A pressão começou há vários meses: algumas das principais farmacêuticas globais, que ao longo do último ano desenvolveram em tempo recorde as primeiras vacinas contra a Covid-19, quiseram assegurar desde o primeiro momento que não teriam de enfrentar responsabilidades civis se seus produtos, fabricados e testados numa janela temporal invulgarmente reduzida, causassem a morte ou danos físicos e mentais a quem as recebesse. Os acordos celebrados com a União Europeia foram inicialmente mantidos em segredo e depois divulgados com a informação crucial censurada. Agora, com três dos maiores contratos integralmente públicos, é possível confirmar que o lóbi resultou e que as farmacêuticas que venderam milhões de doses de vacinas à UE estão isentas de responsabilidade civil caso alguma coisa corra mal — e os (pouquíssimos, mas polémicos) casos de tromboses fatais associados à vacina da AstraZeneca já vieram demonstrar que é possível haver coisas a correr mal.
Depois de a polémica em torno do incumprimento contratual por parte da AstraZeneca face à encomenda da União Europeia ter levado Bruxelas a divulgar uma versão rasurada do acordo, as versões integrais dos contratos celebrados pela UE com a AstraZeneca, a Pfizer e a Moderna tornaram-se recentemente públicas pela comunicação social. Um dos meios que divulgaram os documentos na íntegra foi a estação pública italiana RAI, que os disponibilizou através da sua página de internet (pode consultá-los aqui: AstraZeneca, Pfizer e Moderna).
Dos três contratos, lidos pelo Observador, constam cláusulas de exclusão de responsabilidade, redigidas com uma linguagem semelhante nos três documentos. Nelas, lê-se que a Comissão Europeia, em nome dos Estados-membros da UE, reconhece que “o uso das vacinas produzidas ao abrigo deste acordo de compra adiantada irá acontecer sob condições epidémicas que requerem esse uso e que a administração das vacinas vai, por isso, ser conduzida sob a exclusiva responsabilidade dos Estados-membros participantes”.
Assim, os Estados-membros ficam obrigados a proteger as farmacêuticas e todos os seus funcionários, dirigentes ou subcontratados, de “qualquer responsabilidade” e de qualquer “custo legal externo” que resulte de queixas de terceiros relacionadas com “danos ou perdas”. A lista dos tais danos ou perdas é esclarecedora do que está em causa: “Morte, ferimentos físicos, lesões mentais ou emocionais, doença, incapacidade, perda ou danos em propriedades, perdas económicas ou interrupções de atividade económica”. As exceções a esta exclusão de responsabilidade verificam-se caso o dano resulte de uma intenção direta da farmacêutica (ou seja, se houver dolo), ou então se o problema puder ser imputável a uma falha da farmacêutica no cumprimento das boas práticas de produção que resulte num defeito de fabrico.
Apesar do jargão jurídico, o resumo é simples: caso a administração de uma vacina cause a morte ou danos físicos, mentais ou económicos a alguém, não adianta processar a farmacêutica, uma vez que a empresa está blindada contra esse risco. Um cidadão pode sempre fazê-lo, mas o que acontece é que será o próprio Estado a suportar os custos que a farmacêutica tiver com a defesa em tribunal e a ter de indemnizar o cidadão caso a ligação entre causa e efeito se verifique. É preciso comprovar que a origem do dano esteve no fabrico da vacina (e não na conservação, manuseamento, aplicação ou outros fatores externos) para que a farmacêutica tenha de assumir a responsabilidade. No fundo, a partir do momento em que a empresa entrega as vacinas em cada país da UE, são os Estados que têm todas as responsabilidades se alguma coisa correr mal.
Indústria quis proteger-se contra riscos associados a vacina desenvolvida em pouco tempo
A corrida às vacinas começou logo que se percebeu que o mundo enfrentava uma pandemia global. Portugal estava em confinamento havia pouco mais de um mês quando, em abril de 2020, a Universidade de Oxford anunciou o início dos testes em humanos de uma vacina contra o coronavírus. Duas semanas depois, foi a vez de a farmacêutica norte-americana Pfizer arrancar com o ensaio clínico da sua vacina em humanos. Mais duas semanas, ainda em maio de 2020, a também norte-americana Moderna confirmava os primeiros resultados promissores da sua vacina. No mesmo mês, a farmacêutica anglo-sueca AstraZeneca anunciou que já tinha um acordo assinado para vender 400 milhões de doses da vacina de Oxford nos Estados Unidos.
Em público, sucediam-se os anúncios dos sucessos científicos por parte de um punhado de empresas, apostadas em serem as primeiras a chegar à aguardada vacina que salvaria o planeta da pandemia. Em privado, porém, nas negociações com os países (ou com um grupo de países, no caso europeu) que pretendiam ter acesso à vacina, as farmacêuticas multiplicavam-se em esforços no sentido de evitar arcar com as responsabilidades associadas aos riscos de desenvolver uma vacina tão pouco tempo.
Em julho de 2020, a agência Reuters noticiou que a AstraZeneca já tinha assegurado uma isenção de responsabilidade civil na maioria dos países com os quais estava a negociar a venda da vacina desenvolvida pela Universidade de Oxford. Em declarações à Reuters, um dos vice-presidentes da farmacêutica, Ruud Dobber, não escondeu os motivos. “Esta é uma situação única e nós, enquanto empresa, simplesmente não podemos assumir o risco no caso de daqui a quatro anos a vacina resultar em efeitos secundários”, asseverou Dobber. “Nos contratos que temos implementados, estamos a pedir compensação. Para a maioria dos países, é aceitável arcar com esse risco, porque é do interesse nacional deles.”
Um mês depois, o Financial Times trouxe a público vários detalhes sobre os esforços do lóbi farmacêutico para se poupar aos riscos. O jornal revelou um memorando interno da Vaccines Europe, uma das divisões da Federação Europeia de Indústrias e Associações Farmacêuticas, a organização lobista que representa os interesses do setor em Bruxelas: “A rapidez e a escala do desenvolvimento e distribuição [das vacinas] significam que é impossível gerar a mesma quantidade de provas subjacentes que, em situações normais, estariam disponíveis através de ensaios clínicos alargados e da experiência dos prestadores de cuidados de saúde”.
Por isso, continuava o memorando interno, há riscos “inevitáveis” associados a uma vacina desenvolvida em tão pouco tempo. Nesse sentido, a Vaccines Europe confirmava que estava a defender, junto dos decisores europeus, que os contratos incluíssem “um sistema abrangente de compensação, sem culpa e sem oposição, e uma isenção de responsabilidades civis”. Como se comprova agora pelos contratos tornados públicos, o esforço de lóbi da indústria foi bem-sucedido.
É certo que qualquer medicamento tem efeitos adversos — e as vacinas não são exceção. Todavia, o receio da indústria farmacêutica é o de que a enorme escala da atual campanha de vacinação conduza a uma grande concentração de reações adversas em poucas semanas, com potencial para originar um número desproporcionalmente elevado de queixas e denúncias. O memorando da Vaccines Europe reconhecia que a probabilidade de existirem reações adversas à vacina contra a Covid-19 é elevada e acrescentava: “Mesmo que essas reações não estejam, de facto, relacionadas com as vacinas, tais ocorrências, combinadas com a mera escala do programa da vacinação e com a atenção pública à Covid-19, podem levar a numerosos pedidos de indemnização”.
No início de março, a ministra da Saúde, Marta Temido, confirmou que Portugal espera receber um total de 38 milhões de doses de vacinas contra o coronavírus durante toda a campanha de vacinação — o suficiente para vacinar quase duas vezes a população portuguesa. As vacinas compradas por Portugal vão permitir também ajudar outros países, confirmou a governante. As informações mais recentes da Direção-Geral da Saúde dão conta de que Portugal deverá receber 4,5 milhões de doses da Pfizer/BioNTech; 1,8 milhões de doses da Moderna; 6,9 milhões de doses da AstraZeneca, e 4,5 milhões de doses da Janssen (a farmacêutica da Johnson&Johnson). Estão também encomendadas 5,1 milhões de doses da Curevac — que espera ser aprovada pela Agência Europeia do Medicamento em junho — e um número ainda a definir de doses da vacina da Sanofi/GSK.
A vacina da AstraZeneca foi, até agora, aquela que mais controvérsia gerou. Inicialmente aprovada apenas para pessoas abaixo dos 65 anos por falta de dados técnicos que comprovassem a sua eficácia nas pessoas mais velhas, a vacina revelou-se estar associada a um número anormalmente elevado de episódios — ainda que extremamente raros — de coágulos sanguíneos e de tromboses em pessoas mais jovens. A polémica levou à suspensão da vacina, primeiro em alguns países europeus e depois de modo generalizado em toda a UE.
Depois de a Agência Europeia do Medicamento ter reavaliado o produto, concluiu que os riscos eram inferiores aos benefícios e a vacina foi novamente colocada em circulação. Todavia, a sua administração foi retomada com algumas restrições. No caso português, só as pessoas com mais de 60 anos de idade vão recebê-la, uma vez que é a faixa etária onde os episódios de coágulos sanguíneos não tiveram expressão significativa e onde os riscos de complicações associadas à Covid-19 são mais elevados.
Até esta quinta-feira, de acordo com o painel de monitorização do processo de vacinação mantido pelo Centro Europeu de Controlo de Doenças, já tinham sido administradas em Portugal um total de 2.704.633 doses de vacinas. Destas, 1.900.808 foram da Pfizer/BioNTech, 197.049 foram da Moderna e 606.776 foram da AstraZeneca.
APIFARMA garante que cidadãos mantêm direito de processar farmacêuticas
Em resposta ao Observador, a Associação Portuguesa da Indústria Farmacêutica (APIFARMA) diz não ter — nem ter de ter — conhecimento formal dos contratos assinados entre as multinacionais e a Comissão Europeia, mas clarificou que nenhum contrato se sobrepõe ao direito português, que garante o direito de qualquer cidadão processar uma farmacêutica.
“No caso de Portugal, por transposição de uma Diretiva Comunitária, está em vigor um regime de responsabilidade objetiva do produtor, que se mantém independentemente de quaisquer contratos”, explica a APIFARMA. “Nesse âmbito, prevê-se a existência de uma indemnização pela empresa a um lesado por eventual reação adversa a um medicamento. Em determinadas circunstâncias (e pode admitir-se que a existência de um plano estadual de vacinação é uma delas), o lesado pode também sempre recorrer à responsabilidade civil extracontratual do Estado.”
A legislação sobre a responsabilidade objetiva do produtor tem uma premissa simples: “O produtor é responsável, independentemente de culpa, pelos danos causados por defeitos dos produtos que põe em circulação”. O decreto-lei prevê, depois, um conjunto de exceções relacionadas com eventuais problemas na utilização e distribuição dos produtos. “Existindo um enquadramento legal comunitário e não conhecendo a APIFARMA o teor dos contratos, neste caso entre a Comissão Europeia e as empresas farmacêuticas, reiteramos a existência de um mecanismo legal que não é afastado pelos contratos”, insiste a associação que representa o setor em Portugal.
Com efeito, de acordo com a legislação em vigor em Portugal e na UE, qualquer cidadão pode processar uma empresa farmacêutica na sequência de efeitos adversos graves provocados pela vacina. “Qualquer que seja o clausulado dos contratos este não é oponível a terceiros, ou seja, não substitui o mecanismo legal vigente”, reitera a APIFARMA. O que acontece é que os contratos assinados entre as produtoras das vacinas e a Comissão Europeia protegem as empresas de quaisquer custos, desviando-os para os Estados-membros. Ou seja: um cidadão pode, efetivamente, exercer o seu direito de processar uma farmacêutica, mas é o Estado que vai pagar a conta da empresa.
O Observador contactou as três farmacêuticas através dos seus responsáveis de comunicação em Portugal. A Pfizer disse que não comenta o conteúdo dos contratos assinados com a Comissão Europeia. A Moderna e a AstraZeneca não responderam às perguntas enviadas até ao momento da publicação deste artigo. O Infarmed, que é o organismo do Estado português responsável pela regulação dos medicamentos, remeteu-se ao silêncio face às perguntas enviadas pelo Observador sobre as circunstâncias contratuais das vacinas.
Nos EUA, o próprio governo garante proteção às empresas
Se no caso europeu as farmacêuticas tiveram de negociar a inclusão desta proteção legal nos contratos assinados com Bruxelas, no caso norte-americano não precisaram de o fazer: a lei federal dos EUA já inclui um mecanismo destinado a proteger as empresas farmacêuticas em situações como esta. Trata-se do Public Readiness and Emergency Preparedness Act (PREP Act), uma legislação aprovada em 2005 com o objetivo de “encorajar o expedito desenvolvimento e distribuição de medidas médicas durante uma emergência de saúde pública”, segundo explica o Congresso norte-americano, numa nota que enquadra a aplicação desta lei no contexto da pandemia da Covid-19.
A lei permite que o secretário da Saúde e Serviços Humanos — o membro do governo norte-americano com a pasta da saúde — declare determinada situação como emergência de saúde pública e ative o PREP Act, que automaticamente cria uma exceção no ordenamento jurídico federal e estadual de todo o território norte-americano, isentando as empresas farmacêuticas de qualquer responsabilidade civil no caso de efeitos adversos provocados pelos medicamentos destinados a combater a emergência. No caso norte-americano, trata-se de uma alteração legislativa efetiva: ou seja, os cidadãos ficam mesmo impedidos de processar as empresas farmacêuticas. Também não é possível processar o Estado ou o regulador do medicamento — nem mesmo uma empresa que ofereça vacinas aos seus trabalhadores.
No caso da pandemia da Covid-19, o ex-secretário da Saúde Alex Azar, ainda durante a presidência de Donald Trump, declarou a doença como uma emergência de saúde pública e ativou o PREP Act em fevereiro de 2020, com uma janela temporal de quatro anos — o que significa que, até 2024, as farmacêuticas estão protegidas de qualquer responsabilidade civil caso as vacinas tenham efeitos secundários graves.