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Como ir do ódio ao amor ao Liverpool em suaves 35 anos

João Bonifácio começa na final da Taça dos Campeões de 1985 e conta como o Liverpool passou de equipa atoleimada, romântica e condenada a zero títulos para uma autêntica trituradora em três décadas.

No dia a seguir ao Liverpool conquistar o seu primeiro título de campeão inglês em 30 anos houve um vídeo de animação que começou a circular na net, em relação ao qual era impossível não nos comovermos: víamos um homem a ir ao estádio acompanhado pelo filho, homem e filho iam mudando de aparência à medida que os tempos passavam e as derrotas se acumulavam, a dada altura ficava só o filho adulto, surgia também uma mulher grávida, agora o filho feito homem e o seu garoto, o homem envelhecia, o garoto crescia – até que chegou o grande dia.

O grande dia foi a passada quinta-feira, quando a derrota do Manchester City em casa do Chelsea devolveu a Anfield Road o troféu pelo qual mais ansiavam há três décadas. Lembro-me da equipa dessa época, com Grobbelaar na baliza, John Barnes e Steve McMahon no meio-campo e Beardsley e Ian Rush na frente. E lembro-me de que odiava aquela equipa (apesar de Ian Rush).

Odiava-os desde 29 maio de 1985 – tinha 10 anos, era dia de Taça dos Campeões Europeus (a antiga Champions) e passei a tarde, como sempre, a jogar à bola com os amigos e vizinhos. Recordo que usava uma t-shirt meia grená que, na minha cabeça, fazia de mim Enzo Scifo no Anderlecht – já então eu adorava um bom médio sub-valorizado.

O tempo passou – tanto que quando me apercebi de que horas eram entrei em pânico. Nunca tinha perdido o início de uma Taça dos Campeões e agora ia chegar atrasado. Corri para casa e – ufa – suspirei de alívio ao perceber que a partida ainda não começara. Talvez seja o momento indicado para notar que sou míope desde catraio: quando aproximei o olhar da TV vi o horror: centenas, milhares de adeptos da Juve entalados contra uma espécie de barras de metal ou cimento que havia nas bancadas, gente caída no chão por todos os lados.

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Boniek. “A final de Heysel Park ainda não acabou, sabes?”

Creio que passei as duas horas seguintes numa espécie de estado de transe e apatia: corpos eram removidos, houve interrupções na emissão, a bola começou a rolar mas eu não a focava, antes um qualquer ponto para lá do televisor, onde o meu horror e estupefacção confluíram. Vi um penalty marcado a favor da Juve quando a falta fora claramente fora da área e aceitei-o como uma forma de justiça mínima, desprovida de qualquer poesia.

Deve ter havido um momento qualquer em que os locutores explicaram o que acontecera, ou, no dia seguinte, entre os jornais do meu pai e o meu próprio pai certamente li ou alguém me fez um resumo qualquer dos eventos – mas não importava. O Liverpool, percebo agora, maculara algo que para mim era de uma beleza infinda: a luta honesta entre duas equipas. O Liverpool manchara o jogo ao enfiar o horror dentro da minha infância. E a minha infância era, além de trepar às árvores para roubar fruta e ir pescar para a ria, futebol, futebol, futebol.

Uma imagem da tragédia de Heysel, que vitimou 39 adeptos antes da final da Taça dos Campeões entre Liverpool e Juventus

Entre os clubes ingleses eu defendia os Spurs, desde a vitória sobre o Anderlecht na final da taça UEFA em 83/84 (onde descobri Enzo Scifo, aliás), mas em breve não haveria mais ingleses na vida de um adepto europeu: os clubes ingleses foram banidos das competições europeias, e o próprio campeonato pareceu ser pudicamente esquecido pelos continentais.

Em 1990 os clubes ingleses foram readmitidos na competições da UEFA e dois anos depois surgia a Premier League – e ter acesso aos compactos da Premier e ao ocasional jogo era como sintonizar uma exótica rádio longínqua cuja estranha música nos encantava: o público delirante nas bancadas, o ocasional latino a fazer fintas (uma novidade naquelas paragens), jogos com meia dezena de golos, uma tendência para o confronto físico que nunca seria permitida na Europa.

O olhar que tínhamos antes para com o futebol inglês não era esse – na década de 70 o Liverpool era um clube poderosíssimo, mas o banimento das competições europeias (primeiro) e o dinheiro (depois) alteraram tudo. Com a Premier League a vender bem os seus direitos televisivos, rapidamente os clubes foram vendidos a empresários estrangeiros e ganhava quem tinha mais dinheiro – isso explicou a ascensão do Chelsea e, posteriormente, do Manchester City. Para agravar a situação houve ainda sir Alex Ferguson, o homem certo no clube certo no momento certo, a promover a ascensão do Manchester United ao lugar de domínio nacional outrora ocupado pelos reds de Liverpool.

Mesmo com menos dinheiro que os adversários (ou a usá-lo mal durante anos) o Liverpool não deixou de ter pilim, e em 2004 um jovem e lindíssimo espanhol chamado Xabi Alonso chegou ao Liverpool – e foi aí que a minha história com o Liverpool começou a mudar. A enxurrada de dinheiro televisivo que inundou a Premier trouxe a Inglaterra os melhores jogadores do mundo e Xabi terá sido o melhor médio dos últimos anos, a seguir a Xavi (do Barcelona).

A seu lado no meio campo estava um jovem com características estranhas para a prática futebolística: demasiado alto, demasiado magro, demasiado desengonçado, Steven Gerrard era um médio todo-o-terreno com metade do cérebro de Xabi Alonso e o dobro da vontade da população mundial reunida em conjunto. Tanto víamos Gerrard no chão a fazer um tackle (coisa que Alonso nunca fez na vida), como o víamos a fazer um passe de 60 metros milimétrico ou a chegar à área para enfiar um bujardo de 40 metros.

Stevie era um local boy e representava o espírito operário do Liverpool: queria, mais que tudo, devolver o título ao clube do seu coração e a cada jogo parecia travar uma batalha épica não apenas com o adversário mas com essa obrigação que sentia de moldar o destino e guiar o Liverpool à glória. Lenta e progressivamente comecei a enamorar-me daquela dupla de meio campo que unia a perfeição técnica ao sacrifício e ao suor.

Convém elucidar que nunca papei o discurso que o Liverpool tinha sobre si próprio – o de ser um clube diferente, mais próximo das pessoas comuns, mais ligado à comunidade – em parte porque todos os clubes passaram a ter o mesmo exacto discurso. Também nunca me comovi com os adeptos a cantarem o You Will Never Walk Alone, primeiro porque é uma péssima melodia, depois porque uma péssima melodia cantada ao mesmo tempo por 40 mil pessoas sem sentido melódico é uma tortura para um crítico de música.

Até que veio a noite de 25 de Maio de 2005, em Istambul: de um lado um Milan com 11 extraordinário (Cafu, Nesta, Maldini, Pirlo, Seedorf, Kaká, Shevchenko, Crespo) orientado por um especialista em taças (Ancellotti); do outro, Gerrard e Xabi Alonso rodeados por nove indivíduos com dificuldade em atarem as botas sozinhos e treinados por Rafa Benítez. O inevitável aconteceu: ao intervalo o Liverpool levava 3 e podiam ter sido mais.

As memórias de Trent, a mágoa de Dida, o beijo de Gerrard. Há 15 anos, o Liverpool fez um milagre em Istambul e ganhou a Liga dos Campeões

O que aconteceu depois do intervalo só foi possível pela confluência de vários factores: o Milan aburguesou-se, tinha demasiados veteranos em campo que demoraram a reagir, tinha um treinador no banco que não é conhecido pelo seu repentismo, Duda deu um frango, o caos instalou-se.

Mas esse caos não veio de uma exibição sensacional do Liverpool, de alguma variação táctica genial de Benitez, de jogadas perfeitas de laboratório – simplesmente Xabi e Stevie pegaram no jogo e enlouqueceram-no, como se imbuídos de um espírito de missão que os impedia de perder, porque perder era impossível, não era aceitável. O jogo ficou louco, mal jogado, incontrolável porque aqueles dois homens usaram o seu desespero como combustível para uma matança, um sufoco, um último sopro de dignidade – não iam sair dali sem terem tentado tudo.

A vitória chegou nos penalties e, talvez a quantidade de álcool que entretanto eu tinha ingerido tenha ajudado, foi a primeira vez que me emocionei com o raio do cântico de melodia mal parida.

Steven Gerrard com a Liga dos Campeões ganha em 2005 que ainda hoje é uma das finais mais marcantes da competição

AFP via Getty Images

Podia ter sido o início de um reinado mas Benítez nunca foi treinador de campeonatos e o Liverpool continuou a penar na Premier, mais ainda depois de perder Xabi Alonso e Mascherano; os anos de Roy Hodgson e Kenny Dalglish (patéticas tentativas de colocar a memória no lugar do presente) foram péssimos. Na época de 2012/13 Brendan Rodgers esteve quase lá, com aquele tridente ofensivo composto por Suarez, Sterling e Sturridge, mas Stevie escorregou em casa contra o Chelsea, o Liverpool perdeu e o título caiu nas mãos de Abu Dahbi.

Confesso que me condoí por Stevie – aquele era o momento, já a aproximar-se do final da carreira, de conquistar um título pelo clube do seu coração. Suarez saiu, Rodgers acabou despedido e alugou a sua casa ao senhor seguinte: Jürgen Klopp. E aí, confesso, senti-me quase adepto do Liverpool.

Porque Klopp não é um treinador de futebol qualquer – é um homem do povo, cuja história é inspiradora a todos os níveis. Fez carreira em clubes pequenos e durante vários anos teve de acumular trabalhos porque o que ganhava como jogador não chegava e já era pai; estudou à noite na universidade e licenciou-se em Ciências Desportivas. Como se não bastasse, tem um discurso político de esquerda, pragmático e virado para o povo – se Klopp quisesse ganharia facilmente umas autárquicas, sem esforço.

Como treinador começou no Mainz, onde ficou sete anos, vincando logo ali o seu estilo pressionante; quando chegou ao Dortmund, a segunda maior equipa alemã, o clube estava nas lonas e tinha conquistado um paupérrimo 13.º lugar na época anterior – em três épocas, fazendo uso de compras cirúrgicas, de jogadores vindos das camadas jovens e de um futebol electrizante, Klopp acabou com o reinado do Bayern e conquistou dois campeonatos seguidos.

Também levou o Dortmund à final da Champions, perdida para o Bayern, mas a partir daí a equipa principal foi pilhada e nos dois últimos anos o Dortmund perdeu de novo para o Bayern. Mas Klopp gosta de underdogs – e quando chegou ao Liverpool este era um underdog, o alvo de piadas de décadas, ou até de piadas recentes, como a escorregadela de Stevie.

Klopp chegou a meio da época de 2014/15 e o melhor que conseguiu foi içar a equipa até ao oitavo lugar. No primeiro ano e meio assistimos a uma mini-lição do Kloppismo na sua versão romântica: o Liverpool deixou de ser uma equipa amedrontada, que sentia o peso do passado nos ombros, e tornou-se uma equipa destemida, lançada constantemente ao ataque – e os jogos tanto podiam acabar com vitórias por 4-2 como com derrotas por 4-5 com 3 golos sofridos nos últimos dez minutos.

Adjuntos, bolas paradas, contratações e proximidade. Os quatro capítulos do conto de fadas que Klopp escreveu no Liverpool

Mas o que Klopp introduziu nesse ano e meio foi muito importante: antes de mais restituiu aos jogadores a crença no seu próprio valor; depois organizou os princípios da sua filosofia de pressão e contra-pressão; finalmente imbuiu a equipa de uma mentalidade vencedora, uma resiliência à prova de bala: antes de desatar a conquistar tudo o Liverpool perdeu uma final da Liga Euro e uma final da Champions. Não quebraram nunca – voltaram sempre mais fortes.

Passo a passo, compra imaculada após compra imaculada, Klopp criou um tridente ofensivo dificílimo de travar (Firmino no meio, a descer e combinar, Mané e Salah a entrarem vindos das alas), adquiriu um guarda-redes e um central de topo (Allison e Van Djik) e nas alas apostou em dois miúdos que saíram melhor que a encomenda (Robertson e Trent Alexander-Arnold). O meio-campo, esse, foi transformado numa máquina de engolir adversários.

Gradualmente o Liverpool transformou-se de equipa atoleimada, romântica e condenada a zero títulos numa autêntica trituradora, de pressão e velocidade avassaladoras, mas também capaz de gerir o jogo e negar o acesso, pelo chão ou pelo ar, à sua baliza.

Liverpool fará primeiro jogo como novo campeão inglês no campo do Manchester City de Pep Guardiola, o antigo campeão

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Mas talvez isso não tenha sido o mais importante. Talvez o mais importante tenha sido o casamento perfeito entre Klopp e o Liverpool – entre um clube popular, de bairro, e um treinador que apesar de contratar jogadores de classe mundial não tem medo de apostar em garotos vindos das camadas jovens, como Trent Alexander-Arnold; um treinador que, na linha lateral, pede o apoio do público e o enlouquece com a sua entrega ao jogo; um treinador que a cada vitória fala dos adeptos e do clube e da sua cidade; um treinador que não perde uma oportunidade para lembrar que ele e os seus jogadores são privilegiados e que o resto da humanidade vive num mundo injusto, hierarquizado socialmente, que redistribui mal o dinheiro. Um treinador que não inventa desculpas nem insulta os adversários e que elogia constantemente Guardiola, o seu maior adversário. Um treinador que faz de cada jogador um Homem, mas que retira o machismo do jogo.

Quando a pandemia começou um jornalista perguntou a Klopp se o campeonato devia parar, que medidas deviam ser tomadas no UK, etc. – Klopp respondeu que não era especialista e que já era altura de os media pararem de fazer perguntas a estrelas acerca de assuntos que não dominam, quando há gente especializada que sabe mais do assunto. E continuou: Klopp sabe que gera mais clicks, mas acredita que os media têm o dever de informar e para tal têm de procurar as pessoas mais indicadas para o efeito. Uma pequena lição de moral.

30 anos depois, está feita história: Liverpool sagra-se campeão (e tem de agradecer ao Chelsea)

Raras vezes um clube e um treinador casaram tão bem – seja verdade ou ilusão, o facto é que a união entre Klopp e Liverpool faz-nos crer que há ali uma família, que os milhares nas bancadas se sentem representados pelos 11 no campo e que é pelos primeiros que os segundos pressionam e correm. Klopp e Liverpool restituíram-nos aquela fé de meninos, a fé de que tudo é possível, que todos podemos vencer, que a vontade e o trabalho superam tudo.

Quando hoje os jogadores do Manchester City fizerem a guarda de honra aos novos campeões, o que será homenageado, no fundo, será essa nossa fé no futebol como promotor de sonhos, essa nossa fé em ganhar da maneira certa. E só por isso este título, adiado 30 anos, já valeu a pena.

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