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Além da detenção do melhor amigo e do chefe de gabinete do primeiro-ministro, a investigação que fez cair António Costa apanha ainda mais cinco atuais ou ex-membros do Governo que são considerados como suspeitos pelo Ministério Público.
Tudo porque terão participado num conjunto alargado de alegadas irregularidades em projetos de investimento que superam mil milhões de euros de investimento em projetos de exploração do lítio, do hidrogénio e da construção de um data center.
Este último projeto, orçado em mais de 500 milhões de euros, é, aliás, a grande novidade da investigação. Está em causa um data center em Sines para clientes “hiperescala” — ou seja, empresas tecnológicas, como a Google, a Microsoft ou a Amazon. Diogo Lacerda Machado é suspeito, juntamente com Vítor Escária, chefe de gabinete do primeiro-ministro, de ter pressionado diversos membros do Governo, autarcas e representantes de outras entidades públicas para aprovar o projeto da empresa Start – Sines Transatlantic Renewable & Tecnology Campus, SA.
Para tal, de acordo com as suspeitas do Ministério Público, ter-se-á aproveitado da sua amizade com o primeiro-ministro António Costa e da sua relação próxima com Vítor Escária para alegadamente pressionar a aprovação célere do projeto da empresa liderada pelo gestor Afonso Salema por parte de entidades públicas tão diversas como a AICEP Portugal Global, a AICEP Global Parques, a REN – Rede Elétrica Nacional, Direção-Geral de Energia, Câmara de Sines, entre outras.
Juntamente com o autarca Nuno Mascarenhas e o advogado Rui Oliveira Neves, ex-responsável da Galp Energia que é também administrador da Start Campus e sócio do escritório de advogados Morais Leitão, foram detidos esta terça-feira. O dossiê do data center da Start Campus inclui suspeitas da alegada prática dos crimes de corrupção ativa e passiva de titular de cargo político, prevaricação, recebimento indevido de vantagem, prevaricação, entre outros crimes.
Além de reuniões na residência oficial do primeiro-ministro, nomeadamente no gabinete de Vítor Escária, os três procuradores do Ministério Público que investigam o caso detetaram a realização de encontros entre Diogo Lacerda Machado, Escária e Afonso Salema na sede nacional do PS, no Largo do Rato.
João Galamba, Duarte Cordeiro e autarca de Sines suspeitos. Lacerda Machado e Escária terão feito reuniões na sede nacional do PS
João Galamba, secretário de Estado da Energia até janeiro de 2023 e ministro das Infraestruturas desde então, e Duarte Cordeiro, ministro do Ambiente desde março de 2022, foram alguns dos titulares de cargo político que, segundo o Ministério Público, terão ajudado os suspeitos Diogo Lacerda Machado, Rui Oliveira Neves e Afonso Salema a alcançar os seus alegados objetivos ilícitos. Assim como Nuno Lacasta, presidente do Conselho Diretivo da Agência Portuguesa do Ambiente.
Galamba já é arguido nos autos, assim como Nuno Lacasta, mas Duarte Cordeiro não foi constituído arguido.
Um dos indícios do alegado favorecimento ao projeto de data center terá passado pela dispensa de procedimento de uma Análise de Impacto Ambiental quanto à primeira fase do projeto da empresa Start Campus, bem como em relação à Declaração de Impacto Ambiental favorável com condições. O Ministério Público entende que tem prova indiciária de que tais procedimentos administrativos não terão cumprido a lei.
A prova indiciária recolhida pelo Ministério Público diz mesmo que ter-se-á verificado um alegado favor de Galamba, Cordeiro e Lacasta à empresa que contratou Diogo Lacerda Machado. E por via da alegada ação concertada entre o melhor amigo do primeiro-ministro e Escária.
Ao que o Observador apurou, os procuradores João Paulo Centeno, Hugo Neto e Ricardo Correia Lamas suspeitam igualmente que a secretária de Estado Ana Fontoura Gouveia, titular da pasta de Energia, foi outro dos titulares de cargos políticos que foram contactados pela dupla Lacerda Machado/Vítor Escária para alegadamente beneficiarem o projeto do data center da Start Campus.
Dos vários encontros que terão sido monitorizados pelo Ministério Público, destacam-se reuniões alegadamente suspeitas que terão ocorrido entre Diogo Lacerda Machado, Vítor Escária e Afonso Salema na sede da empresa Start Campus, localizada nas Amoreiras (em Lisboa). Mas também na sede nacional do Partido Socialista, que se localiza no Largo do Rato.
Já Nuno Mascarenhas, dirigente do PS que lidera a Câmara Municipal de Sines, é igualmente suspeito de ter alegadamente favorecido a Start Campus em projetos urbanísticos relacionados com a construção do projeto de data center. O Start Campus terá recolhido prova indiciária de que houve entrega de vantagens indevidas a Mascarenhas por parte da empresa que tem Afonso Salema e Rui Oliveira Neves como gestores.
Apesar de não serem vistas como alegadas contrapartidas dadas aos titulares de cargos políticos, o Start Campus faz questão de referir nos autos do processo que foram pagos vários almoços e jantares de valor acima do que é socialmente aceitável a João Galamba e a Nuno Lacasta, o presidente do Conselho Diretivo da Agência Portuguesa do Ambiente.
Matos Fernandes trabalha para empresa do consórcio do hidrogénio da EDP/Galp/REN
O inquérito em curso nasce da junção de dois inquéritos que estavam separados: o caso do lítio, que surgiu em 2019, e o caso do hidrogénio verde que terá sido aberto um ano depois.
Os factos relacionados com o processo do hidrogénio verde que estão a ser investigados remontam ao início de 2020, sendo que aqui entra em cena um novo suspeito: João Pedro Matos Fernandes, ex-ministro do Ambiente de António Costa e ex-chefe de João Galamba. Aliás, o próprio Galamba também é visado neste segmento da investigação.
O que é o hidrogénio verde?
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O hidrogénio verde é hidrogénio produzido a partir de fontes renováveis de eletricidade e é a principal aposta para descarbonizar o setor industrial, substituindo combustíveis fósseis como o petróleo e o gás natural. Por ter acesso a energias renováveis baratas (sobretudo pela grande disponibilidade de sol), Portugal tem-se procurado posicionar como um player importante nesta nova tecnologia. Há projetos de muitas centenas (e até milhares) de milhões de euros e fundos públicos (para já mais europeus do que nacionais). Sines tem sido epicentro destes projetos pela proximidade às indústrias que o vão usar o hidrogénio verde (como a Galp) ao mar e pela capacidade de injeção na rede elétrica que ficou disponível com o fecho da central a carvão da EDP.
Ana Suspiro / Ana Sanlez
Tal como a revista Sábado já tinha noticiado em janeiro de 2021, está em causa um projeto do promotor holandês Marc Rechter através da sua estrutura Resilient Group. O primeiro indício é precisamente a alegada contratação de Carlos Calder, ex-adjunto de João Matos Fernandes no Ministério do Ambiente, por parte de Rechter.
Segundo o Ministério Público, Matos Fernandes e João Galamba terão imposto ao promotor holandês a integração da REN, da EDP e da Galp no seu consórcio denominado Green Flamingo. Por outro lado, Galamba terá excluído a 27 de julho de 2020 o projeto liderado por Rechter da lista de propostas que o Governo portugueses submeteu à Comissão Europeia para serem elegíveis para o estatuto de “Important Projects do Common Europe Interest” – um estatuto muito cobiçado pois pode garantir financiamento comunitário a 100%.
Na prática, os procuradores titulares dos autos entendem que existe prova indiciária de que o promotor holandês terá sido prejudicado pela dupla Matos Fernandes/Galamba, pois Marc Rechter terá sido excluído da lista de projetos elegíveis para ser um dos “Important Projects do Common Europe Interest” com o alegado fundamento de que o consórcio Green Flamingo estaria identificado com o projeto da REN, EDP e Galp denominado H2 Sines.
Certo é que, mais tarde, a empresa portuguesa Martifer e a dinamarquesa Vestas passaram a integrar igualmente o projeto liderado pela REN, EDP e Galp — o consórcio alegadamente beneficiado pelo ministro João Matos Fernandes. Segundo o Ministério Público, o ex-ministro do Ambiente saiu do Governo e começou a colaborar com a sociedade Copenhagen Infrasctrutures Partner, na qual a Vestas investiu no final de 2020.
Por outro lado, o Ministério Público liga a contratação de João Matos Fernandes por parte da Abreu Advogados com o facto de a Copenhagen Infrasctrutures Partner ter aquela sociedade como prestadora de serviços.
Acresce que terão existido contactos que o Ministério Público considera como suspeitos entre o ex-ministro do Ambiente e Carlos Martins, um dos homens fortes da Martinfer, para que esta sociedade nacional entrasse igualmente no consórcio H2 Sines.
Ex-ministro de Ambiente suspeito de ter beneficiado o PS antes das legislativas de 2022 e a sua ligação à área dos resíduos
Outra matéria que envolve João Matos Fernandes prende-se com um alegado benefício ao Partido Socialista a propósito das legislativas de 2022. Está em causa um dos temas mais mediáticos da atualidade, as alterações climáticas, e uma das suas consequências: a seca e o respetivo agravamento que o país tem sentido nos últimos anos.
Segundo o Ministério Público, o então ministro do Ambiente foi alertado e sabia pelo menos desde 17 de janeiro de 2022 que era fundamental interditar a produção de hidroeletricidade nas barragens do Alto Lindoso/Touvedo, Alto Rabagão, Vilar/Tabuaço, Cadril e Castelo de Bode. Além disso, e também desde a mesma data, deveria ter sido cessada a utilização da água para rega na albufeira da Bravura.
Contudo, João Matos Fernandes só terá convocado a Comissão Permanente da Seca no dia 1 de fevereiro de 2022 — dois dias depois das legislativas que deram a vitória por maioria absoluta ao PS de António Costa. E só terá feito isso para não prejudicar o resultado eleitoral dos socialistas, acusa o Ministério Público.
O ex-ministro do Ambiente também está a ser investigado por a sua ida para a Abreu Advogados estar igualmente e alegadamente relacionada com um conjunto de alterações legislativas na área dos resíduos e o facto de aquele escritório de advogados assessorar várias empresas de resíduos e ainda a Associação das Empresas de Gestão de Resíduos não Perigosos.
Buscas na residência oficial do primeiro-ministro alvo de cuidados especiais
O alvo mais relevante das 42 buscas domiciliárias e não domiciliárias que foram realizadas pelos mais de 17 magistrados do Ministério Público e 154 elementos da PSP e da Autoridade Tributária foi, sem sombra de dúvida, a residência oficial do primeiro-ministro. Terá sido a primeira vez que uma autoridade judicial realizou uma busca à residência oficial do chefe do Governo.
Precisamente por isso, e não sendo António Costa um alvo das buscas judicias promovidas pelo Ministério Público, os procuradores João Paulo Centeno, Hugo Neto e Ricardo Correia Lamas tiveram cuidados especiais e deram aos operacionais que entraram em São Bento instruções específicas.
Como o alvo da busca era Vítor Escária os investigadores foram instruídos a realizar as buscas única e exclusivamente no espaço de trabalho utilizado pelo chefe de gabinete de Costa, nomeadamente o seu gabinete.
As instruções tinham uma razão legal muito importante: os investigadores não podiam entrar no gabinete de António Costa, pois o primeiro-ministro tem direito a foro especial e qualquer busca judicial ao seu espaço teria de ser previamente autorizada pelo presidente do Supremo Tribunal de Justiça.
Nas buscas domiciliárias e não domiciliárias que foram realizadas a todos os arguidos e suspeitos relacionados com o projeto de data center, os 17 magistrados do Ministério Público e os 145 elementos da PSP e nove da Autoridade Tributária apreenderam todo o tipo de documentação relevante para os autos e os suportes informáticos e de telecomunicações para pesquisarem nova prova indiciária. Os chats de conversação, como o WhatsApp, são um dos focos da atenção dos investigadores.
Como a investigação começou: uma queixa de 2019 sobre a prospeção do lítio
O processo que fez cair António Costa iniciou-se com uma queixa sobre alegadas irregularidades na atribuição da licença para a exploração do lítio em duas vilas diferentes: Montalegre e Boticas, ambas do distrito de Vila Real.
Vamos começar pela concessão da Mina do Romano, em Montalegre. Tal concessão foi atribuída à empresa LusoRecursos Portugal Lithium SA, por autorização concedida pelo então secretário de Estado João Galamba no dia 8 de maço de 2019, sendo o contrato de concessão assinado por 50 anos entre a Direção-Geral de Energia e a Lusorecursos no dia 28 de março de 2019. Um potencial negócio de mais de 380 milhões de euros.
Tal com uma investigação do programa “Sexta às 9” da RTP, da jornalista Sandra Felgueiras, revelou em 2020, ter-se-ão verificado três grupos de alegadas irregularidades que se explicam da seguinte forma:
- O Estado terá assinado um contrato com uma empresa distinta da que assinara o contrato de prospeção e pesquisa em dezembro de 2012 e a qual apresentara antes o pedido de concessão.
- A Direção-Geral de Energia não terá verificado a idoneidade e a capacidade técnica e financeira da LusoRecursos porque esta sociedade foi criada três dias antes de assinar o contrato;
- E, finalmente, mas não menos importante, o contrato de exploração abrangeu outros minérios (incluindo o lítio) que não constavam do contrato de prospeção. O que é irregular.
Ricardo Pinheiro, gestor da LusoRecursos, será suspeito de alegada corrupção ativa para ato ilícito de vários titulares de cargos políticos.
Envolvido neste segmento da investigação está ainda um novo ex-membro do Governo de António Costa: Jorge Costa Oliveira, que foi secretário de Estado da Internacionalização entre dezembro de 2015 e julho de 2017, tendo apresentado a sua demissão na sequência do caso dos bilhetes do Euro 2016 que também envolveu Vítor Escária e Rui Oliveira Neves.
O Ministério Público suspeita que Costa Oliveira foi contratado informalmente pela LusoRecursos ainda em 2018 para alegadamente pressionar e/ou influenciar membros do Governo a conceder a exploração do lítio à sociedade LusoRecursos.
Pinheiro terá recorrido também à ajuda de outro socialista chamado Joaquim Neutel, que chegou a ser assessor de João Soares na presidência da Câmara de Lisboa, para conseguir o acesso privilegiado a João Galamba.
O Ministério Público suspeita que terão ocorrido não só alegadas irregularidades na aprovação da Declaração de Impacto Ambiental em setembro de 2023 por parte da Agência Portuguesa de Ambiente, como também tais alegadas irregularidades terão nascido de contactos dos representantes da LusoRecursos junto dos decisores políticos, como João Galamba.
Por outro lado, Paulo Barroso, membro da Junta Freguesia de Tourém-Montalegre, também é suspeito de estar em conluio com Ricardo Pinheiro.
As alegadas irregularidades na segunda concessão do lítio
Já o processo da segunda concessão de lítio, no mina do Barroso, em Boticas, padecerá de outros alegados vícios, nomeadamente um alegado favorecimento da Galp por parte de uma atuação alegadamente concertada dos suspeitos João Matos Fernandes, então ministro do Ambiente, João Galamba, então secretário de Estado da Energia, e Rui Oliveira Neves, então administrador da principal petrolífera nacional.
Segundo o Ministério Público, o alegado favorecido terá sido simples: os investidores internacionais que dominavam o acionista maioritário da Savannah Lithium Lda tiveram de aceitar a entrada da Galp na participação do capital daquela sociedade e o estabelecimento de uma parceria entre a Northvolt e Galp.
Por outro lado, o então secretário de Estado João Galamba terá estado igualmente envolvido numa alegada interferência indevida junto de diversas entidades do Ministério do Ambiente que aprovaram documentos estruturantes da concessão aqui em causa.
Por exemplo, Galamba terá tido um papel importante em transformar uma discordância e forte oposição da Agência Portuguesa do Ambiente — que resultaram num chumbo do Estudo de Impacto Ambiental da concessão de Boticas — numa aprovação favorável condicionada.
Acresce a tudo isso que o então secretário de Estado da Energia terá estado ainda envolvido nas negociações entre a Savanah Lithium e a Câmara de Boticas para a construção de uma estrada no valor de 20 milhões de euros, de forma a que autarquia não de opusesse à concessão. Um pormenor relevante: tal investimento seria acrescido aos royalties da concessão a que a Savanah teria direito.