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“Um processo muito pouco transparente”. Era esta a designação genérica contida no primeiro relatório do Núcleo de Assessoria Técnica da Procuradoria-Geral da República que foi junto aos autos em 2015 sobre a muito complexa questão dos alegados benefícios à EDP nos contratos de fornecimento de eletricidade e na extensão da exploração de 27 barragens. E esse foi o mote de toda a investigação levada a cabo pelos procuradores Carlos Casimiro e Hugo Neto para a acusação agora conhecida que envolve Manuel Pinho, ex-ministro da Economia e António Mexia e João Manso Neto, então líderes do Grupo EDP.
Com base em prova pericial e diversos relatórios da REN – Redes Energéticas, da Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos, do Instituto da Água e da Autoridade da Concorrência, o Ministério Público concluiu que a EDP terá sido alegadamente beneficiada em cerca de 840 milhões de euros por decisões tomadas no período 2006/2007 por Manuel Pinho, na altura ministro de José Sócrates.
Tal só terá acontecido após António Mexia e João Manso Neto, então líderes do Grupo EDP, terem feito um alegado “pacto corruptivo” com Pinho — ao qual os assessores João Conceição (hoje administrador da REN) e Rui Cartaxo e o ex-diretor-geral Miguel Barreto terão aderido, tendo tido uma “colaboração decisiva” para que a EDP fosse alegadamente beneficiada.
Esta é a versão resumida de uma acusação com mais de 1.000 páginas que contém várias imputações feitas pelo Ministério Público — que o Observador explica nos detalhes.
Desde a forma como Manuel Pinho envolveu um prémio Nobel da Economia e sugeriu o patrocínio de uma subsidiária do Grupo EDP para um curso sobre energia eólica na Universidade de Columbia, passando pela contratação de João Conceição para a consultora Boston Consulting Group (BCG) e para o BCP por influência da EDP — ao mesmo tempo que continuava ser assessor do Ministério da Economia. Até à forma como Guta Moura Guedes, companheira de Mexia, terá sido contratada pelo ministro Manuel Pinho.
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Como a EDP terá sido favorecida por Manuel Pinho e os 840 milhões que ganhou
Num processo tão complexo é importante dar algum contexto — e até glossário de siglas. Este dossiê remonta a 1995, quando o Governo de Cavaco Silva criou os Contratos de Aquisição de Energia (CAE) para regular a compra de energia elétrica para o mercado nacional por parte da então empresa pública Companhia Portuguesa de Produção de Eletricidade — futura EDP.
O enquadramento legislativo para a mudança dos contratos CAE para os novos contratos designados por Custos para a Manutenção do Equilíbrio Contratual (CMEC) só vem a ser terminado em 2004, pelo Governo de Pedro Santana Lopes. Toda a arquitetura jurídica fica pronta mas a aplicação, com regras diferentes, só é executada por Manuel Pinho, ministro da Economia de José Sócrates, em 2007.
A substituição dos CAE pelos CMEC era uma peça chave para Portugal implementar o mercado ibérico de eletricidade (o Mibel) porque permitiam libertar a energia produzida pela EDP para vender em regime de mercado, mas garantindo à empresa que não ficaria a perder face aos contratos iniciais de 1996.
Portanto, o centro da investigação do DCIAP é simples de descrever:
- a transformação em contratos CMEC dos 32 contratos CAE celebrados em 1996 entre a Companhia Portuguesa de Produção de Eletricidade (posição herdada pela EDP) e a empresa REN — Redes Energéticas Nacionais sobre 27 centrais hidroelétricas (barragens) e cinco centrais térmicas;
- o processo de extensão da concessão do Domínio Público Hídrico (DPH) pela exploração das 27 barragens desde o fim da vigência dos CAE até ao fim da vida útil dessas barragens – uma nova questão que não estava contemplada nos contratos CAE.
De uma forma igualmente simples, os procuradores Carlos Casimiro e Hugo Neto baseiam-se em prova pericial, pareceres e testemunhos de responsáveis da REN – Redes Energéticas, da Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos, do Instituto da Água (a Agência Portuguesa do Ambiente absorveu estas competências) e da Autoridade da Concorrência para afirmar que:
- verificou-se uma sobrevalorização dos benefícios a que a EDP tinha direito com a transição para os contratos CMEC. Dito de outra forma, a EDP teria sempre de ser compensada, mas os valores atribuídos são excessivos;
- e uma subvalorização do que a EDP teria de pagar pela continuação da exploração de 27 barragens.
A acusação diz que António Mexia e João Manso Neto, pelo lado da EDP, e o então ministro Manuel Pinho (juntamente com os seus assessores João Conceição, Rui Cartaxo e Miguel Barreto) acordaram um “pacto corruptivo” para concertarem decisões políticas que terão levado a um benefício de pelo menos 840 milhões de euros para a EDP.
Um alegado benefício para a empresa que, dizem os procuradores, corresponde a um “correlativo prejuízo” para o Estado e para os consumidores de eletricidade. É por isso que é pedida com a dedução desta acusação a perda dessa vantagem para o Estado. Ou seja, os arguidos e as empresas EDP, SA, e EDP Gestão de Produção de Energia, SA, poderão ter de pagar esse valor ao Estado se existir uma condenação com trânsito em julgado. Tudo porque o valor em causa corresponde ao alegado benefício que terá sido concedido pelos arguidos acusados de corrupção passiva ao Grupo EDP.
E como é que o Ministério Público chega a esse valor? Com a ajuda de peritos e de pareceres da REN — uma empresa que, na altura dos factos, era maioritariamente pública e monitorizava o regime de transição dos CAE para os CMEC — e de outras entidades públicas. O valor explica-se da seguinte forma:
- A sobrevalorização do valor inicial dos contratos de venda da energia da EDP. Os CMEC foram aprovados em 2004, mas são as alterações introduzidas em 2007 por Manuel Pinho que levam os procuradores a concluir que houve um ganho de 339,5 milhões de euros para a EDP.
- Este ganho esse resultou da alteração de taxas do custo de capital de modo a aumentar o valor dos contratos da elétrica e ignorando os alertas do regulador ERSE — Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos para o facto deste regime ser mais favorável à empresa do que os antecessores CAE.
- Para alcançar este favorecimento, foram produzidos vários diplomas com a assinatura do então ministro Manuel Pinho, entre os quais o decreto-lei 199/2007 que aumenta o preço de referência da energia dos CMEC para 50 euros por MW hora. E a portaria 611/2007 que fixa em 7,55% o custo de capital da EDP nos CMEC quando poucos meses antes a EDP tinha referido 6,6%. Uma diferença que significa muitos milhões de euros.
- Outro dos dossiês centrais na tese de favorecimento à EDP e que para o qual o Ministério Público apresenta um valor — 446 milhões de euros — é a extensão sem concurso público da concessão do domínio público hídrico de 27 barragens.
- Esta extensão sem concurso público já tinha sido considerada ilegal face à lei da água pelo então presidente do INAG (Instituto Nacional da Água) que fez vários alertas ao Governo da altura, como explicou Orlando Borges na Comissão de Inquérito às Rendas Excessivas da EDP.
- Mas a acusação foca-se mais no valor pago pela EDP por esta extensão de 25 anos que está significativamente abaixo do indicado pela REN — Redes Energéticas Nacionais. Os técnicos da REN defendiam que o valor justo seria de cerca de 1,5 mil milhões de euros, mas o ministro Manuel Pinho vem a confiar mais na avaliação de duas instituições financeiras (a Caixa Geral de Depósitos e o Credit Suisse) que fixam o valor do equilíbrio económico-financeiro da extensão das barragens em 759 milhões de euros, “ignorando propositadamente o valor sustentado pela REN de 1.563 milhões de euros“, lê-se na acusação. A diferença apontada aqui é de cerca de 800 milhões de euros, mas o MP indica nas suas conclusões que a EDP foi beneficiada em cerca de 446 milhões de euros neste dossiê.
- Finalmente, verificou-se ainda um terceiro benefício alegadamente concedido à EDP avaliado em 55 milhões de euros. É esse o valor da taxa de recursos hídricos associada à extensão dos contratos das barragens que terá sido perdoado por despacho assinado por Manuel Pinho.
Em reação à acusação, a EDP diz que não foi notificada da acusação, nem é arguida, e reafirma a convicção da correção da sua atuação e a “ausência de qualquer irregularidade relativamente ao processo a que a referida nota alude, de transição dos CAE para os CMEC, processo este amplamente escrutinado por
diversas instituições nacionais e supra-nacionais.”
O lucro de 1,6 mil milhões da EDP com três barragens que custaram apenas 78 milhões
O Ministério Público não valorizou um dos grandes trunfos que António Mexia sempre usou publicamente para desmentir as rendas excessivas ou os alegados benefícios à EDP: a aprovação da Direção-Geral da Concorrência da Comissão Europeia sobre o valor que o Estado português pagou à elétrica pela extensão das barragens.
Por um lado, os procuradores Carlos Casimiro e Hugo Neto argumentam que a decisão de Bruxelas foi tomada sem tomar conhecimento dos emails trocados entre a EDP e o Ministério da Economia, em especial entre os arguidos João Manso Neto, então administrador da EDP e braço direito de Mexia, e Rui Cartaxo, então assessor de Manuel Pinho, e a respetiva concertação na definição do valor a pagar pela elétrica.
Por outro lado, os serviços da concorrência não sabiam que os avaliadores escolhidos pelo Governo estavam comprometidos. Para Bruxelas, a REN (empresa pública e da qual a EDP era acionista minoritária) não era independente. Para os procuradores quem não era independente eram os consultores que fizeram a avaliação para a EDP. A Caixa BI (grupo GDC) era controlado pelo Estado (tal como a REN) e o Crédit Suisse tinha trabalhado para a EDP.
Para reforçar a vantagem da EDP, a acusação compara o valor pago por algumas das barragens abrangidas por esta extensão em 2007 com o encaixe que a elétrica recebeu pelas mesmas em 2019 na venda à Engie. As barragens de Picote, Bemposta, Miranda do Douro custaram 78 milhões de euros à EDP em 2007. E foram vendidas por 1.722 mil milhões em 2019, o que gerou uma mais-valia de 1.644 mil milhões de euros.
As duas operações são distintas. Em 2007, a EDP pagou pelo prolongamento da concessão da exploração das barragens. A venda de 2019 incluiu todos os investimentos, equipamentos e serviços associados à produção.
A EDP colocou o acordo para extensão do domínio hídrico das barragens como condição para implementar os CMEC, sem os quais não haveria mercado ibérico de energia. E essa condição foi um dos temas que influenciou todo este processo. Por outro lado, o pagamento à cabeça feito pela EDP neste negócio foi transferido para as tarifas de eletricidade permitindo ao Governo atenuar a acentuada subida dos preços que tinha sido anunciada para 2007 pela ERSE quando Jorge Vasconcelos presidia ao regulador.
A alegada contrapartida para Manuel Pinho: 436.800 dólares pagos com o patrocínio da EDP
Tal como em qualquer imputação pelo crime de corrupção, além do alegado acordo, é suposto existir uma suposta contrapartida pelos benefícios concedidos. De acordo com a prova documental reunida pelo MP, tal contrapartida corresponde a cerca de 436.800 dólares (cerca de 403 mil euros ao câmbio de hoje) pagos pela Universidade de Columbia (Nova Iorque, Estados Unidos) entre 2010 e 2014 pelos serviços de professor de Manuel Pinho num curso especial dedicado às energias renováveis.
Foi uma subsidiária da EDP, a norte-americana Horizon, que patrocinou tal curso com uma doação de cerca de 1,2 milhões de dólares (cerca de 1,1 milhões de euros ao câmbio de hoje). Sem essa doação não existiria tal curso, sendo que a mesma foi negociada diretamente entre António Mexia, então presidente executivo da EDP, e os responsáveis da Universidade de Columbia.
Universidade de Columbia. Manuel Pinho quis esconder patrocínio da EDP
De acordo com a acusação, “o arguido Manuel Pinho já há muito tinha acertado com os arguidos António Mexia e João Manso Neto que a EDP/Horizon financiaria a sua carreira académica nos Estados Unidos após sair do Governo, naturalmente por ter aceitado favorecer a EDP, em tudo o que lhe fosse possível” enquanto ministro da Economia.
Um conjunto de emails que foram enviados pela Universidade de Columbia para os autos, através da cooperação judiciária internacional com o Departamento de Justiça dos Estados Unidos, como o Observador foi noticiando ao longo de 2019, sustentam boa parte dos indícios do MP.
Por exemplo, e ao contrário do que Manuel Pinho chegou a escrever num artigo no Público, demonstram que a possível contratação do ex-ministro por aquela prestigiada universidade norte-americana começou por ser sugerida pelo próprio Pinho. Ou melhor, pela sua mulher Alexandra num email enviado a Anya Stiglitz, professora de jornalismo em Columbia e mulher de Joe Stiglitz, prémio Nobel da Economia em 2001.
Foi através desses contactos via email com o casal Stiglitz — que ocorreram em julho de 2009 — que começou a pequena odisseia do patrocínio da Horizon/EDP a Columbia. Anya Stiglitz deu conta ao reitor da SIPA, John Coatsworth, do “interesse” de Manuel Pinho em ser contratado como “visiting professor” numa base anual, num email de setembro de 2009. E a 25 de setembro de 2009, o próprio Manuel Pinho aborda por email o reitor da SIPA para uma “conversa informal sobre eventuais patrocínios”.
A 8 de outubro, John Coatsworth escreve às 18h08m a Pinho para informá-lo sobre a sua satisfação em saber que o ex-ministro quer dar aulas em Columbia e discute os pormenores do apoio de 300 mil dólares/anos da Horizon (grupo EDP) durante cinco anos, que Pinho já tinha referido a Anya Stiglitz: “Se bem percebi, nós [Universidade de Columbia] vamos precisar de apresentar uma proposta à Horizon, detalhando os pormenores de como utilizaríamos a doação. Há algum prazo para esta proposta?“.
Uma hora depois, Manuel Pinho responde e afirma:
- “A Horizon não teria qualquer restrição temporal para o financiamento, por terem uma visão de longo prazo”;
- “A maior parte dos fundos da Horizon seriam alocados ao curso da SIPA”;
- “[Manuel Pinho] Iria ver com a Horizon se o apoio seria por 4 ou 5 anos”;
- “E ele próprio [Manuel Pinho] iria assumir um cargo muito importante não executivo na Horizon”.
Ou seja, as hipóteses de Manuel Pinho ser contratado por Columbia e de a EDP patrocinar o curso onde o ex-ministro da Economia deu aulas partiram da mesma pessoa: do próprio Manuel Pinho. Foi o principal beneficiado pelo patrocínio da elétrica nacional a Columbia quem se ofereceu para dar aulas naquela prestigiada universidade de Nova Iorque e quem informou que tinha o apoio da Horizon, do grupo da EDP, para patrocinar um eventual curso sobre energias renováveis.
Como os emails da Universidade de Columbia desmentiram tese de Mexia e Pinho
A EDP, António Mexia e Manuel Pinho sempre defenderam que a contratação do ex-ministro da Economia foram responsabilidade da Universidade de Columbia. Contudo, os emails enviados pela Universidade de Columbia ‘contam’ outra história na perspetiva do MP.
Em primeiro lugar, António Mexia só entra em cena após os contactos do casal Pinho com a Universidade de Columbia. Por outro lado, foi o próprio Pinho quem garantiu por escrito aos responsáveis de Columbia que António Mexia, apresentado como o “CEO da Horizon”, iria enviar “uma mensagem pessoal na próxima sexta-feira para calendarizar um encontro para a última semana de novembro”.
E assim foi. Mexia reuniu-se com John Coatsworth, reitor da faculdade de Columbia onde Pinho iria dar aulas, a 20 de novembro de 2009, como o Observador já noticiou. E no dia seguinte John Coatsworth deu conta a Manuel Pinho de como decorreu a reunião: “O nosso encontro com António Mexia foi extremamente cordial. (…) Acordamos um compromisso de quatro anos da Horizon com um financiamento de 300 mil dólares/ano que nos permitirá contratar professores visitantes (incluindo você [Manuel Pinho]) (…)” entre outros projetos académicos, disse Coatsworth. O que valeria um total de cerca de 1,2 milhões de dólares entre 2010 e 2014.
O reitor Coatsowrth chegou mesmo a dizer que “António [Mexia] referiu que você [Manuel Pinho] e ele trocaram mensagens nas quais descreveu de forma sumária os projetos que seriam financiados pela Horizon”.
Os procuradores Carlos Casimiro e Hugo Neto escrevem na acusação que o “arguido António Mexia comprometeu-se” nesse encontro com tal doação da EDP/Horizon, “caso” a Universidade de Columbia “contratasse o arguido Manuel Pinho como visity professor, em execução do acordo anteriormente estabelecido entre os arguidos e João Manso Neto”.
No dia 2 de dezembro de 2009, o reitor John Coatsworth enviou uma carta a Mexia em que solicitava o pagamento de 300 mil dólares até 31 de dezembro de 2009, para que o acordo começasse a ser executado a partir de janeiro de 2010. Com esse apoio, a faculdade iria “poder pagar o salário de um professor visitante do curso de energia e ambiente, lugar esse que iria ser ocupado em primeiro lugar pelo arguido Manuel Pinho”, lê-se na acusação.
Mais tarde, Manuel Pinho incitou por várias vezes os responsáveis da Universidade de Columbia a não revelar qualquer informação para a imprensa portuguesa sobre a sua contratação e sobre o patrocínio da EDP.
“Em Portugal, a situação é semelhante à da Alemanha antes da II Guerra Mundial. É muito perturbadora e perigosa”, escreveu Pinho em março de 2012 a um dos responsáveis de Columbia, referindo-se ao contexto de assistência económica da troika. “É por isso que gostaria que existisse controle total se os jornalistas portugueses ligarem (…) as respostas têm de ser muito claras: não”, concluiu o ex-ministro, aludindo com a sua resposta negativa às perguntas que já tinham sido feitas pela imprensa portuguesa à Universidade de Columbia sobre se a EDP estava a pagar o curso onde o ex-ministro dava aulas.
João Conceição foi pago pelo BCP para ser assessor de Pinho por influência da EDP
O Ministério Público imputa também aos arguidos João Conceição e Rui Cartaxo, ambos ex-assessores de Manuel Pinho no Ministério da Economia, e a Miguel Barreto, ex-diretor-geral da Energia, o crime de corrupção passiva por terem alegadamente aderido ao “pacto corruptivo” que envolve António Mexia, Manso Neto e a Manuel Pinho.
Contudo, apenas a João Conceição são imputadas factos indiciários de uma alegada contrapartida: os empregos na Boston Consulting Group (BCG) e no Banco Comercial Português (BCP) enquanto era, ao mesmo tempo, assessor de Pinho no Ministério da Economia. Conceição era pago por entidades privadas enquanto era assessor de um ministro do Governo da República, segundo o MP.
João Conceição já tinha sido requisitado à BCG para trabalhar em 2003 como adjunto de Franquelim Alves, secretário de Estado Adjunto de Carlos Tavares, então ministro da Economia. Foi nesse Governo que começou a ser desenhada a legislação dos Contratos de Manutenção do Equilíbrio Contratual (CMEC) que viriam a regular o fornecimento dos serviços elétricos — e João Conceição participou nesses trabalhos.
Mais tarde, em outubro de 2006, João Conceição começou a trabalhar com a EDP enquanto consultor da BCG, apoiando a elétrica na “preparação de uma proposta legislativa para a regulamentação do modelo de concessão de utilização de recursos hídricos”. Por esse serviço, a BCG recebeu cerca de 300 mil euros para ter “João Conceição a 100%” nesse projeto.
Tal com o Observador já tinha revelado aqui, e o MP refere na acusação, João Conceição teve acesso “a informação reservada” dos gabinetes do secretário de Estado Adjunto da Economia e do próprio ministro Manuel Pinho.
Como a EDP escreveu, influenciou e negociou 11 diplomas, contratos e licenças do Governo
Estão em causa, segundo consultas que o Observador fez aos autos do caso EDP desde 2018, drafts confidenciais de legislação sobre os CMEC e sobre o Domínio Público Hídrico (DPH) que permitira a prorrogação das concessões de 32 barragens à EDP — tudo normas que estavam a ser preparadas pelo Governo de José Sócrates.
Uma parte dessas “informações reservadas”, dizem os procuradores Carlos Casimiro e Hugo Neto, foram transmitidas a João Conceição pelo “arguido Miguel Barreto” — então diretor-geral de Energia, que foi também acusado de corrupção.
Já como consultor de Manuel Pinho a partir de janeiro de 2007 — mas ao mesmo tempo que a BCG, que lhe pagava o salário, continuava a trabalhar com a EDP —, João Conceição continuou a transmitir informação legislativa confidencial à EDP.
Além disso, João Conceição terá discutido e aceite sugestões de João Manso Neto sobre matérias que diziam respeito a dois concorrentes da EDP, as empresas Tejo Energia (detida pela Endesa e pelo fundo internacional Trustenergy), e a Turbogás. Estas informações fazem parte de emails que foram considerados nulos quando prova por acórdão do Supremo Tribunal de Justiça.
A busca de emprego de João Conceição através de Mexia
Quando ainda era consultor de Manuel Pinho, João Conceição começou à procura de emprego, tendo enviado a 22 de julho de 2008 um email para António Mexia com o seu currículo e as suas condições remuneratórias: 140 mil euros por ano, mais seguros de saúde e vida, bem como um bónus até 50%.
Conceição usou a caixa de correio que tinha no Ministério da Economia para pedir ajuda a Mexia, tal como o Observador noticiou em janeiro de 2019.
Mexia reencaminhou no dia 29 de julho de 2008 os documentos para João Manso Neto, que respondeu no próprio dia. “Nesta fase, o BCP teriam (sic) de lhe pagar 10.000 euros/mês (14 meses), bónus de 50% e os seguros de vida e de saúde. O resto seria regularizado depois na solução definitiva”, lê-se no email.
Ora, foi uma auditoria do BCP que veio a reforçar os indícios reunidos contra João Conceição. Em primeiro lugar, terá comprovado que foi João Manso Neto a reencaminhar o currículo (CV) de Conceição para o banco. Tendo Paulo Macedo, então vice-presidente do BCP com o pelouro dos recursos humanos e hoje líder da Caixa Geral de Depósitos, sido envolvido no processo e dando mesmo o pontapé de saída para a contratação de João Conceição.
Os procuradores titulares do caso EDP entendem que Paulo Macedo desconhecia em absoluto o alegado acordo entre António Mexia, João Manso Neto e João Conceição. Daí apenas ter sido indicado como testemunha.
Os auditores internos do BCP vieram a descobrir documentação interna do banco datada de 12 de Setembro de 2008 onde pode ler-se: “Salgado Pires: Todos os meses os custos deste colaborador devem ser imputados à EDP (remunerações, encargos, renda viatura e diferencial de juros dos empréstimos).”
Há ainda um email trocado entre dois colaboradores da Direção de Recursos Humanos do BCP em que se pode ler: “Este encontro de contas será efectuado entre o BCP e a EDP por outras vias — Acordado entre o sr. dr. Paulo Macedo e o sr. dr. Manso Neto”. O BCP sempre desmentiu que tivesse ocorrido qualquer acerto de contas.
O Departamento de Auditoria informou Miguel Maya, CEO do BCP, do conteúdo da documentação descoberta e acrescentou: o “ex-colaborador [João Conceição]” foi atribuído ao “centro de custos ‘BCP 1000731 Diversos – Pessoal não afeto a direções’”, mas “nunca foi emitido cartão de colaborador” nem o departamento de informática encontrou “qualquer pedido de atribuição de acessos”.
Mais: os auditores escrevem que a “correspondência” devia “ser enviada para a morada de casa do ex-colaborador, já que ele” se encontrava “ausente do Banco. Estes factos reforçam os indícios de que o ex-colaborador não terá desempenhado quaisquer funções no banco.”
E é por tudo isto que o BCP veio a concluir que João Conceição nunca trabalhou no banco e chegou a exigir ao atual administrador da REN em 2019 o reembolso de 153 mil euros que lhe foram pagos, alegando incumprimento do contrato de trabalho por Conceição não ter prestado qualquer serviço ao banco.
O MP classifica sem rodeios tal contratação como um “contratação de fachada pelo Millenium BCP como favor deste banco à sua participada EDP”. E diz que João Conceição conseguiu mais do que os 10 mil euros líquidos que tinha pedido a Mexia — e muito mais do que se apenas fosse pago pelo Ministério da Economia, visto que “caso fosse pago pelo Ministério da Economia, o arguido João Conceição não receberia mais do que 2.500 euro líquidos”, nem teria “ao seu dispor viatura de serviço com plafond de gasóleo”.
Curiosamente, quando Manuel Pinho foi interrogado no processo deu uma versão bem diferente daquela que João Conceição deu ao Observador sobre as funções no Ministério da Economia: enquanto que o ministro jurou que Conceição estava a colaborar em regime pro bono em matéria relacionada com a presidência portuguesa da União Europeia em 2007, já Conceição disse ao Observador que trabalhou num projeto relacionado com um protocolo com diversas instituições de crédito para a energia solar.
Pinho queria Conceição na EDP. Mexia opôs-se e teve de chegar a Sócrates (por um intermediário) para evitar a nomeação
Segundo a acusação, existia uma promessa dos arguidos António Mexia, Manso Neto e Manuel Pinho de nomearem João Conceição administrador de uma empresa do setor energético. Mas a REN não terá sido a primeira escolha do ministro para arranjar emprego a um dos membros do seu gabinete.
Os procuradores dizem que, em dezembro de 2008, Manuel Pinho pediu a António Mexia para indicar João Conceição para o cargo de administrador executivo da EDP na eleição que ia ocorrer em 2009. António Mexia opôs-se porque, diz a acusação, estava consciente da reação pública negativa à ida direta de um assessor do Governo para a EDP, sem um período de nojo.
Pinho até queria Conceição fosse o representante do Estado no conselho de administração da EDP, uma figura que não existia há anos na elétrica. A EDP era uma empresa maioritariamente privada e não tinha um gestor executivo nomeado pelo Estado (apesar deste ser o maior acionista).
Gestores da EDP ajudaram consultor de Pinho a arranjar emprego no BCP
Perante a oposição de Mexia, e de acordo com a acusação, o ministro da Economia disse mesmo ao gestor que não poderia encontrar-se com o então primeiro-ministro José Sócrates sem a sua presença. O presidente da EDP encontrou então um intermediário — o ex-jornalista e administrador da Fundação EDP, Sérgio Figueiredo, que tinha acesso ao primeiro-ministro — a quem pediu para tentar impedir a nomeação de Conceição como administrador executivo da EDP. O que foi conseguido. João Conceição acabou por ser indicado para a administração da REN em 2009, onde ainda está após vários mandatos. Rui Cartaxo, que trabalhou como consultor do gabinete do ministro, era administrador desde 2007.
Para além de um cargo de administração, as alegadas contrapartidas para João Conceição passaram por uma contratação fictícia pelo BCP, a pedido de Mexia e Manso Neto, e pelo pagamento do salário pela consultora que era paga pela EDP, a Boston Consulting Group, mas que também fazia trabalhos sem cobrar para o Ministério da Economia.
As centrais do Alqueva que deviam ter ido a concurso e foram entregues à EDP
Uma das novidades desta acusação é a inclusão das centrais hidroelétricas de Alqueva e Pedrogão (que se situa também no empreendimento do Alqueva) na lista dos alegados favorecimentos à EDP. Ainda que sem um prejuízo quantificado, a acusação segue o fio condutor de uma auditoria do Tribunal de Contas de 2016. O Governo e a EDIA — Empresa de Desenvolvimento e Infra-estruturas do Alqueva, S.A começaram por sinalizar a intenção de lançar um concurso público, mas acabou por ser feito um ajuste direto.
A EDIA é uma empresa pública tutelada pelo Ministério da Agricultura e há declarações públicas do então ministro Jaime Silva no sentido de ser aberto concurso.
Existia um parecer do departamento jurídico da EDIA a defender que a EDP não tinha direitos adquiridos na sequência de um protocolo firmado entre as duas entidades em 1995. Mas a EDP contraria esta presunção numa carta enviada ao então secretário de Estado do Tesouro, Costa Pina, na qual remete pareceres, nomeadamente de Gomes Canotilho, para validar a sua pretensão.
Segundo a acusação, estes pareceres não consideram os efeitos da legislação recente aprovada pelo próprio Manuel Pinho — a lei de bases do setor elétrico — que obriga a lançar um concurso.
A acusação dá conta de um intensa troca de mails entre a EDP e o Ministério da Economia sobre as propostas para a lei da água que, segundo o Instituto da Água, à data liderado por Orlando Borges, “violam frontal e grosseiramente o disposto numa lei de bases”, para além de significarem a subordinação do Ministério do Ambiente ao da Economia em matérias que são da competência do primeiro.
O Ministério Público entende ter prova indiciária de que o decreto-lei que aprovou as bases da concessão entre a EDIA e o Estado por 75 anos teve a influência de Manuel Pinho. E foi com base nesse decreto que a EDIA subconcessionou à EDP por ajuste direto a exploração das centrais por 35 anos — mais 5 que o anteriormente previsto.
Foi fixado um valor de 638 milhões de euros a pagar pela EDP numa tranche inicial e depois em tranches anuais. Segundo o Tribunal de Contas, cujas conclusões são citadas na acusação, este valor não foi sustentado num estudo técnico e é um cálculo subjetivo. Da mesma forma que não foi fundamentada juridicamente o ajuste direto. Também não ficou estabelecido o dever da EDP participar nos custos de investimento da EDIA.
A auditoria de 2016 do Tribunal de Contas diz que o valor pago pela elétrica acabou por ser bastante inferior quando se desconta o inventivo ao investimento concedido pelo Estado à EDP, através da Direção-Geral de Energia entre 2011 e 2012.
A escolha do “amigo” de Pinho para a Autoridade da Concorrência que deixou passar um negócio favorável à EDP
Os procuradores Carlos Casimiro e Hugo Neto analisaram ainda aquilo que entendem ser uma estratégia de controlo das entidades reguladoras na área da Economia criada pelo então ministro Manuel Pinho.
O exemplo mais claro é o da Autoridade da Concorrência — um importante regulador para a qual o então ministro da Economia nomeou Manuel Sebastião, um quadro do Banco de Portugal que é várias vezes descrito como “amigo de Manuel Pinho”.
A história da casa do ministro que não via problemas em fazer negócios com o GES
O Ministério Público refere que Manuel Sebatião não se opôs em 2008 à operação de concertação que representava a concessão das barragens do Alqueva à EDP, apesar de ter aberto uma investigação aprofundada. E estabelece uma ligação entre esta não oposição e o facto de Sebastião e Pinho serem amigos e terem tido, inclusive, negócios imobiliários em conjunto.
Os procuradores descrevem mesmo um almoço entre o então ministro da Economia e Manuel Sebastião, ao qual se juntaram António Mexia e João Manso Neto. E concluem que a decisão da Concorrência em deixar passar a entrega das centrais do Alqueva à EDP, então um operador claramente dominante na produção de energia, foi adotada por influência de Manuel Pinho, em acordo com Mexia e Manso Neto. Para fundamentar esta conclusão, os procuradores recuperam a posição adotada pela Autoridade da Concorrência (já sem Manuel Sebastião à frente) na auditoria do Tribunal de Contas, na qual manifesta a preferência pelo regime concorrencial face ao ajuste direto.
A acusação atribui ao ex-ministro da Economia uma política de “prosseguir a decapitação de todos os organismos independentes”, ao nomear pessoas da sua confiança. Para a ERSE (Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos), onde Vítor Santos vai substituir Jorge Vasconcelos, que se demitiu contra a intervenção do Governo no processo de preços da eletricidade. É também imputado ao ex-ministro a imposição de membros do seu gabinete como administradores à REN, numa referência às nomeações de Rui Cartaxo e João Conceição para a administração da gestora das redes, então uma empresa maioritariamente pública.
O que aconteceu e onde estão os seis visados na acusação
António Mexia foi suspenso por ordem judicial do cargo de presidente executivo da EDP em julho de 2020 e em novembro desse ano comunicou que não iria fazer um novo mandato. O acordo de saída da elétrica ao fim de 15 anos garantiu ao gestor um pagamento de 800 mil euros por ano (o último foi em 2023) como cláusula de não concorrência, bem como os prémios atribuídos, mas cujos pagamentos eram diferidos. Não se lhe conhece outro cargo desde então. Em janeiro reapareceu publicamente numa palestra no Tagus Park a falar sobre temas de energia.
João Manso Neto também saiu da administração da EDP e EDP Renováveis em 2020 após ter sido suspenso de funções. Mas ao contrário do seu antigo presidente, Manso Neto não ficou a receber a compensação para não concorrer com a EDP. Em março de 2021, abdicou desse direito para integrar a empresa de energias renováveis do grupo Altri. O convite veio do empresário Paulo Fernandes e dos seus sócios, apesar do estatuto de arguido de Manso Neto no caso EDP.
Chegada à bolsa em julho de 2021 e com uma operação internacionalizada, a Greenvolt foi uma história de sucesso no setor. Este ano a empresa foi alvo de uma oferta pública de aquisição, depois do fundo KKR ter comprado a participação dos maiores acionistas portugueses. A OPA terminou na sexta-feira com a compra de mais de 97% da Greenvolt que vai deixar a bolsa. Manso Neto foi reconduzido como presidente executivo em maio, já com o voto do novo acionista. O mandato termina em 2026. O Observador questionou a empresa sobre eventuais consequências que pode ter a acusação na administração da empresa que ainda é cotada. Sem resposta, para já.
João Conceição foi constituído arguido no caso EDP em 2017, mas continuou a desempenhar funções de administrador da REN (Redes Energéticas Nacionais). Com o pelouro operacional, é na prática o braço direito do presidente executivo, Rodrigo Costa, para os temas centrais de eletricidade e gás natural na REN. O seu mandato na administração da REN foi renovado duas vezes desde 2017, a última das quais em 2024. E agora termina em 2026. A REN é uma empresa cotada onde o maior acionista é a chinesa State Grid. No capital da REN estão também representados uma empresa ligada ao empresário dono da Zara, Amancio Ortega, bem como a Rede Elétrica Espanhola. Em causa está a atuação do gestor antes de ser administrador da REN e a empresa anunciou esta terça-feira que o comité de ética vai analisar a situação do gestor acusado.
REN remete avaliação de gestor acusado no processo EDP para a comissão de ética da empresa
Rui Cartaxo foi presidente executivo da REN até 2014, depois de substituir em 2009, José Penedos, condenado no caso Face Oculta. O gestor renunciou ao cargo antes do fim do mandato. Depois de sair da REN, Rui Cartaxo, regressou ao Banco de Portugal da qual é quadro. E foi escolhido pelo supervisor bancário como coordenador do livro branco sobre regulação e supervisão do setor financeiro que foi apresentado em 2016. Foi constituído arguido em 2017 por atos alegadamente cometidos enquanto foi consultor do gabinete do ex-ministro da Economia. Antes de ser nomeado administrador da REN em 2007, e de ter passado pelo gabinete de Manuel Pinho em 2006, Rui Cartaxo foi administrador da Galp Energia no tempo em que António Mexia presidiu à empresa e passou ainda pela Transgás.
Miguel Barreto é visado neste processo por decisões tomadas enquanto diretor-geral de Energia que, segundo o Ministério Público favoreceram a EDP. Barreto ocupou o cargo de diretor-geral entre 2004 e 2008, vindo da consultora BCG. O período visado na investigação é o que coincide com a passagem de Pinho pela pasta da Energia. A sua inclusão neste processo resulta também do facto de ter vendido uma empresa que criou à mesma EDP, pouco tempo depois de sair de funções. A Home Energy era uma empresa dedicada à certificação energética, detida maioritariamente pela Martifer, da qual o Miguel Barreto era acionista e fundador com 40% do capital. A operação foi realizada em 2010 e terá rendido 1,4 milhões de euros de encaixe ao sócio minoritário. Contudo, estes factos foram arquivados pelo MP.
Atualmente é presidente de uma empresa de consultoria na área da energia, a Gesto, mas também tem estado envolvido como empresário em projetos de instalação de centrais fotovoltaicas em Portugal e no estrangeiro.
Texto alterado às 12h21 de 30 de outubro