Índice
Índice
O Tribunal Constitucional validou esta semana a constitucionalidade da lei aprovada pelo parlamento que descriminaliza as drogas sintéticas e faz uma nova distinção entre tráfico e consumo. Decidiu, por unanimidade, que os governos da regiões autónomas dos Açores e da Madeira, onde o consumo destas drogas é particularmente elevado, não precisam de se pronunciar sobre a lei, ao contrário do que defendeu o Presidente da República.
Conhecida a decisão do tribunal, Marcelo Rebelo de Sousa anunciou que iria promulgar o decreto mal lhe fosse remetido: o que aconteceu na manhã desta quinta-feira. Ao entrar em vigor, a lei dita que a posse de uma quantidade de droga superior ao consumo médio de dez dias não será criminalizada, se ficar comprovado que a sua aquisição e detenção se destina exclusivamente ao consumo próprio. Por agora vão-se já multiplicando críticas e avisos de que isso pode significar um aumento não só no consumo a nível nacional, mas também do tráfico de droga. Há quem diga mesmo que é como abrir uma “caixa de Pandora”. Mas afinal, que mudanças estão em causa?
O que diz a lei atual?
Desde o final de 2001 que o consumo, bem como a aquisição e a posse de drogas para consumo próprio já não é considerado crime em Portugal. O tráfico continua a sê-lo. Esta mudança resultou de uma alteração à legislação portuguesa, que ficou vulgarmente conhecida como a Lei da descriminalização do consumo (lei nº30/2000, de 29 de novembro).
Apesar de o consumo ter sido descriminalizado, não foi despenalizado. Significa isto que consumir substâncias psicoativas ilícitas continua a ser um ato punível por lei, “contudo deixou de ser um comportamento alvo de processo crime (e, como tal, tratado nos tribunais) e passou a constituir uma contraordenação social”, como se pode ler na página do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD).
As alterações serviram principalmente para distinguir entre os consumidores e os traficantes de droga. Para isso, estabelece-se um limite para determinar a quantidade que um utilizador podia ter na sua posse para consumo sem ser considerado, à partida, que se destina ao tráfico. Segundo a lei em vigor, não pode exceder “a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de dez dias”.
O valor para esse período de tempo depende da substância em causa e já está tabelado desde essa altura para as chamadas drogas clássicas — como a canábis ou a heroína. Atualmente, é utilizado pelas autoridades como um guia para atuar. Um utilizador que seja apanhado com menos da quantidade individual para dez dias comete uma contraordenação e pode ser encaminhado para uma comissão de dissuasão da toxicodependência, enquanto que aqueles que tenham uma quantidade superior são encaminhados para tribunal.
[Já saiu: pode ouvir aqui o quarto episódio da série em podcast “Um Espião no Kremlin”, a história escondida de como Putin montou uma teia de poder e guerra. Pode ainda ouvir o primeiro episódio aqui, o segundo episódio aqui e o terceiro episódio aqui.]
O que muda com a nova lei?
Com o surgimento e propagação das chamadas novas substâncias psicoativas (NSP), tornou-se necessário enquadrá-las também na lei. “Não tinha ainda sido identificada a quantidade média para o consumo diário. Era preciso atualizar esses valores para que as forças policiais pudessem identificar se alguém está na faixa da posse até dez dias ou fora — para os considerar consumidores ou eventualmente traficantes”, explica ao Observador Manuel Cardoso, subdiretor-geral do SICAD.
O objetivo passava por tabelar os valores e, assim, igualar as consequências da posse de drogas sintéticas às das drogas clássicas no sistema penal. Mas essa não é a única componente da nova lei da droga. Segundo Manuel Cardoso, nos mais de 20 anos que passaram desde que entrou em vigor a lei da descriminalização do consumo, identificaram-se muitas situações em que os utilizadores de droga, embora sendo apenas consumidores, tinham na sua posse uma quantidade superior à tabelada para dez dias de consumo individual. Nesses casos, podia considerar-se que se tratava de um caso de tráfico e eram encaminhados para tribunal e eventualmente presos.
“Com a nova legislação, esta componente é alterada, dizendo em primeiro lugar que se for um consumidor, é um consumidor e não pode nunca ser considerado criminoso, nem o processo seguir para tribunal. Em relação à posse, se tiver mais do que a média para dez dias, se for exclusivamente para consumo, também não deve ser enviado para tribunal”, refere o subdiretor geral do SICAD.
Esta é a principal mudança e a que está a gerar maior dúvidas e mesmo críticas. Se a lei entrar em vigor, a posse de uma quantidade de droga superior ao consumo médio de dez dias não será criminalizada, se ficar comprovado que a sua aquisição e detenção se destina exclusivamente ao consumo próprio. Para isso será preciso provar que as substâncias são apenas para consumo e não para tráfico, algo que pode dificultar o trabalho das autoridades.
Quando é que a lei foi aprovada pelo Parlamento?
O tema da descriminalização do consumo das drogas sintéticas esteve em debate no parlamento no início do mês de julho, na sequência de dois projetos de lei apresentados pelo PSD e PS. Durante o debate, os partidos justificaram a decisão de avançar com os diplomas com a necessidade de distinguir entre traficantes e consumidores, alertando para o impacto que novas substâncias estão a ter no país e, em particular, nas regiões autónomas da Madeira e dos Açores — quase dois terços das novas drogas sintéticas detetadas no país estão nas ilhas.
O texto final foi apresentado pela comissão parlamentar de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias e aprovado a 19 de julho. Contou com os votos favor do PS, IL, BE, PCP, PAN e Livre, contra do Chega, abstenção do PSD e de oito deputados socialistas.
“Vinte e sete anos depois, impõe-se alterar o enquadramento legal atual por forma a abranger esta nova e dura realidade”, disse na altura a deputada social-democrata Sara Madruga da Costa, sublinhando que a distinção entre consumidor e traficante “é fundamental” para combater o fenómeno das drogas sintéticas. Já Cláudia Santos, deputada do PS, destacou que o objetivo é “reafirmar a opção feita pela prevenção e pelo tratamento dos consumidores”, acrescentando que a partir de 2009 cresceu o número de condenados por crime de consumo.
Porque é que Marcelo enviou a lei para o Tribunal Constitucional?
Depois de aprovado pelo parlamento, a lei seguiu para Belém, mas o Presidente da República decidiu não promulgá-la e em agosto anunciou o enviou do diploma para o Tribunal Constitucional (TC). Na altura, Marcelo Rebelo de Sousa justificou a decisão com a “falta de consulta” dos órgãos de Governo das regiões autónomas da Madeira e Açores.
O chefe de Estado dava assim razão ao pedido da Madeira, que já tinha solicitado que a nova lei da droga não fosse promulgada, alegando que se tratava de uma “violação da Constituição da República Portuguesa” e que tinha sido aprovada sem que fossem ouvidos os órgãos das regiões autónomas. Do mesmo modo, nos Açores, o presidente da Assembleia Legislativa aplaudia a decisão de Marcelo, destacando também a não audição da região e o que dizia serem “especificidades muito claras” no assunto.
De facto, o consumo destas drogas sintéticas é especialmente grave nas regiões autónomas. Quase dois terços — 60% — de todos os pedidos remetidos este ano ao Laboratório de Polícia Científica da Polícia Judiciária para identificação de novas substâncias psicoativas com resultados positivos tiveram origem nas ilhas. Os números oficiais, que foram disponibilizados ao Público, confirmam o “peso enorme” de Madeira e Açores no consumo de drogas sintéticas, onde se tem registado o aumento de internamentos compulsivos por perturbações psiquiátricas ou surtos psicóticos associados a estas substâncias.
Drogas sintéticas. 60% das novas substâncias detetadas na Madeira e nos Açores
O facto de os órgãos regionais não terem sido consultados não foi, porém, o único problema que Marcelo identificou. Numa nota publicada no site da presidência, o Presidente também manifestava algumas “reservas sobre uma questão de conteúdo, e na linha do entendimento que já vem dos tempos do Presidente Jorge Sampaio, considerando, agora, em particular, a especial incidência dos novos tipos de drogas nas Regiões Autónomas, o regime sancionatório nelas adotado e a regionalização dos serviços de saúde, fundamentais para a aplicação do novo diploma”.
O que decidiu o Tribunal Constitucional?
O Tribunal Constitucional demorou 13 dias a avaliar e dar resposta ao pedido do Presidente da República. Na terça-feira, o juiz conselheiro relator Carlos Medeiros Carvalho anunciou que o TC decidiu, por unanimidade, não se pronunciar pela inconstitucionalidade, decidindo validar a lei.
O presidente do TC, José João Abrantes, também veio a público justificar a decisão. Em declarações aos jornalistas, disse que entenderam que a matéria “não se apresenta como envolvendo questões respeitantes às regiões autónomas”, pelo que não era necessária a consulta prévia de que Marcelo Rebelo de Sousa falava.
Logo após a decisão do tribunal, o Presidente da República anunciou que iria promulgar a lei, mal lhe fosse remetido o decreto (o que já aconteceu), mas manteve algumas reservas. Marcelo chamou a atenção para o facto de a Assembleia da República ter divergido do Governo no “ponto sensível” da definição da quantidade de droga que alguém pode ter na sua posse para ser considerado mero consumidor ou um traficante.
O consumo e tráfico de droga podem aumentar?
Há várias vozes críticas à nova lei da drogas e às consequências que pode ter no consumo e tráfico de droga no país. Na sequência da decisão do TC, a Unidade Operacional de Intervenção de Comportamentos Aditivos e Dependências da Madeira (UCAD) avisou que o tráfico e a toxicodependência “vão piorar” em Portugal com a promulgação do decreto.
“Se esta lei entrar em vigor, vai aumentar a probabilidade de haver mais traficantes e mais quantidade de droga na rua e não se protege o consumidor”, disse à agência Lusa Nelson Carvalho, diretor da UCAD-Madeira, sublinhando que a Assembleia da República deve agora avançar com um processo de “fiscalidade preventiva”. “Sabemos que os traficantes são muito expeditos e rapidamente vão aproveitar esta situação dúbia. Vamos abrir uma caixa de pandora, em que os traficantes vão ganhar e vão ficar mais fortalecidos”, reforçou.
Também o presidente do Governo da Madeira, Miguel Albuquerque, disse na terça-feira que não ficou surpreendido com a decisão do TC, afirmando que as decisões do organismo “têm sido sempre contra a Madeira”. “Neste caso concreto, a Madeira nem foi ouvida sobre uma questão que é pertinente de saúde pública”, sublinhou.
Manuel Cardoso discorda de que haverá necessariamente um aumento de consumos por essa via. “É preciso lembrar que o consumidor, quer tenha uma quantidade para dez dias ou para 15, se for intercetado pelas forças de segurança, a droga ser-lhe-á sempre apreendida. O benefício de trazer grandes quantidades nunca será grande”, afirma.
Admite, no entanto, que pode dificultar num primeiro momento o trabalho das autoridades em determinar e provar que a droga apreendida se destina para consumo ou para tráfico e que haja alguns traficantes a passar “mais facilmente nas malhas das forças de segurança”. “Vai seguramente criar algumas dúvidas e obrigar à definição de regras”, aponta, mostrando-se convencido na capacidade das forças de segurança portuguesas para encontrar uma forma de gerir estas dificuldades. “No geral, a mudança e a legislação na minha opinião é positiva. A clarificação em relação às novas substâncias psicoativas e de que ninguém pode ser preso por consumir também é boa. Apenas precisamos de não deixar que possa haver qualquer dúvida quanto às quantidades e ao processo a prosseguir”, sublinha.