Os ataques russos desta segunda-feira a várias cidades ucranianas serviram como uma retaliação e um aviso às autoridades de Kiev, que durante o fim de semana destruíram parcialmente a ponte de Kerch, que liga a península da Crimeia à Federação Russa. Vladimir Putin assegurou que haverá uma “resposta dura” caso a Rússia volte a ser ameaçada, não detalhando de que forma o fará. Tendo em conta as recentes ameaças, poderá o chefe de Estado da Rússia usar armas nucleares para se vingar de algum sucesso da Ucrânia no futuro?
Caso avance com essa possibilidade, Vladimir Putin poderá usar vários tipos de armamento nuclear de que a Rússia — o país do mundo com mais armas deste género — tem ao seu dispor. O Presidente russo poderia, por exemplo, usar uma arma nuclear tática com um menor poder destrutivo e com efeitos mais limitados. Ou então, de forma mais drástica, poderia optar pela devastação de uma região inteira — e aí as consequências poderiam afetar a própria Rússia.
Desde o início da invasão à Ucrânia, as autoridades russas têm repetido a ideia de que apenas usarão armas nucleares se tal estiver de acordo com a doutrina nuclear do país. Ou seja, a Rússia utiliza o nuclear se: 1) um inimigo empregar armas do género primeiro; 2) houver uma ameaça às infraestruturas vitais que faça o país perder o controlo do seus recursos nucleares; 3) se a Rússia receber informação fidedigna sobre o lançamento de um míssil balístico contra território da Rússia ou de algum aliado; 4) caso a “própria existência do Estado” estiver em risco.
É precisamente sobre este último ponto que começam a surgir dúvidas sobre um eventual ataque nuclear da Rússia. As regiões ucranianas de Donetsk, Kherson, Lugansk e Zaporíjia já foram, à luz da legislação russa (apesar da contestação da comunidade internacional), integradas na Federação Russa. Se as forças ucranianas conseguirem retomar territórios daqueles quatro oblasts, poderá dar azo a que Vladimir Putin interprete que a “existência” do Estado russo esteja em risco — e parta para o nuclear.
O Presidente russo já garantiu, há três semanas, que “fará tudo” e usará “todos os meios disponíveis” para proteger a integridade territorial da Rússia. “Não é bluff”, garantiu. Do lado do Ocidente, também surgem vozes que levam a crer que Vladimir Putin não estará apenas a usar a chantagem nuclear. O Presidente norte-americano, Joe Biden, considera que o seu homólogo russo “não está a brincar” quando sugere usar armas nucleares, descrevendo a atual situação como a crise mais perigosa desde o episódio dos mísseis de Cuba, em 1962. A ex-chanceler alemã, Angela Merkel, e a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, partilham da mesma opinião.
Se Vladimir Putin optar mesmo pelo nuclear, que cenários estão em cima da mesa? Poderá a Rússia destruir cidades inteiras? Quais são os riscos? E manteria a neutralidade chinesa e indiana? De acordo com Joseph Cirincione, analista militar norte-americano e autor do livro Pesadelo Nuclear: Manter a Segurança no Mundo antes que seja Demasiado Tarde, os serviços de informações dos Estados Unidos estão atentos e a estudar os eventuais riscos (tendo já inclusive delineado planos de contingência para o efeito). Há quatro hipóteses prováveis que o especialista detalha num artigo de opinião no Washington Post, ressalvando, contudo, que não são as únicas.
1Bombas nucleares
só para assustar
Intenção: Assustar a comunidade internacional com um ataque “demonstrativo”
Reação: Isolamento internacional e caos na Europa
O primeiro cenário é aquele que criaria menos riscos, mas que mesmo assim geraria o pânico na comunidade internacional. A Rússia poderá lançar um arma nuclear (de curto ou longo alcance) para uma área inabitada, como, por exemplo, para o Mar Negro ou para o Oceano Ártico. Não haveria mortes nem a destruição de nenhuma cidade, nem sequer traria uma mudança de rumo à contraofensiva ucraniana, mas a explosão mostraria realmente do que Vladimir Putin seria capaz.
Apesar de não causar danos e não ser uma estratégia propriamente nova (os Estados Unidos ponderaram essa opção durante a II Guerra Mundial para levar à rendição do Japão), seria a primeira arma nuclear utilizada desde 1945. E isso levaria a um tumulto geopolítico. Em primeiro lugar, como nota o jornal alemão Der Spiegel, o uso limitado nuclear poderia levar a que os aliados da Ucrânia questionassem se vale realmente a pena manter o apoio a Kiev, pressionando Volodymyr Zelensky a encetar conversações de paz para evitar um desastre nuclear.
Entre os parceiros europeus, a perceção de que a Ucrânia nunca poderia vencer o conflito aumentaria, assim como o receio nuclear, uma vez que a Rússia possui mísseis de longo alcance que podem atingir capitais como Londres, Berlim ou Paris. As populações poderiam, por isso, exigir aos governos que parassem de enviar armamento a Kiev, dando, ao mesmo tempo, uma posição confortável ao Presidente russo para aumentar as exigências no território ucraniano.
Além disso, por conta do receio nuclear, os mercados internacionais entrariam em contração, o que originaria — numa perspetiva a longo prazo — um aumento ainda maior do custo de vida. Tudo isto daria força a movimentos pró-Rússia.
Se na Europa se sentiria o caos de perto e o apoio aos ucranianos poderia esmorecer, noutras latitudes a reação poderia ser a inversa. Segundo Joseph Cirincione, este ataque a uma região inabitada “não levaria a uma resposta nuclear por parte dos Estados Unidos”, mas sim a um apelo ainda mais vincado ao “isolamento internacional da Rússia”, principalmente por parte de países como a Índia, o Brasil, a China ou a África do Sul, que se mantêm neutrais no conflito.
De forma não oficial, os Estados Unidos já vieram, no entanto, avisar que poderão responder à Rússia (mas não com armas nucleares). O ex-diretor da CIA, David Petraeus, avisou Vladimir Putin que, se utilizar armamento nuclear, Washington e os aliados poderão destruir todas as tropas e equipamentos militares na Ucrânia, assim como toda a frota russa no Mar Negro. Seria, inevitavelmente, uma escalada do conflito — mas esta versão carece de confirmação pela Casa Branca.
Pela Casa Branca, Jake Sullivan, conselheiro de Segurança Nacional, deixou claro que os EUA já “comunicaram direta, privadamente e ao mais alto nível com o Kremlin que qualquer uso de armas nucleares levará a consequências catastróficas para a Rússia”, acrescentando que “os Estados Unidos e os aliados vão responder vigorosamente”: “Temos sido claros e específicos sobre o que se seguirá”.
Mesmo neste cenário — em que a arma nuclear seria lançada, por exemplo, para o Mar Negro —, Jake Sullivan sublinhou que constituiria o uso de “armas nucleares pela primeira vez desde o fim da Segunda Guerra Mundial”. “É um tema de seriedade suprema”, destacou ainda o responsável da Casa Branca, que criticou Vladimir Putin por ter usado a chantagem nuclear “em vários pontos durante o conflito” na Ucrânia.
2 Armas nucleares táticas
perto do quintal russo
Intenção: Terminar com a contraofensiva ucraniana
Reação: Isolamento internacional e mortes
Entre os cenários estudados pelos Estados Unidos, há um que prevê que a Rússia empregue as chamadas armas nucleares táticas (de curto alcance). A sua utilização teria como alvo fins estratégicos e militares e, apesar de não causarem um efeito devastador, este armamento poderia “matar centenas ou milhares de pessoas e causar danos significativos”, esclarece Joseph Cirincione.
A explosão seria, ainda assim, “massiva”, apesar de as armas nucleares táticas terem um menor alcance do que as estratégicas — até 100 quilotoneladas de dinamite (para termo de comparação, a bomba que caiu sobre Hiroshima possuía 15 quilotoneladas de TNT e acabou por destruir a cidade japonesa).
De acordo com Joseph Cirincione, este “deverá o ser cenário mais provável”. Na administração Biden, acredita-se, segundo o New York Times, que a Rússia usará uma arma nuclear tática como um último esforço para travar a contraofensiva ucraniana no sul do país, que está a correr de feição a Kiev — aliás, esta quarta-feira, as tropas do país conseguiu conquistar mais cinco cidades nos arredores de Kherson.
Ainda não é claro qual seria o alvo de Vladimir Putin, que poderá escolher disparar a arma nuclear em solo ucraniano, ou então desde a Rússia. Também ainda não é certo se atingirá um alvo puramente militar (como uma base), ou então uma cidade pequena. Além disso, as maneiras como pode ser disparado este armamento são várias, podendo ser através de aeronaves ou navios.
Neste cenário, a condenação internacional à Rússia seria muito mais intensa do que se a arma nuclear caísse num local inabitado. Moscovo corria o risco de ver os principais parceiros a virar-lhe as costas, especialmente a China. Joseph Cirincione não acredita, contudo, que os Estados Unidos retaliassem de forma simétrica. Em vez disso, “a resposta mais provável” passaria por um “aumento massivo da ajuda militar à Ucrânia” e também “ataques da NATO ou dos EUA em unidades russas que tivessem desencadeado o ataque”.
Os serviços de informações norte-americanos estimam que a Rússia disponha de mais de duas mil armas nucleares táticas. No entanto, é difícil localizá-las, estando o seu alcance, a localização e poderio envoltos em grande secretismo.
Na Rússia, já houve quem se manifestasse a favor deste tipo de armamento. O líder checheno, Ramzan Kadyrov, disse, após a tomada de Lyman, que Moscovo tinha “de tomar medidas mais drásticas”, sendo uma delas o uso “de armas nucleares táticas”. Ainda assim, o porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, veio nos dias a seguir rejeitar essa possibilidade. “É um momento muito emocional. Os chefes regionais têm direito a expressar o seu ponto de vista, mas, mesmo em momentos difíceis, as emoções devem ser mantidas fora de qualquer avaliação.”
3 Armas nucleares estratégicas
no escritório de Zelensky
Intenção: Provocar o caos e matar Volodymyr Zelensky
Reação: Isolamento internacional e devastação
Bastante mais percetíveis são as armas nucleares estratégicas, que podem atingir alvos a longa distância. Com uma capacidade de 50 a 100 quilotoneladas de dinamite (cerca de três a seis vezes mais do que a bomba de Hiroshima), este armamento é capaz de devastar cidades inteiras. “Dezenas de milhares de pessoas morreriam com os danos massivos e com as consequências de radiação”, vaticina Joseph Cirincione.
Com a utilização destas armas (e apesar do seu nome), os objetivos deixam de ser puramente estratégicos: há a destruição completa de uma determinada região. Milhares de pessoas perderiam a vida e as que sobrevivessem poderiam desenvolver doenças como cancro ou outros problemas de saúde. Os danos causados também seriam menos controláveis do que num cenário em que Moscovo recorresse a armas nucleares táticas, tendo em conta que se poderia criar uma nuvem radioativa que se poderia espalhar pelos céus de vários países.
A única comparação possível com esta realidade seria o que aconteceu na sequência do acidente nuclear de Chernobyl, em 1986. Com os ventos a soprar do quadrante sul na altura, a nuvem radioativa chegou à Bielorrússia, à Rússia e até, numa menor extensão, à Suécia e à Dinamarca. Logo, as armas nucleares estratégicas podem representar um perigo inclusive para a própria Rússia.
Ciente dos perigos da radioatividade, Vladimir Putin, deverá — se for essa a sua intenção — usar uma arma nuclear longe do território russo, algo possível graças ao seu longo alcance. Joseph Cirincione antevê mesmo uma hipótese: atingir o edifício que alberga o escritório do Presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky. Com isto, apesar da destruição, o chefe de Estado da Rússia conseguiria atingir um dos objetivos iniciais da guerra: a substituição do atual líder ucraniano por outro protagonista ideologicamente mais próximo.
Na remota hipótese de Putin empregar uma arma nuclear estratégica, o tom de reprovações deverá atingir níveis nunca antes vistos no seio da comunidade internacional. Além disso, “certamente, desencadearia uma resposta direta dos Estados Unidos ou da NATO“, assegura Joseph Cirincione, que detalha que Washington, juntamente com a aliança militar, possuem “armas convencionais precisas e poderosas para devastar as forças russas na Ucrânia”.
Ataque nuclear russo: a ameaça, as armas e um potencial inverno nuclear
Isto também significa que, mesmo naquele cenário, os EUA tentariam evitar uma retaliação nuclear. Ainda assim, as armas ditas convencionais seriam, de acordo com Joseph Cirincione, suficientes para eliminar as “unidades responsáveis pelos ataques”. Simultaneamente, é expectável que aconteçam “ataques cibernéticos de larga escala” com o objetivo de deitar abaixo os sistemas informáticos russos.
4 Armas nucleares
nos países da NATO
Intenção: Iniciar a III Guerra Mundial
Reação: Entrada da NATO na guerra
Tudo se alteraria, no entanto, se a Rússia pisasse a linha vermelha e lançasse um ataque a um Estado-membro da NATO. Embora Joseph Cirincione esclareça que é o “cenário menos provável”, não descarta por completo que a Rússia dispare um míssil de longo alcance ou de cruzeiro contra um país no centro da Europa, como a Polónia (que até começou a distribuir comprimidos de iodo aos cidadãos em caso de desastre nuclear) ou a República Checa.
Este cenário com contornos apocalípticos “infligiria um nível da destruição nunca visto na NATO” desde o final da Segunda Guerra Mundial. E equivaleria ao início da Terceira Guerra Mundial, por conta do artigo 5.º do tratado de Washington, que estipula que um ataque a um dos Estados-membros da aliança transatlântica configura um ataque a todos. Os Estados Unidos entrariam no conflito, que deixaria de estar centrado apenas na Ucrânia.
As respostas poderiam ser duas. A primeira passaria por um contra-ataque nuclear dos Estados Unidos, possivelmente com uma arma nuclear tática. A segunda, “e mais provável” — de acordo com Joseph Cirincione —, passaria por um “ataque convencional para tentar eliminar Vladimir Putin” ou até “as armas que ele tem ao seu dispor”, antes que o Presidente russo “atacasse novamente”.
Apesar de o Kremlin nunca ter feito ameaças do género, na televisão estatal russa os aliados de Putin já o fizeram. Dmitry Kiselyov, um dos principais propagandistas do Kremlin, chegou a ameaçar o Reino Unido com um ataque nuclear. “A ilha [Grã-Bretanha] é tão pequena que apenas um míssil [intercontinental] Sarmat é suficiente para submergir” todo o território britânico de “uma vez por todas”, afirmou o apresentador russo.
Berlim, Londres e Paris. Canal estatal russo exibe imagens de possíveis ataques a capitais europeias
E não foi o único. Elogiando o poderio do Sarmat, os convidados de um talk show sobre a guerra na Ucrânia ameaçaram os dirigentes franceses, alemães e britânicos, estimando que, lançado do enclave de Kaliningrado, o míssil demoraria 106 segundos a atingir Berlim, 200 segundos para chegar a Paris e 202 segundos para atacar Londres.
Joseph Cirincione considera que estes cenários “são horríveis só de pensar”. No entanto, o Ocidente deve “preparar-se” para “uma resposta politicamente massiva”. O objetivo? “Fazer com que Vladimir Putin não pise a linha nuclear.”