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JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

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Entrevista. Homossexualidade na Igreja é a "principal explicação para o encobrimento dos abusos sexuais"

Frédéric Martel recorreu a padres gays, incluindo portugueses, para entrar no que diz ser "uma organização gay". No livro "No Armário do Vaticano", diz que isso explica o encobrimento dos abusos.

O jornalista e escritor francês Frédéric Martel, autor do polémico livro “No Armário do Vaticano”, não tem dúvidas de que há uma ligação entre a homossexualidade e a prática de encobrimento dos abusos sexuais na Igreja Católica. Numa entrevista ao Observador, dada esta quinta-feira durante uma breve passagem por Portugal, Martel diz que a decisão de lançar o livro no mesmo dia em que arrancou no Vaticano uma cimeira internacional inédita dedicada à responsabilidade da Igreja nos abusos sexuais de menores foi consciente.

“80% dos abusos são abusos homossexuais. 80 ou 85% das vítimas — dependendo dos estudos — são homens adultos, muito frequentemente seminaristas, ou jovens rapazes. Ou seja, há uma ligação com a homossexualidade”, considera Martel. “O encobrimento, a forma como o sistema funciona, a cultura de segredo, a forma como as pessoas se chantageiam umas às outras sobre estas questões é um problema homossexual e um sistema ligado à homossexualidade”, explica o francês, acrescentando: “Este livro não é sobre abusos sexuais, mas este é, honestamente, o primeiro livro que nos dá a principal explicação para o encobrimento dos abusos sexuais”.

“No Armário do Vaticano”. Jornalista francês diz em livro que 80% dos padres do Vaticano são homossexuais

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Questionado sobre a questão mais mediática em torno do seu livro — a afirmação de que 80% dos clérigos do Vaticano são homossexuais —, Frédéric Martel reconheceu que não se pode acreditar neste número sem questionar e lembrou que todas as estatísticas que incluiu no livro são ditas pelos seus entrevistados e não por si. “Cada um tem o seu próprio número, isso não quer dizer nada”, admite Martel, explicando que prefere utilizar termos mais genéricos como “maioria”.

Martel explicou ainda que contou com a ajuda de 27 padres homossexuais, grupo no qual se incluem sacerdotes portugueses, na sua investigação, e sublinhou que teve facilidade em entrar nos meandros do Vaticano por este ser uma “organização gay”. “Não estou a entrar numa organização católica, estou a entrar numa organização gay. Conheço o código, tenho a rede de contactos, sou capaz de perceber o que acontece”, afirma. E garante ainda que “não há nenhum rumor neste livro”.

A obra foi publicada em oito línguas e em mais de 20 países.

Frédéric Martel deu uma entrevista ao Observador esta quinta-feira em Lisboa (JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR)

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Quero começar pelo número que chegou a todos os títulos dos jornais: o de que 80% dos padres e bispos no Vaticano são homossexuais. O seu livro é baseado na ideia de que a maioria dos sacerdotes na cúpula da Igreja Católica é homossexual. Mas este valor dos 80% aparece apenas como uma estimativa dada por Francesco Lepore [padre italiano que abandonou o sacerdócio depois de assumir que era homossexual] durante uma entrevista que lhe fez. Isto é uma estatística credível?
Ninguém sabe. É impossível ter uma estatística e é por isso que eu próprio não apresento nenhuma estatística. Francesco Lepore disse isso e ele esteve no Vaticano muito tempo. Outras pessoas disseram-me isso. Muitas, na verdade.

O mesmo número?
Bom, cada um tem o seu próprio número, isso não quer dizer nada. É por isso que, enquanto jornalista e enquanto sociólogo, não posso acreditar neste número sem questionar. Porque, mesmo que possa ser verdade — não sei —, não podem ser avaliados com precisão de forma científica. Às vezes, no livro, refiro-me a um grupo de doze cardeais em específico. Como fiz uma investigação extremamente cuidadosa sobre todos eles e temos muita informação, posso dizer que a maioria deles são gay. E tenho a certeza disso. É um grupo de uma dezena de pessoas e é possível fazer uma avaliação se tivermos informações. É por isso que eu o cito a ele e a outros. Nos seminários, diziam-me que pensam que são 70%, ou 50%. São as palavras deles. Eu não os contradigo, mas não aceito os números deles sem discussão.

E sente-se à vontade para escrever um livro sobre o facto de a maioria dos padres e cardeais serem homossexuais sem ter esses números?
Sim, eu prefiro esse tipo de palavra, como “maioria”. Pode ser uma grande maioria ou uma pequena maioria…

Mas é difícil saber.
Sim. É por isso que uso termos mais genéricos e falo, sobretudo, de uma “maioria silenciosa”. Não se esqueça de uma coisa: quando falo sobre homossexuais, são 50 sombras de homossexualidade.

A dada altura fala em “todas as tendências”.
Existem os homófilos. Para mim, um homófilo é alguém que não age como homossexual, não pratica sexo. É casto e fiel à sua visão da castidade. Para mim, é um homossexual, porque até quando alguém é um homófilo, por causa da sua psicologia, da sua cultura, da sua sensiblidade, é gay. Mas isso não significa que a pessoa traia os seus votos de castidade.

E como é que sabe que este ou aquele cardeal é homófilo?
Quando uma pessoa está no Vaticano durante quatro anos a trabalhar e a viver, quando se tem 27 padres gay dentro do Vaticano — e, já agora, alguns são portugueses, não lhe posso dizer o nome deles, porque não estão mencionados, mas há padres portugueses a quem estou muito grato, porque me ajudaram muito e cheguei a viver com alguns deles —, que já estão lá há vinte ou trinta anos, que dormiram com muita gente, foram comidos e seduzidos por alguns cardeais e bispos. Temos a informação. E não há nenhum rumor neste livro. Sempre que eu menciono alguma coisa, pode parecer que são estereótipos ou que são rumores. Mas não há rumores nem estereótipos neste livro. Se parecer que há rumores é porque não posso dizer os nomes da realidade. Mas eu sei.

"Não há rumores nem estereótipos neste livro. Se parecer que há rumores é porque não posso dizer os nomes da realidade. Mas eu sei"
Frédéric Martel

Porquê? Porque é que tem tantas fontes não identificadas no livro?
Isso é muito simples. Se eu disser que você é gay, quer seja verdade quer não seja, isso é um problema legal. Podia processar-me. É um problema legal, em primeiro lugar, neste assunto. Depois, há também uma questão moral. O meu objetivo não é expor ninguém. Não é um livro sobre “outing“. Só exponho três categorias de pessoas: em primeiro lugar, pessoas que já morreram há muito tempo e, por isso, é uma questão de história, se tivermos provas reais; em segundo lugar, pessoas que foram expostas em grandes jornais, como é o caso de Azevedo [D. Carlos Azevedo, bispo português a trabalhar no Conselho Pontifício para a Cultura, no Vaticano]; e ainda pessoas que foram condenadas em tribunal por terem cometido abusos sexuais sobre adultos — seminaristas, por exemplo —, em que podemos dizer que é abuso, mas também é homossexualidade, porque estão interessados em homens adultos.

Já que fala da questão dos abusos sexuais: porque é que publicou este livro no dia em que começou no Vaticano a cimeira internacional sobre os abusos sexuais na Igreja Católica?
Duas coisas. Em primeiro lugar, comecei a escrever este livro há quatro anos. Não sabia a história do [cardeal norte-americano Theodore] McCarrick, não sabia a história do Chile, não conhecia a carta do [antigo embaixador do Vaticano nos EUA Carlo Maria] Viganò, não sabia que este cimeira ia acontecer. Claro que não sabia nada disto. Em segundo lugar, o livro era para ser publicado em setembro, porque ficou terminado, em francês, em junho. Mas depois houve muitas editoras que queriam traduzir o livro e que queriam publicá-lo ao mesmo tempo que nós: as versões em português, em inglês, em italiano… Por causa disso, o livro, que era supostamente para ser publicado em setembro, acabou adiado para janeiro/fevereiro. Depois, eu decidi associar o livro a esta cimeira. Este livro não é sobre abusos sexuais, mas este é, honestamente, o primeiro livro que nos dá a principal explicação para o encobrimento dos abusos sexuais. O encobrimento está relacionado com este livro. Não os abusos em si. Os abusos são histórias individuais e complexas — e eu não sou um juiz. O livro não é sobre abusos sexuais.

Não acha que ao publicar um livro sobre a homossexualidade na Igreja no dia em que a Igreja está a discutir os abusos sexuais é forçar uma ligação sobre a homossexualidade e os abusos sexuais? Algo que até mancha a imagem dos homossexuais, ao serem associados a esta prática?
O trabalho de um investigador, o trabalho de um jornalista, é contar a verdade, descrever a realidade. 80% dos abusos são abusos homossexuais. 80 ou 85% das vítimas — dependendo dos estudos — são homens adultos, muito frequentemente seminaristas, ou jovens rapazes. Ou seja, há uma ligação com a homossexualidade. É um facto. Além disso, o encobrimento, a forma como o sistema funciona, a cultura de segredo, a forma como as pessoas se chantageiam umas às outras sobre estas questões é um problema homossexual e um sistema ligado à homossexualidade. Ao mesmo tempo, claro que a homossexualidade não tem uma ligação com o abuso sexual. Os abusos sexuais acontecem, na generalidade, em famílias heterossexuais, em lugares como escolas também são cometidos abusos sexuais e a maioria das vítimas em todo o mundo são mulheres ou raparigas. Mas na Igreja há uma singularidade e, muito frequentemente, a razão destes abusos não é a homossexualidade em si…

Porque um padre, se for homossexual e quiser fazer sexo, pode ir ter com um homem adulto. Não com uma criança…
Mas eles não assumem a sua homossexualidade. O problema não é a homossexualidade, o problema é a sublimação, a castidade, a mentira sobre si próprio, uma homossexualidade que é reprimida, que é negada. A vida dupla. Este livro é sobretudo acerca da hipocrisia, da esquizofrenia, da vida dupla.

A dada altura, no livro, o Frédéric fala das regras do “armário”, o tal sistema homossexual do Vaticano. Uma delas é que quanto mais homofóbico for o discurso de um padre, de um bispo ou de um cardeal, mais provável é que ele esteja a esconder alguma coisa e até mesmo que ele próprio seja gay. As posições mais fortes contra a homossexualidade vêm habitualmente da ala mais conservadora e tradicionalista da Igreja Católica. Isto quer dizer que a maioria dessa ala tradicionalista é composta por padres homossexuais?
Não sou só eu que digo isto. É também o próprio Papa Francisco. O Papa Francisco está sempre a falar dos seus opositores, dos cardeais, que são — e cito-o — os “rígidos” que têm uma “vida dupla”. Ele fala dos cardeais que são esquizofrénicos, hipócritas, que têm uma vida dupla. A história deste pontificado é que este Papa, que é uma espécie de gay-friendly

Diria que o Papa Francisco é gay-friendly?
Não. Mas digamos que é mais gay-friendly do que os Papas anteriores. Ele não é gay, mas é atacado por cardeais que são muito homofóbicos e que são, eles próprios, gays.

Os inimigos de Francisco

O cardeal Burke, por exemplo?
Não sei se Burke é gay, não tenho informação nenhuma sobre Burke. O que eu sei é que ele critica a feminização da Igreja e é, ele próprio, muito efeminado. Há um certo mistério e, de certa forma, uma espécie de esquizofrenia em Burke. Mas ele é um entre outros que são totalmente contra-intuitivos quando se olha para o que eles são e o que eles dizem. Mas o Papa, para responder à sua pergunta… Eu não gostava muito deste Papa no início.

Porquê?
Porque sou um francês secular e ele é um jesuíta, há logo ali uma grande história entre França e os jesuítas… Ele é argentino, peronista, num dia é gay-friendly e no outro é anti-gay. Fala sobre meias-verdades, mas às vezes são meias-mentiras. Aquilo não era para mim.

O que é certo é que o Papa Francisco não mudou nenhuma doutrina da Igreja sobre a homossexualidade.
Não. Para mim, ele é uma espécie de Papa Gorbacheviano. Quer proteger o sistema, mas, ao mesmo tempo, sabe que o sistema tem de mudar. É uma figura complexa. Passo a passo, porém, comecei a gostar dele. Ele é progressista em assuntos sociais, como a pena de morte, os migrantes, e mais conservador em assuntos morais, como o casamento gay, a teoria do género e este tipo de coisas. Mas, no fim de contas, comecei a gostar dele porque percebi que ele está numa armadilha. Não pelos católicos em si, nem mesmo pela direita, mas pelos cardeais da extrema-direita, que o atacam por ser responsável pela história do Chile, pelo McCarrick, até mesmo pelo [cardeal George] Pell.

Frédéric Martel é jornalista e sociólogo, dedicando-se ao estudo dos assuntos LGBT

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Fala dos cardeais das dubia, por exemplo.
Sim. Mas quem é que nomeou Pell como cardeal? Quem criou McCarrick cardeal? Quem protegeu os bispos e o núncio no Chile? São tudo pessoas dos pontificados de João Paulo II e Bento XVI. Já estavam no sistema e eram opositores. Pell é um opositor de Francisco, é um conservador. Atacou muito o Papa. Não fez parte das dubia, mas é próximo das dubia. É próximo do [cardeal Ludwig] Müller, do [Walter] Brandmüller, do [Carlo] Caffarra… Ele fazia parte deste grupo. Não é próximo do Papa Francisco. Por isso, atacá-lo a ele para promover estas pessoas quando ele é herdeiro deles, é injusto.

Por exemplo quando fala do cardeal McCarrick no livro, a dada altura diz que ele é homossexual e que está confortável com isso. Novamente, volto à mesma pergunta: publicar um livro em que fala da homossexualidade de McCarrick numa altura em que ele foi expulso do sacerdócio por ter abusado sexualmente de um menor não é misturar as coisas?
Não. Sobre a história de McCarrick, o Papa Francisco reagiu da mesma forma que está a reagir com Pell. É muito direto e é extremamente claro. Quando ele sabe que alguém é homossexual, não age. Porquê? Porque se ele começa a agir sobre isso, metade do colégio dos cardeais tem de sair. Essa é a realidade.

Agora está a dar uma estimativa.
Eu digo 50%, mas não sei, você percebe o que eu estou a dizer. Se tirarmos todos os gays da Igreja, a Igreja fica vazia. Por isso, ele não age. Quando ele sabe que McCarrick ou Pell são acusados de abusos sexuais, então ele tira-os de onde estão. Pell volta para a Austrália, McCarrick é tirado do cargo. Depois, quando eles são condenados, quando o julgamento acaba e eles são considerados culpados, então ele expulsa-os do sacerdócio. Ele trabalha num caminho muito claro. Ele está no comando. Não vai despedir ninguém se não houver provas. Também há muitas pessoas, especialmente padres, que foram denunciados, que foram atacados — como Carlos Azevedo, podemos discutir isso mais à frente, sobre Portugal — sem um julgamento. Ele foi condenado, foi despedido, sem um julgamento. Isso não é justo. Não é uma coisa normal numa democracia ou num mundo normal. É por isso que eu apoio vários deles. O monsenhor [Battista] Rica, Azevedo, porque foram tratados de forma injusta sem um julgamento. Se ele é culpado, ok. Mas para já não são culpados. Não podem ser punidos sem um julgamento.

"Se tirarmos todos os gays da Igreja, a Igreja fica vazia"
Frédéric Martel

Está a dizer que ida de Carlos Azevedo para Roma foi uma punição pela sua homossexualidade?
Sim. Pelo menos, uma forma de o proteger. Era suposto ele ser arcebispo de Lisboa, ser criado cardeal e ser patriarca. E não é. Foi punido, apesar de não ter sido feito nenhum julgamento. Se o acusar de abusar sexualmente de mim, preciso de provas. Talvez seja verdade, mas é preciso um julgamento, é preciso que os tribunais civis ou os tribunais religiosos cheguem a essa conclusão. Não foi esse o caso com Azevedo. Como é que a Igreja pode ser injusta com alguém quando está sempre a falar da verdade?

O Frédéric falou com o bispo Carlos Azevedo?
Sim, várias vezes. Mas também com muitas pessoas aqui. Conheço a história de muitos pontos de vista.

E ele sente que foi tratado injustamente?
Sim. E falei disso com outras pessoas também, para ter outros pontos de vista. Fui ao Porto, falei com o padre, falei com políticos… Novamente, não julgo as pessoas. Neste livro não há nenhum padre que eu acuse de qualquer abuso. Não é o meu trabalho. Não é um livro para julgar pessoas, nem sequer é um livro para denunciar a homossexualidade. Não exponho as pessoas. Eu sou gay, abertamente gay, sou gay-friendly. O facto de um bispo, um cardeal ou um padre ser gay não é um problema para mim. Não os encorajo a ser gay, mas, se são, acho que devem poder viver as vidas deles. Devia ser uma opção entre outras. Não que eu queira mudar a doutrina, mas porque é já uma maioria tão grande… Nos jesuítas, nos dominicanos, nos franciscanos, em todas as ordens, no Vaticano, em todo o mundo… Isto é uma realidade. É sempre possível mentir, é sempre possível dizer que, na Igreja, não é suposto fazerem sexo, que a homossexualidade é má. Ok, mas se a realidade está em todo o lado, há um momento em que é preciso dizer a verdade.

O que é que gostava de ver mudado no Vaticano?
Para ser honesto, eu sou jornalista, sou escritor, sou sociólogo. O meu objetivo, o meu trabalho, é escrever este tipo de livros.

Mas fala de uma série de situações que diz serem injustas. Então, o que é que tinha de mudar no Vaticano para haver justiça, na sua opinião? A doutrina da Igreja?
Não. Novamente, toda a gente tem de se colocar no seu lugar. Quando eu falei com os cardeais — eu vivi com eles nos apartamentos deles, fui de férias com eles, viajei com eles para vários lugares durante muito tempo —, continuava a ser um jornalista. Não misturo o meu trabalho com o trabalho deles. A mudança da doutrina da Igreja não é o meu trabalho. Com este livro, e outros, as pessoas podem decidir o que querem fazer. Esse é o trabalho dos católicos, esse é o trabalho dos bispos, esse é o trabalho dos padres no Vaticano. Por isso, eu talvez os ajude ou não. Uma pessoa pode adorar o meu livro ou odiar o meu livro. No Vaticano, têm sido contra o meu livro, a favor do meu livro, têm discutido o livro. Esse é o meu trabalho. Acho que este livro é um bem público, “un livre d’intérêt général” [um livro de interesse geral], como dizemos em francês. Eu dou o livro e as pessoas usam-no se quiserem.

Mas que efeitos práticos pensa que poderá ter?
Sabe, fiquei muito surpreendido pelas reações. Foram tantas em tantos países. Dei entrevistas na Nova Zelândia, na Eslovénia, na Croácia, em todos os países da América Latina, em pequenas cidades no norte do Canadá. Este livro é o número um de vendas em França, na Bélgica, na Suíça, nos Países Baixos. É um best-seller em Itália, estamos na lista dos best-sellers do The New York Times, nos Estados Unidos, desde ontem. Nunca tive um livro entre os best-sellers do The New York Times. Veremos. É muito simples. Timothy Radcliffe, talvez o conheça, é o antigo mestre-geral dos dominicanos, uma pessoa muito importante na Igreja Católica, disse: “Se metade das coisas que são reveladas no livro forem verdade, a Igreja tem de mudar completamente”. E penso que tenho metade da verdade.

Este é o seu primeiro livro sobre a Igreja Católica.
Sim.

Antes, escreveu vários livros sobre assuntos LGBT.
Sim, e cultura. A minha primeira especialização é a sociologia das políticas da arte nos Estados Unidos.

O que é que o levou a escrever um livro sobre a Igreja?
Porque é que se escreve este tipo de livros? Porque se tem fontes desde o início. Sem isso, não se escreve um livro assim. Tive várias fontes no início, que rapidamente se tornaram muitas.

Qual foi a primeira informação que lhe deram e que motivou a produção do livro?
Basicamente, a história. Houve pessoas que me disseram: “Eles são gays”. E eu disse: “Estás a mentir-me? Não é possível”. Depois, várias pessoas disseram-me o mesmo, sabiam, provaram-me várias coisas. Penso que as pessoas, também em Portugal, os católicos, sabem. As pessoas sabem que há alguma coisa de errado. Não é possível ter todas as semanas George Pell a ir para a prisão, McCarrick a ser expulso, o núncio em Paris a ser atacado por dois casos de assédio sexual a dois homens, a explosão no Chile, a explosão na Pensilvânia, a explosão em Boston. A mesma história no Peru, a mesma história na Colômbia, a mesma história com o grande pedófilo no México (Marcial Maciel, fundador dos Legionários de Cristo, que abusou sexualmente de dezenas de seminaristas, teve várias mulheres e vários filhos, de quem também abusou sexualmente). Isto não é um problema meu. Se os católicos ainda querem ter mais uma história destas todos os meses, podemos dizer que não há nenhum problema. Penso que esta é a principal explicação para todo o sistema.

Foi fácil para alguém que nunca escreveu sobre a Igreja Católica chegar ao Vaticano e contactar com todos estes 40 cardeais, dezenas de bispos e padres?
Sim.

Como é que chegou a eles?
É uma organização gay. No meu ponto de vista, não estou a entrar numa organização católica, estou a entrar numa organização gay. Conheço o código, tenho a rede de contactos, sou capaz de perceber o que acontece. Claro que não estou a dizer que toda a gente é gay. Conheci também pessoas heterossexuais. E, entre os gays, muitos são homófilos, provavelmente não têm sexo. Mas são, na sua psicologia e sensibilidade… Eles amam-me.

"No meu ponto de vista, não estou a entrar numa organização católica, estou a entrar numa organização gay. Conheço o código, tenho a rede de contactos, sou capaz de perceber o que acontece"
Frédéric Martel

Para entrevistar um cardeal, é preciso passar por alguma diplomacia, agendar uma audiência com ele, etc. Passou por esses processos?
Sim, claro. Mas, ao mesmo tempo, se telefonasse ao assessor de imprensa e dissesse: “Olha, estou a escrever um livro chamado ‘Sodoma’ e quero encontrar-me com o cardeal para discutir a sua homossexualidade”, não tinha entrevista nenhuma. A porta fecha-se. Não se faz isso. Não trabalhei com os assessores de imprensa. Fui pela minha rede de padres gays, eles apresentam-me a pessoas, eu contacto-as. Não menti sobre o meu nome. Toda a gente me conhecia. Nunca menti sobre o facto de ser jornalista, um escritor, um sociólogo. Toda a gente sabia isso. Depois, muitas pessoas, as minhas primeiras fontes, alguns conselheiros do Papa, sabiam o que eu estava a fazer. Mas a outros não dei necessariamente o panorama geral. Se eu o tivesse entrevistado sobre a situação em Portugal, esse é um pequeno tópico. Isso está no livro, por isso eu não minto. Mas não digo necessariamente o que está em causa no projeto inteiro. É por isso que muitas pessoas ficaram muito surpreendidas. Cada uma delas sabia um pequeno pedaço do que eu estava a fazer. Depois, quando o livro foi publicado, e com o título, eles perceberam que era um projeto muito grande.

O que é que conhecia sobre a estrutura e organização da Igreja Católica antes de começar a escrever o livro?
Nada. Fui católico até ter 12 anos de idade. O meu catolicismo era dessa altura, o que não é nada quando se tem 12 anos. Se você me tivesse conhecido há quatro anos e me perguntasse “o que é que acha do núncio em Portugal?”, eu perguntava-lhe: “O que é um núncio?”. Não sabia nada. Por isso fiz o que fiz para todos os meus livros. Quando cheguei aos Estados Unidos para fazer o meu doutoramento em política cultural, não conhecia nada sobre as fundações, sobre a angariação de fundos. Comecei a ler livros, li uma série de livros. Depois, criei uma equipa de 80 investigadores, fixers e tradutores que me ajudaram a fazer o livro. Lemos literalmente centenas de artigos, que vão estar disponíveis nas notas. Pedi uma série de traduções, comecei a trabalhar, a visitar pessoas, fiz perguntas e perguntas durante quatro anos, e depois escrevi o livro.

No ponto de partida, o que é que achou que iam ser as suas conclusões?
Para lhe dizer a verdade, todos os dias, quando trabalhava, ia ficando mais chocado com o que descobria. Penso que os homossexuais no Vaticano não são um grande furo jornalístico. Mas quando se vê o sistema de recrutamento, de promoções… À medida que se sobe na hierarquia encontramos mais gays. E a mentira. As pessoas podem mentir a qualquer momento. É uma organização da mentira. E também se percebe o abuso sexual. Mesmo comigo, mentiam em muitas pequenas coisas. Por exemplo: “Não conheço este tipo”. E nós sabíamos que eles estavam juntos o tempo todo. Ou quando diziam que alguém era um assistente e nós sabíamos que era um amante. Diziam: “É o meu novo assistente”. E nós sabíamos que eles se conheciam há dez anos. Sempre. Mentira pura. Mentem porque têm medo.

O livro foi publicado em oito línguas ao mesmo tempo no dia 21 de fevereiro, primeiro dia da cimeira do Vaticano sobre abusos sexuais (JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR)

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

De serem expostos?
Sim. Para um padre, ser gay é o fim da carreira. Estão completamente cheios de medo disso.

Era por isso que lhe perguntava se não quer, com este livro, mudar nada no Vaticano ou na doutrina católica. Na sua opinião, como seria a doutrina perfeita da Igreja para acabar com essas situações de medo e de mentira de que fala?
Há duas teorias. A teoria da direita e a teoria dos liberais. Os liberais dizem que é preciso permitir que os gays sejam abertamente gays e que, por isso, é preciso mudar a doutrina. A direita diz que todos os problemas existem porque há gays e, por isso, é preciso tirar os gays da Igreja e arranjar forma de eles não entrarem nos seminários. Em primeiro lugar, impedir os gays de entrarem no seminário é ilegal. Em Portugal, em Espanha, em França, em Itália. Isso é discriminação.

Ratio Fundamentalis, documento com as regras para a formação dos padres, diz explicitamente que as pessoas com tendências homossexuais não devem ser admitidas nos seminários.
Sim, mas isso é ilegal. Se um padre ataca um seminarista por causa disso, o seminarista vai receber uma grande indemnização por discriminação. Não se pode discriminar os homossexuais hoje. Isso é uma regra em Portugal, tal como em França, porque a homossexualidade não é um crime. Já não é um problema. É só uma escolha ou, pelo menos, uma opção de vida. Mas, de facto, ambas as teorias estão erradas. Se seguirmos a direita, imaginando que é mesmo possível impedir os gays de entrarem no seminário, não há padres, de todo. Os heterossexuais já não querem ser padres. Primeiro, porque é muito homoerótico e, em segundo, porque não querem ser celibatários.

Esse é um dos motivos para a atual crise de vocações que a Igreja atravessa?
Claro. O livro também explica isso. Os heterossexuais deixam a Igreja porque querem casar. Hoje, uma pessoa heterossexual normal não aceita a castidade, porque a castidade é profundamente contranatura. Já os homossexuais vêm cada vez menos, porque a Igreja é tão homofóbica e, mais do que isso, têm outras opções. Todas estas histórias estão ligadas ao facto de — e é preciso perceber isto para perceber a Igreja — todas as pessoas de que estou a falar têm mais de 70 anos de idade. Tinham 20 anos nas décadas de 50 e 60. O mundo deles é a homossexualidade dos anos 50 e dos anos 60. Não podemos perceber isto se não pensarmos no que era a homossexualidade nesta altura. Na altura, era um crime. Por isso, a Igreja tornou-se num local seguro para os gays.

Nos anos 50 e 60, "a Igreja tornou-se num local seguro para os gays"
Frédéric Martel

Onde podiam reprimir a homossexualidade?
Era um local seguro, e não um sítio onde reprimiam a homossexualidade. Uma pessoa gay numa pequena vila em Portugal, ou mesmo numa família burguesa com muito dinheiro, era a vergonha da família. A estratégia era muito simples: fosse de uma família de uma pequena vila ou de uma família burguesa, se um homem não estivesse muito confortável com raparigas, não quisesse casar, fosse alvo de piadas sobre ele e ele, muitas vezes, nem soubesse que era gay, mas pensasse que algo de errado se passava com ele, acabava por ser padre. Isto é uma regra sociológica. Penso que o meu livro é sociológico. Certamente, não é um livro académico, como sabe está escrito de uma forma mais jornalística. Mas as regras são sociológicas. E a Igreja recruta e atrai pessoas gays desde sempre.

E porque é que se tornam tão homofóbicas, como diz?
É muito normal. Desde sempre que os gays, quando querem mentir sobre a o facto de serem gays, são muito homofóbicos. É uma forma típica de agir. Protege-se o segredo dizendo que se odeia gays. Foi assim desde sempre. Pense no exemplo de [John Edgar] Hoover, o antigo diretor do FBI. Ele fazia ficheiros sobre todos os gays para os chantangear — e descobriu-se mais tarde que ele vivia com o namorado. Por isso, ser extremamente homofóbico é, em geral, a atitude que se toma — e é essa a regra número um na Igreja. É assim que eu os reconheço. Ficam encurralados comigo. Porque eu mostro-lhes que, se são homofóbicos, é mais provável que sejam eles os gays. Conheci uma série de cardeais que estão muito confortáveis com este assunto. Por exemplo [Jun José] Omella y Omella, em Barcelona, ou [Walter] Kasper, em Roma. Fala-se com eles e são muito pacíficos. Dizem que é preciso mudar. Temos uma pessoa heterossexual à nossa frente. Mas quando eles dizem “é horrível, terrível”, e, ao mesmo tempo, querem ser nossos amigos, aí já se sabe que há um problema.

Isso quer dizer, como perguntava há pouco, que existem mais clérigos homossexuais ou gay-friendly nas alas mais tradicionalistas da Igreja?
Não são gay-friendly. São anti-gay, mas são gays. São gays homofóbicos.

E quando dizem que a homossexualidade é um dos grandes problemas da Igreja, acreditam no que dizem?
É verdade. Não diria problema, mas penso que a homossexualidade é a matriz do sistema. Especialmente no Vaticano.

Estive no Vaticano na semana passada na conferência de imprensa em que se perguntou pela primeira vez a responsáveis do Vaticano sobre o livro. A reação foi de riso e de classificar o livro como mais um livro-escândalo a que o Vaticano está habituado. Como interpreta esta reação?
Porque é que eles dizem sempre que não estão a discutir o encobrimento, mas sim a discutir o crime? Porque é que é que eles dizem que não é uma coisa sistemática, uma regra sociológica, mas sim um problema com indivíduos específicos? Isso está errado.

O livro que não abalou o Vaticano no dia da cimeira sobre os abusos sexuais

Esta cimeira focou-se essencialmente na questão do encobrimento, na responsabilidade dos bispos.
Sim, mas [o arcebispo Charles] Scicluna disse, em resposta a uma pergunta sobre o meu livro, que não estava a julgar o encobrimento, mas sim o crime. Acho que ele está errado. O encobrimento é que permite que os crimes ocorram. Deviam estar a julgar os dois. Mas porque é que eles não querem discutir este tipo de livros? Porque sabem que é a chave. Eles próprios são, provavelmente, gay. Não sei relativamente a x ou y, mas não querem discutir isso porque sabem que o próximo passo vai ser uma discussão sobre a doutrina.

Tem lido as críticas ao seu livro na imprensa católica? Há muitas reações abertamente negativas sobre o livro. Recebeu reações da parte da Igreja, em privado, diferentes destas posições públicas?
Na imprensa católica, honestamente, até agora, recebemos uma grande quantidade de artigos com sentimentos muito diversos. Há pessoas muito duras contra mim, há pessoas muito favoráveis. Em França, a imprensa católica apoiou o livro, dizendo: “Ok, é muito triste, mas temos de ouvir, porque o problema é tão grande que temos de perceber o que se passa”. Depois, há uma série de pessoas da direita, americanos, que estão muito chateados com o livro. E também há muitos dominicanos, jesuítas, que estão muito bem com o livro. É uma discussão global, neste momento. Dentro da Igreja, as minhas fontes, no geral, estão ok. Disseram-me que foram bem tratadas, que as citações estão bem feitas, que eu disse o que eles disseram, que não revelei o nome deles tal como combinado. As minhas fontes estão muito confortáveis. Claro que há algum cardeal que disse que nunca disse aquilo. Um até disse que nunca se encontrou comigo. Mas eu tenho a fotografia, a gravação e o email com a confirmação. Eles mentem muito e também fazem um encobrimento à volta do livro. O que mostra como eles são.

O Frédéric fala de hipocrisia no livro. Por isso é que queria perceber se o feedback que lhe foi dado em privado foi diferente daquele dado em público.
Sim, claro. Não posso revelar, porque é privado. Mas há uma pessoa que me escreveu uma carta muito amigável e que, quando foi entrevistado, disse o oposto. Basicamente, disse na carta que todos eles eram gay, e ele próprio era gay, e na entrevista diz que é um exagero e que não há assim tantos gays. Também os vaticanistas. Quando eu estive em Roma e falava de dois ou três cardeais, e eles davam-me logo cinco que também eram gay. Nem os mencionei. Eles expõem toda a gente. Mas depois, quando estão a falar em público, dizem que não vale a pena falar sobre este tipo de assuntos. Ao mesmo tempo, o Marco Politi, por exemplo, foi muito amigável para mim em várias entrevistas, o Gianluigi Nuzzi escreveu um artigo muito amigável em dois sítios. É assim, é um debate.

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