecer uma subida do partido nacionalista AfD, que faz campanha dizendo que a Alemanha deve sair da zona euro e da União Europeia (e, também, do Acordo de Paris sobre as metas ambientais).
“A União Europeia foi fundada por um conjunto de países-fundadores que incluía a Alemanha, depois de um período horrível em que os Estados-membros que hoje estão sentados à mesma mesa tinham estado, pouco antes, a atacar-se mutuamente“, respondeu Christine Lagarde.
Esse período anterior, de guerra na Europa, “levou à morte de muitos, muitos, muitos europeus“. “Tenho uma grande esperança de que esta história, que está na génese da União Europeia, continuará a estar muito viva na memória de toda a gente“, terminou a presidente do BCE.