Até 2012, ano em que morreu num acidente de viação, Oswaldo Paya, um católico pacifista premiado com o Prémio Sakharov e várias vezes nomeado para o Prémio Nobel da Paz, foi o principal rosto da oposição ao regime cubano. Embora o seu legado tenha permanecido, sobretudo graças à sua filha, Rosa Maria Paya, que em Cuba e a partir dos Estados Unidos tem sido uma das ativistas mais proeminentes contra o regime, desde então a oposição cubana não conseguiu encontrar uma figura carismática e galvanizadora. E é pouco provável que isso venha a mudar nos próximos tempos, apesar das grandes transformações em curso.
Divaldo Valente, cubano que desde 2014 vive em Portugal, hesita quando o assunto é a alternativa ao atual regime, mas assume que Rosa Maria Paya, alguém com quem admite nem sempre concordar politicamente, é uma das pessoas com “melhor preparação, pelo menos, para assumir um cargo de importância”. No entanto, apesar de reconhecer mérito no ativismo de Paya e de outras figuras dos movimentos sociais, o bolseiro de Engenharia Civil do Instituto Superior Técnico, em Lisboa, acredita que, em Cuba, ainda não existem estruturas para que surja um verdadeiro líder político capaz de se apresentar como uma alternativa clara ao regime.
“Há alguns movimentos culturais, como o Movimento San Isidro [um movimento de intelectuais e artistas], há movimentos financiados pelo exterior, como as Damas de Branco [um grupo de familiares dos opositores do regime], mas não existe um líder político que possa fazer frente ao governo e isso é um problema grave que nós temos”, conta Divaldo Valente ao Observador. “Se o governo ainda está no poder e não houve uma grande mudança é pela falta de um movimento político, não só de contestação ou de protesto, que lhe faça frente”, acrescenta.
As dinâmicas do regime cubano, com mais de 60 anos, têm tornado impossível a existência de lideranças políticas capazes de o desafiar, sendo que os movimentos de contestação são rapidamente reprimidos e os seus líderes detidos, como comprovam as detenções dos últimos dias de figuras como José Daniel Ferrer, da União Patriótica Cubana, um dos principais grupos da oposição, ou o artista e ativista político Luis Manuel Otero Alcántara, do Movimento San Isidro. Organizações de defesa dos direitos humanos e movimentos de oposição estimam que o número de presos, desde o início dos protestos, seja superior a 200.
Sem Castro no poder e com acesso à internet, os cubanos reclamam o que a revolução lhes prometeu
“É muito difícil para os cubanos organizarem-se para a mudança, porque isso é ilegal”, afirma ao Observador Joseph J. Gonzalez, historiador especializado em Cuba, da Appalachian State University, dos Estados Unidos, considerando, por isso, que não é expectável que surja, no curto prazo, um líder político para desafiar o regime, como a oposição venezuelana, com o apoio dos Estados Unidos e da União Europeia, tentou com Juan Guaidó. “O Estado cubano é muito mais eficaz a suprimir a dissidência do que o Estado venezuelano foi ou é. Penso que não haverá um líder carismático a emergir destes movimentos de oposição”, antevê o analista.
Jovens tentam organizar-se e movimento San Isidro ganha força, mas (ainda) não é alternativa política
Mas, apesar da repressão e da ilegalização da oposição, há ventos de mudança em Cuba. As transformações dos últimos anos, nomeadamente o aparecimento das redes sociais e de uma nova geração que não viveu o período revolucionário e que tem outras ambições para o futuro, a que acresce a saída de cena dos irmãos Castro, vieram mudar as regras do jogo.
“A maior ameaça para o regime é o facto de que agora existe uma vasta geração de jovens cubanos que querem mudança política. Não sabem que tipo de mudança querem, não têm uma agenda clara, querem uma mudança política e económica e querem-na agora”, afirma o historiador Joseph J. Gonzalez. “Os jovens na casa dos 20, 30 e 40 anos podem não estar organizados, mas estão a tentar organizar-se”, realça.
Nas imagens divulgadas nas redes sociais — antes de o regime cubano ter cortado a ligação à internet, de forma a evitar o incentivo a novas manifestações — nas ruas de várias cidades cubanas viam-se sobretudo jovens, que exigiam melhores condições de vida e respostas ao governo do Presidente Miguel Díaz-Canel, que não tem conseguido garantir aos cubanos a comida e os medicamentos de que tanto necessitam, numa altura de estagnação económica e de agravamento da pandemia de Covid-19.
Nas ruas de Cuba tem havido também manifestações a exigir maior liberdade política e artística, e um dos rostos dessas reivindicações tem sido o Movimento San Isidro, composto por artistas e intelectuais que têm trazido as questões sociais e culturais para o centro da agenda, ligando-as com o ativismo político.
Alguns dos membros deste grupo estão exilados, como é o caso do escritor Carlos Manuel Álvarez, e outros, como o rapper Denis Solís ou artista plástico Luis Manuel Otero Alcántara, continuam em Cuba e têm enfrentado a repressão das autoridades, sendo, por isso, apontados como os rostos da contestação ao regime. Mas, daí até surgirem como possíveis líderes políticos, ainda vai um longo caminho, uma vez que não têm, para já, um programa político para responder aos anseios de toda a população.
“Em Cuba tudo é possível, mas, neste momento, não me parece provável, porque o Movimento San Isidro é sobre liberdade política e artística, e, embora os cubanos valorizem essas questões, neste momento o que querem é o fim dos cortes de eletricidade, comida, cuidados de saúde e um Estado mais eficiente”, afirma o historiador Joseph J. Gonzalez. “Não tenho a certeza de que o movimento San Isidro seja apelativo para cubanos além dos 20 ou 30 anos”, remata.
Contestação vai levar ao aparecimento do Gorbatchov de Cuba?
No mesmo sentido, Marcelo Moriconi, investigador do Centro de Estudos Internacionais do ISCTE, explica que “uma liderança política não se constrói de um dia para o outro” e que o Movimento San Isidro “não tem um manifesto político”. O especialista em questões da América Latina não excluiu, no entanto, que deste movimento possa surgir uma nova liderança política, embora também considere que uma mudança, provavelmente, terá de vir de dentro do Partido Comunista cubano.
“Todo este movimento, provavelmente, pode levar à aparição de um [Mikhail] Gorbatchov de Cuba, mas essa figura não virá de outros movimentos sociais, mas sim, muito provavelmente, do Partido Comunista, porque é a única instituição com dinâmica e capacidade para promover mudanças políticas sustentáveis na ilha”, afirma ao Observador Moriconi, que considera praticamente inevitável que o regime cubano tenha de demonstrar abertura perante os protestos que ganharam força no último fim de semana e que já são consideradas como as maiores manifestações em décadas.
Miguel Díaz-Canel. Quem é o “Richard Gere cubano” que sucede aos Castros?
Para Moriconi, Miguel Díaz-Canel, Presidente desde 2018 e o primeiro Chefe de Estado do país nascido depois da revolução cubana, não será uma figura como o último Presidente soviético, que permitiu a abertura do regime que levaria à queda do Muro de Berlim e à dissolução da União Soviética. E, olhando para o interior do Partido Comunista, também não vislumbra, ainda, uma figura que possa levar a essa abertura. Mas isso poderá ser uma questão de tempo.
“É muito provável que este seja um ponto de inflexão, a partir do qual as novas gerações cubanas, inclusive dentro do Partido Comunista, tenham uma nova voz e revitalizem o debate político, e que isso leve à aparição de um novo líder político que se possa transformar num Gorbatchov e começar a Perestroika cubana”, afirma Moriconi.
Divaldo Valente, no entanto, não acredita que a mudança que muitos cubanos ambicionam possa partir do Partido Comunista, considerando que tal não seria mais do que um “prédio antigo com uma pintura nova”. Apesar de não vislumbrar, para já, uma liderança política alternativa, acredita que a sociedade cubana mudou, e que a contestação ao regime vai da esquerda à direita.
“As pessoas estão a pedir liberdade, a possibilidade de se expressarem sem sofrerem represálias. Não são só os anti-comunistas e as pessoas de direita que estão na rua. É o povo em geral”, afirma o bolseiro do Instituto Superior Técnico, indo ao encontro da ideia que tem sido difundida pelos analistas, que notam que também a esquerda — o Movimento San Isidro tem algumas conotações com esse espectro político — está nas ruas a exigir respostas ao governo cubano. “Estamos num momento de viragem, a sociedade cubana nunca mais será a mesma. O governo até pode não cair agora, podemos até ter mais de 25 anos de comunismo, mas nunca mais será o mesmo.”
A desconfiança em relação aos EUA e aos cubanos exilados de Miami
Enquanto o clima de elevada tensão continua na ilha, os cubanos no exílio, principalmente em Miami, no estado norte-americano da Florida, onde vive a maior comunidade de exilados, aumentam a pressão para que os Estados Unidos se envolvam na questão, e Orlando Gutiérrez, presidente da Assembleia da Resistência Cubana, uma plataforma de organizações da oposição, com sede em Miami, tem pedido mesmo uma intervenção internacional, conforme noticiou a agência Efe.
O Presidente Joe Biden manifestou abertamente o apoio aos manifestantes e pediu o fim da repressão, mas é ainda incerto até que ponto os Estados Unidos estarão dispostos a envolver-se diretamente no movimento de protesto, até porque, em Cuba, além da revolta pelo bloqueio norte-americano que tem contribuído para o sufoco económico do país, existe ainda um forte sentimento anti-Washington, fruto de décadas de enorme crispação, e que se agravou durante o mandato de Donald Trump, muito hostil em relação a Havana — contrariamente a Barack Obama, que ensaiou alguma aproximação ao regime para tentar normalizar relações.
“Entre as pessoas que têm saído às ruas em Cuba há muita gente contra o regime, mas há também comunistas. Além disso, há muita gente que odeia o governo cubano, os Castro e o regime, mas para quem o ódio aos Estados Unidos é igual ou ainda maior. Há muitas pessoas que não são comunistas e que odeiam os Estados Unidos”, afirma Marcelo Moriconi, investigador do Centro de Estudos Internacionais do ISCTE.
Esta forma de olhar os Estados Unidos, acrescenta Divaldo Valente, faz também com que exista muito ceticismo em relação aos cubanos no exílio, principalmente os que vivem na Florida, mais conotados com a direita e com os serviços secretos norte-americanos e as suas tentativas, ao longo dos anos, para derrubar Fidel Castro.
“Muitos cubanos não confiam na diáspora que vive em Miami, porque existe aquela mentalidade, imposta pelo governo, de que quem vive em Miami é pago pela CIA”, afirma o investigador do Instituto Superior Técnico, que, por isso, considera que dificilmente alguém vindo dos Estados Unidos poderia ser uma alternativa ao regime atual.
A diáspora cubana a viver em Miami, que tem organizado protestos contra o regime de Díaz-Canel e em solidariedade com os manifestantes em Havana e noutras cidades, é particularmente importante no envio de dinheiro e de informações para a ilha, e naquela cidade do estado da Florida vivem muitos empresários cubanos que aguardam pela oportunidade de restabelecer os negócios com Cuba. Por esse motivo a diáspora poderá ser fundamental para o futuro do país, embora a sua influência política atual seja limitada.
“Se Cuba alguma vez se abrir, provavelmente grande parte dos líderes políticos não comunistas que vão surgir virão dos grupos políticos organizados em Miami, onde há uma formação política. Há muitos cubanos que estão à espera de que Cuba se abra para ir fazer negócios na ilha”, afirma Moriconi, considerando que este ainda é um cenário longínquo. “Agora, estamos num processo que é nacional e fechado. Mas, se chegar uma Perestroika cubana, nesse processo, logicamente que vamos ter de prestar muita atenção aos grupos cubanos organizados no exterior, que poderão ter um papel-chave”, reitera.
Enquanto essa abertura ainda parece uma miragem, o governo de Miguel Díaz-Canel tenta, a todo o custo, travar a contestação e esperar que a vaga de protestos não ganhe outras dimensões, apesar de já ser evidente que algo mudou em Cuba. Para Joseph J. Gonzalez, neste momento, a sobrevivência do regime não está em causa, mas dificilmente as manifestações vão parar, porque a situação económica, sanitária e social não vai melhorar do dia para a noite.
“Penso que nas próximas semanas ou meses a situação vai continuar bastante tensa, porque o governo não consegue fazer nada para melhorar a situação”, afirma o historiador da Appalachian State University. “A polícia está nas ruas a garantir que estas não são tomadas por manifestantes, mas isso é uma solução a curto prazo para uma série de problemas de longo prazo. O governo não vai conseguir parar os protestos até resolver os problemas que estão na sua origem”, remata.