Na negociação do primeiro Orçamento do Estado com um Governo de maioria absoluta, António Costa afina a estratégia que quer levar para os próximos quatro anos: autossuficiente, mas não uma ilha. Foi esse o sinal que quis dar ao chamar para a mesa das negociações PAN e Livre, mas sobretudo (e de forma surpreendente) Iniciativa Liberal e PSD-Madeira. Resta saber se é para inglês ver ou não.
De fora ficaram definitivamente Bloco de Esquerda e PCP. Depois do chumbo orçamental que culminou na queda do governo e consequentes eleições, o líder socialista fez saber que a página da ‘geringonça’ estava definitivamente virada — comportaram-se como oposição, serão agora oposição.
Da parte do Governo, a garantia que se dá, no entanto, é que nada foi feito para castigar os prevaricadores. Foi assim, pelo menos, que o executivo socialista justificou a escolha de quem se sentou na mesa de reuniões: foram chamados os partidos que “mostraram disponibilidade negocial para debater o Orçamento do Estado para 2022”.
Se durante a campanha eleitoral chegou a ser explorada a hipótese de uma eco-geringonça, o agora maioritário António Costa quer manter os dois partidos vivos, aproveitando algum do trabalho da anterior legislatura com o PAN e a proximidade ideológica ao Livre para mostrar algumas cedências.
O Bloco de Esquerda não esconde que está ativamente fora da fotografia de família. O PCP, que até tinha dado sinais de disponibilidade para continuar a conversar com o Governo, não escondeu algum incómodo e decidiu convocar os jornalistas para uma conferência de imprensa precisamente à hora a que o Governo se sentava à mesa com os partidos.
Nesta novo arranjo parlamentar, mais inesperada foi a chamada da Iniciativa Liberal. Aliás, o próprio deputado que falou aos jornalistas sobre a conversa com o PS sugeriu que, tendo em conta o pedido de reunião, só haveria um tema a ser discutido: a única proposta que a IL fez em plenário. Não foi levada mais nenhuma medida à reunião. E tudo ficou baseado na “boa-fé” que os liberais depositaram no Governo e na ideia de que há espaço real para a negociação.
À mesa com o Governo, PSD mas só da Madeira
Ao contrário do PSD nacional, os deputados da Madeira sentaram-se à mesa com o Governo para discutir propostas para o Orçamento do Estado na especialidade. Aos olhos do líder do Governo regional, esta reunião pode funcionar como uma espécie de pontapé de saída para uma melhoria das relações entre o arquipélago e o Executivo, com ganhos para o arquipélago em mente.
Aliás, Miguel Albuquerque chamou a si o ónus de todo o processo de negociação e levou os deputados madeirenses a reunirem-se diretamente com o Governo, passando por cima do PSD nacional, que ficou de fora das conversas com o Executivo.
Não é de agora. Os primeiros sinais para esta aproximação já tinham sido dados: primeiro, a porta aberta a um pedido de reunião com o primeiro-ministro; depois, o facto de ter estado em Lisboa para a tomada de posse do Governo e, agora, os três deputados da Madeira sentados à mesa com o ministro das Finanças e a ministra dos Assuntos Parlamentares.
Não é novidade que o PSD/Madeira tem aproximações ao PS desde que António Costa está no poder. Mais do que uma vez chegou a ser colocada em causa a possibilidade de os sociais-democratas madeirenses votarem de forma diferente do PSD e aconteceu uma vez, quando os três deputados madeirenses se abstiveram na generalidade.
Já em outubro, antes do chumbo que levou à queda do Governo, Marcelo Rebelo de Sousa terá procurado segurar uma aprovação do Orçamento do Estado e os deputados da Madeira voltaram a estar na equação. A polémica acabaria sem repercussões de maior e com Rio a garantir que “a Madeira não está à venda”. Apesar de não ter chegado a a acontecer, Miguel Albuquerque sempre mostrou disponibilidade para negociar em troca de melhorias para a região.
O Observador sabe que, agora, em cima da mesa estiveram os temas que se tornaram bandeiras do Governo regional e que há muito Miguel Albuquerque quer ver resolvidos (sabendo que uma relação com o Governo poderá ajudar a isso): o financiamento do novo Hospital Central da Madeira, a alteração da legislação para a Zona Franca e a alteração da Lei das Finanças Regionais.
Ainda que os votos do PSD/Madeira já não sejam necessários para aprovar o Orçamento do Estado, a reunião significa para os deputados e para Miguel Albuquerque a ideia de que há espaço para uma postura diferente relativamente ao arquipélago, uma ideia que foi, aliás, corroborada durante a conversa.
IL está crente na “boa-fé” do PS e na taxa única de IRS para quem recebe menos
Os liberais apontaram várias vezes o dedo ao Governo por ter prometido diálogo que contrariasse um poder absoluto e acabaram com um lugar à mesa dos socialistas. Aceitaram, mas não foram muito além, sendo que apenas apresentaram aquela que foi a única proposta com o selo liberal submetida em plenário até agora.
Em causa está uma proposta de “taxa única de IRS para todos os trabalhadores que ganham menos de metade de um salário de um deputado, pessoas que ganham 900, 1000, 1300 euros”, algo que, argumentou, “iria aumentar imediatamente o rendimento de todas estas pessoas”.
“O PS criticou a taxa única durante muito tempo por supostamente beneficiar os salários mais altos, seria uma enorme hipocrisia se nesta altura viesse rejeitar uma proposta que se foca nos salários mais baixos. Queremos acreditar que o PS está a negociar de boa-fé e que portanto irá aprovar esta medida”, reiterou, mostrando-se “otimista” quanto a uma possível aceitação por parte do PS.
Espaço para diálogo existe, mas hipóteses de sucesso são minimais. De resto, foi isso mesmo que Carlos Guimarães Pinto assumiu, dizendo “faltaria muito” para que o Orçamento do Estado “merecesse sequer a abstenção da IL”.
PAN conquista duas propostas, mas quer mais
Depois da abstenção ao Orçamento que acabou chumbado e de duras críticas então feitas à esquerda — acusando os deputados do BE e PCP de irresponsabilidade e de contribuírem para fazer crescer a bancada do Chega –, recordando os ganhos que tinha conquistado na anterior legislatura, Inês Sousa Real saiu esta quarta-feira da reunião com o Governo com o compromisso de que duas das medidas do PAN iriam ser acrescentadas ao articulado. Ainda assim, o partido está longe de estar tão satisfeito como estava com o OE chumbado.
Em declarações aos jornalistas, Sousa Real confirmou que haverá alterações “no âmbito dos apoios para a alimentação e para os serviços médico-veterinários” e também na criação de “uma linha de apoio também ela extraordinária para as associações de proteção animal”.
As associações são poder “pedir reembolso de despesas que tenham com alimentação e com cuidados médico-veterinários” considerando a conjuntura atual “com o aumento da inflação”.
Sem compromisso, mas com alguns sinais dados Sousa Real apontou a hipótese da “redução do IVA para as bicicletas e também para os demais meios de mobilidade suave”, mas não fica satisfeita apenas com estes avanços.
“Agora, é preciso que se vá mais longe. Este Governo tem dito desde o primeiro minuto que quer ser uma maioria dialogante”, atirou a deputada única lembrando medidas que o PAN considera essenciais como o “alargamento da tarifa social de energia para o gás e eletricidade” ou o “combate à pobreza energética.”
Considerando que esta “é a primeira prova de fogo” para o “Governo que diz que quer ser dialogante”, por meio da negociação do Orçamento do Estado, Sousa Real alerta que os socialistas poderão “votar sozinhos este Orçamento” se não “acolher as medidas que as demais forças políticas propõem.”
Livre já de olhos no OE2023, quer ganhos de causa já
Com um deputado único, o Livre já tinha avisado no início da semana que sem ganhos de causa votaria contra o Orçamento do Estado. Os votos contra fazem pouca mossa na aprovação garantida de um Orçamento de governo com maioria absoluta, mas Costa garantiu uma maioria dialogante e começar já a contrariar essa ideia não estará nos planos do primeiro-ministro.
Com os partidos chamados a reunir e já a agendar reuniões setoriais com os ministros até à próxima sexta-feira, o Livre saiu da reunião com o compromisso de desenhar já este ano algumas das propostas concretas para tentar que avancem em 2023, como disso é exemplo o projeto piloto da semana de quatro dias que deverá ser aplicado em 100 empresas.
A rede de transportes elétrica para as escolas que o Livre vem reclamando pode ver a luz do dia, pelo menos em parte, já depois da ministra da Coesão ter falado, no Parlamento, numa experiência semelhante a ser implementada em Castelo Branco.
Com o Livre a falar na “jogada tripla“, Rui Tavares explicou aos jornalistas que o Livre “tem abertura para considerar o funcionalismo” de começar a pensar, desde já, “de que forma é que várias das medidas podem ser faseadas e implementadas” no Orçamento para 2023.
Para já e para garantir uma abstenção do Livre será necessário que o Governo deixe no Orçamento já alguma medida que vá ao encontro daquilo que é o Programa 3C- Casa, Conforto, Clima que visa melhorar as condições das casas dos portugueses, combatendo a pobreza energética.
“Há disponibilidade para avançar nos detalhes técnicos. Esta não é apenas uma das medidas que o Livre vai apresentar, é uma bandeira do Livre que nos seus pressupostos é partilhada pelo Governo. Temos caminho suficiente para ir para uma reunião ministerial setorial, para poder ser vista em detalhe”, frisou o deputado único Rui Tavares.
PCP acusa o PS de se “recusar a avançar soluções”
Enquanto o Governo afinava agulhas com os partidos, o PCP arranjou forma de tornar público o descontentamento por, aparentemente, já não entrar nas contas de António Costa.
Coube à líder parlamentar, Paula Santos, dizer que o PCP “não estranha” a realização das reuniões “nas atuais circunstâncias” e diz que é uma opção “reveladora da recusa em avançar com soluções adiantadas pelo PCP”.
Ao contrário de PAN e Livre, que já sabem que o calendário de reuniões setoriais está a ser delineado, o PCP não tem até ao momento qualquer reunião prevista com o Governo, mas diz que “isso não dispensa” o facto de o PS ter que responder às propostas que o PCP apresentou.
“No âmbito da discussão e da votação vão ter de se posicionar perante estas propostas”, frisou Paula Santos ainda que perante a maioria absoluta dos socialistas e a intenção clara do Governo de deixar os ex-parceiros de fora desta ronda de conversas seja difícil que essa confrontação vá além disso mesmo.