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Marcelo Rebelo de Sousa durante uma receção ao Papa Francisco em 2017
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Marcelo Rebelo de Sousa durante uma receção ao Papa Francisco em 2017

JOAO RELAS/LUSA

Marcelo Rebelo de Sousa durante uma receção ao Papa Francisco em 2017

JOAO RELAS/LUSA

Eutanásia. A rígida doutrina da Igreja sobre a democracia pode deixar um Presidente católico à beira do dilema moral

Para a doutrina da Igreja não há dúvidas: a democracia é boa, desde que não produza uma lei que viola a moral cristã. Com a eutanásia em mãos pela terceira vez, o que vai fazer o católico Marcelo?

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Marcelo Rebelo de Sousa assumiu sempre que é católico — e que a sua fé é uma das bússolas morais a que recorre no exercício das funções presidenciais. Em 2017, numa entrevista à Rádio Renascença a poucas semanas de receber o Papa Francisco em Portugal, o Presidente da República assumia que ia receber o líder da Igreja Católica “numa dupla pele”, participando nas celebrações não só como chefe de Estado, mas também como fiel católico.

Quando foi questionado sobre se a sua fé era “algo que se põe de lado” quando estão em causa as funções de Presidente, Marcelo foi perentório: “Isso nunca se põe de lado.” Mesmo admitindo que “o Presidente tem de ter a noção de que representa todos”, Marcelo reiterou que “nunca deixa de ser o que é”. Nos momentos em que se visse confrontado com a necessidade de tomar decisões potencialmente complexas do ponto de vista da moral católica — como acontece agora com a questão da eutanásia —, a solução de Marcelo seria o diálogo: “Ao formular a minha opinião, não é apenas a opinião do católico, é a opinião de alguém que olha para aquilo que especialistas com diferentes formações dizem acerca do problema em causa.”

Não é apenas a opinião do católico, mas é também a opinião do católico — faceta que Marcelo Rebelo de Sousa recusa pôr de lado no exercício das funções presidenciais e que, agora, poderá estar no centro de um dilema moral para o Presidente da República.

A lei que despenaliza a morte medicamente assistida em Portugal foi aprovada pela terceira vez pelo Parlamento há uma semana e deverá chegar nos próximos dias à mesa de trabalho de Marcelo Rebelo de Sousa, a quem caberá decidir os próximos passos — promulga, veta politicamente o diploma ou recorre ao Tribunal Constitucional, suscitando a fiscalização preventiva da sua constitucionalidade.

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Igreja considera eutanásia “moralmente inadmissível”

Para a Igreja, a questão é simples: a eutanásia é pura e simplesmente inadmissível, em qualquer situação, uma vez que, com a sua legalização, “é quebrado o princípio ético fundamental que se traduz na proibição de provocar intencionalmente a morte”.

“Ao apresentar a morte provocada como resposta e solução para as pessoas que sofrem devido a doenças, em fase terminal ou não, ou ainda devido a deficiências graves, o Estado e os serviços de saúde veiculam uma perigosa mensagem a estas pessoas que, em situação de desespero, podem ser levadas a desistir de viver”, disse a Conferência Episcopal no seu último comunicado. “A resposta de uma sociedade adulta e esclarecida ao sofrimento, à dor e ao desespero não é abandonar quem sofre e aqueles que os acompanham, mas confortar, cuidar e amar para restaurar a esperança e dignificar a vida humana até ao seu fim natural. A eutanásia e o suicídio assistido constituem graves ameaças para a humanidade.”

De facto, para um fiel que queira seguir à linha todos os ensinamentos da Igreja Católica, não restam grandes dúvidas sobre qual é o magistério da Igreja sobre o assunto.

"A eutanásia voluntária, quaisquer que sejam as formas e os motivos, é um homicídio."
Catecismo da Igreja Católica

A posição formal, fechada e definitiva da instituição sobre a eutanásia está plasmada com palavras duríssimas na alínea 2277 do Catecismo da Igreja Católica, o principal documento doutrinal da Igreja: “Quaisquer que sejam os motivos e os meios, a eutanásia directa consiste em pôr fim à vida de pessoas deficientes, doentes ou moribundas. É moralmente inaceitável. Assim, uma ação ou uma omissão que, de per si ou na intenção, cause a morte com o fim de suprimir o sofrimento, constitui um assassínio gravemente contrário à dignidade da pessoa humana e ao respeito do Deus vivo, seu Criador. O erro de juízo, em que se pode ter caído de boa fé, não muda a natureza do acto homicida, o qual deve sempre ser condenado e posto de parte.”

Mais à frente, no resumo, o Catecismo declara sem meias palavras que “a eutanásia voluntária, quaisquer que sejam as formas e os motivos, é um homicídio”.

O Vaticano tem até lembrado como a eutanásia é contrária à versão original do Juramento de Hipócrates, sob o qual os médicos prometiam: “Mesmo instado, não darei droga mortífera nem a aconselharei.” A versão atualmente usada pelos médicos, embora mencione o “respeito absoluto pela vida humana”, não contém uma formulação explícita contra a eutanásia ou o aborto.

Em vários momentos ao longo das últimas décadas, os papas foram chamados a pronunciar-se sobre a eutanásia. Por exemplo, o papa Pio XII, num discurso proferido em 1957 perante uma assembleia de médicos, reafirmou que a eutanásia era ilícita, embora tenha defendido a “proporcionalidade dos tratamentos”, ou seja, que os médicos deveriam evitar a “obstinação terapêutica” — o prolongamento artificial da vida em situações limite.

Parlamento aprova despenalização da eutanásia. Lei nas mãos de Marcelo

No tempo dos papas João XXIII e Paulo VI, durante o Concílio Vaticano II — o acontecimento definidor da Igreja contemporânea —, o tema da eutanásia voltou a ser debatido. Na constituição pastoral Gaudium et Spes, um dos textos fundamentais do concílio, que versa sobre a relação da Igreja Católica com o mundo contemporâneo, a eutanásia e o suicídio voluntário são descritas como “infames” por se oporem à vida e são colocadas na mesma categoria do homicídio, do genocídio, do aborto, da tortura física e mental, da prisão arbitrária, da escravidão e da prostituição. “Todas estas coisas e outras semelhantes são infamantes; ao mesmo tempo que corrompem a civilização humana, desonram mais aqueles que assim procedem, do que os que padecem injustamente; e ofendem gravemente a honra devida ao Criador.”

Mais recentemente, os três papas do século XXI — João Paulo II, Bento XVI e Francisco — falaram várias vezes sobre a eutanásia. O polaco, num documento de 1985, classificou o propósito de provocar a morte antes do tempo natural como “absurdo e desumano”, mesmo quando parece “lógico e humano”, naquilo que era visto como “um dos sintomas mais alarmantes da cultura de morte que avança sobretudo nas sociedades do bem-estar”. Já o alemão, num discurso de 2007 perante os participantes numa conferência sobre a pastoral da saúde, posicionou-se contra a eutanásia, vista como “uma libertação” do “desafio da doença”, em vez de ser dado aos doentes um acompanhamento que lhes permite viver “de modo consciente e humano o último percurso da existência terrena”.

O Papa Francisco, por seu turno, rejeitou em 2014 as ideias contemporâneas de legitimação da eutanásia, do aborto e de outras práticas que a Igreja não admite: “O pensamento dominante propõe por vezes uma ‘falsa compaixão’, que considera uma ajuda para a mulher favorecer o aborto, um ato de dignidade proporcionar a eutanásia, uma conquista científica ‘produzir’ um filho considerado um direito em vez de o acolher como dom; ou usar vidas humanas como cobaias de laboratório presumivelmente para salvar outras.”

Entre os documentos oficiais da doutrina católica, os discursos dos papas e os múltiplos textos produzidos por teólogos cristãos ao longo das décadas, as fontes para compreender a posição da Igreja Católica sobre a questão da eutanásia são muitas —  e, dependendo da convicção com que cada um adere à fé católica, podem ter uma influência maior ou menor na formação da opinião. O dilema moral surge quando o fiel em busca de decidir a sua opinião não é um cidadão qualquer, mas o Presidente da República.

Deputados votam a favor da lei da despenalização da morte medicamente assistida, na Assembleia da República,em Lisboa, 09 dezembro 2022. MANUEL DE ALMEIDA/LUSA

Lei que despenaliza a morte assistida foi aprovada pela terceira vez no Parlamento na última sexta-feira

MANUEL DE ALMEIDA/LUSA

Na condição de católico praticante, com uma fé assumida e com uma adesão convicta à doutrina da Igreja, Marcelo Rebelo de Sousa está entre os destinatários centrais dos ensinamentos da Igreja Católica sobre a questão da eutanásia. Na qualidade de Presidente da República, cabe-lhe o papel de promulgar ou não as propostas legislativas que chegam de um Parlamento eleito pelos cidadãos portugueses e que não reflete necessariamente as posições do catolicismo. A eutanásia pode tornar-se num caso bicudo para Marcelo: é a terceira vez que uma maioria parlamentar aprova uma proposta que, pelo menos em teoria, viola a doutrina da Igreja Católica.

Na ponderação dos fatores, Marcelo Rebelo de Sousa poderá perguntar-se se é um Presidente católico ou um católico Presidente. Afinal, o que diz a Igreja sobre o lugar que deve ocupar a consciência religiosa de um católico no momento em que assume um cargo político numa democracia onde há pluralidade de opiniões? Para a Igreja Católica, a democracia está longe de ser um valor absoluto e não é inquestionável: sempre que a democracia conduz a uma lei que viola a moralidade cristã, então não serve.

“Não se pode mitificar a democracia até fazer dela o substituto da moralidade”

Em vários momentos ao longo das últimas décadas, a Igreja Católica foi chamada a pronunciar-se formalmente sobre esta questão central. Um dos primeiros textos contemporâneos a debruçar-se sobre o assunto foi a encíclica Evangelium Vitae, assinada pelo Papa João Paulo II no início de 1995, acerca da doutrina católica central da defesa da vida humana. Em linhas gerais, o texto reafirmava a doutrina da Igreja contra o aborto e a eutanásia, que já fora claramente redigida no Concílio Vaticano II. Contudo, como escreveu o frade dominicano irlandês Vivan Boland em 1999, a década de 1990 apresentava novos desafios à Igreja no que toca à defesa da vida: era um novo “clima cultural” que incluía “um novo modo de considerar a vida e as relações” e que se traduzia na aceitação e na defesa de “ações que até muito recentemente seriam condenadas por todos os mestres religiosos e rejeitadas pela maioria das pessoas como crimes”.

As novas abordagens a assuntos como o aborto e a eutanásia estavam na mira da Igreja Católica: no caso do aborto, o tema foi amplamente discutido desde o início do século XX, com diferentes leis em debate em todo o mundo; no caso da eutanásia, 1995 foi justamente o ano em que a primeira lei do mundo que permitia que um médico terminasse a vida de um paciente que estivesse em situação terminal caso este o solicitasse foi aprovada, no estado australiano do Território do Norte. Logo nos primeiros parágrafos do documento, considerado um dos principais textos de João Paulo II, o Papa polaco apontava o dedo às “novas ameaças à vida humana” e lamentava a existência de “amplos setores da opinião pública” que “justificam alguns crimes contra a vida em nome dos direitos da liberdade individual”.

“Uma trágica expressão de tudo isto, encontramo-la na difusão da eutanásia, ora mascarada e subreptícia, ora actuada abertamente e até legalizada”, escreveu João Paulo II, pronunciando-se explicitamente sobre o papel que os decisores políticos católicos teriam no debate. Aliás, João Paulo II dedicou todo um capítulo dessa encíclica à tensão entre “a lei civil e a lei moral”, escolhendo para título uma expressão retirada do livro bíblico dos Atos dos Apóstolos: “Importa mais obedecer a Deus do que aos homens.”

"Quando uma lei civil legitima o aborto ou a eutanásia, deixa, por isso mesmo, de ser uma verdadeira lei civil, moralmente obrigatória."
Papa João Paulo II, 1985

Nesse capítulo, João Paulo II sublinhava que “uma das características dos atuais atentados à vida humana (…) é a tendência para exigir a sua legitimação jurídica, como se fossem direitos que o Estado deveria, pelo menos em certas condições, reconhecer aos cidadãos”. “Outras vezes, julga-se que a lei civil não poderia exigir que todos os cidadãos vivessem segundo um grau de moralidade mais elevado do que aquele que eles mesmos reconhecem e condividem. Por isso, a lei deveria exprimir sempre a opinião e a vontade da maioria dos cidadãos e reconhecer-lhes também, pelo menos em certos casos extremos, o direito ao aborto e à eutanásia”, criticava ainda o Papa.

João Paulo II usou palavras duras para rejeitar a possibilidade de, mesmo em nome da democracia, serem tomadas decisões que a Igreja considera imorais. Continuando num registo de crítica às ideias que classifica como nocivas, João Paulo II escreveu que “certo é que, na cultura democrática do nosso tempo, se acha amplamente generalizada a opinião, segundo a qual o ordenamento jurídico de uma sociedade haveria de limitar-se a registar e acolher as convicções da maioria e, consequentemente, dever-se-ia construir apenas sobre aquilo que a própria maioria reconhece e vive como moral”.

“Desta maneira, todo o político deveria separar claramente, no seu agir, o âmbito da consciência privada e o do comportamento público”, concluiu João Paulo II, antes de atacar esta conclusão apontando a contradição aparente: “Por um lado, os indivíduos reivindicam para si a mais completa autonomia moral de decisão, e pedem que o Estado não assuma nem imponha qualquer conceção ética. (…) Mas por outro lado, pensa-se que, no desempenho das funções públicas e profissionais, o respeito pela liberdade alheia de escolha obrigaria cada qual a prescindir das próprias convicções para se colocar ao serviço de qualquer petição dos cidadãos, que as leis reconhecem e tutelam, aceitando como único critério moral no exercício das próprias funções aquilo que está estabelecido pelas mesmas leis.”

Para João Paulo II, não havia dúvidas: se um sistema democrático conduzir à aplicação de uma lei que contraria a moral cristã, então esse sistema está em erro e a lei é moralmente inválida. “Não se pode mitificar a democracia até fazer dela o substituto da moralidade ou a panaceia da imoralidade”, resumiu o Papa polaco. “Quando uma maioria parlamentar ou social decreta a legitimidade da eliminação, mesmo sob certas condições, da vida humana ainda não nascida, porventura não assume uma decisão ‘tirânica’ contra o ser humano mais débil e indefeso?”

Aliás, o Papa polaco escreveu mesmo que “as leis que autorizam e favorecem o aborto e a eutanásia colocam-se, pois, radicalmente não só contra o bem do indivíduo, mas também contra o bem comum e, por conseguinte, carecem totalmente de autêntica validade jurídica”. “Quando uma lei civil legitima o aborto ou a eutanásia, deixa, por isso mesmo, de ser uma verdadeira lei civil, moralmente obrigatória”, concluiu João Paulo II.

O documento de João Paulo II incluía, ainda, um conjunto de afirmações especificamente dirigidas aos católicos que ocupam cargos de decisão política, instruindo-os sobre como deviam agir quando confrontados com um problema de consciência em torno destes assuntos.

Pope John Paul II. visits Bavaria: Arrival with Archbishop Ratzinger in Munich

O Papa João Paulo II e o seu braço direito, o então cardeal Joseph Ratzinger, pronunciaram sobre a relação entre os políticos e a doutrina em vários momentos

picture alliance via Getty Image

Em primeiro lugar, escreveu João Paulo II, “no caso de uma lei intrinsecamente injusta, como aquela que admite o aborto ou a eutanásia, nunca é lícito conformar-se com ela”. O Papa polaco recordava, neste ponto, um documento anterior, produzido na década de 1970 pelo Vaticano apenas a propósito do aborto, no qual a Igreja afirmava explicitamente “que, seja lá o que for que as leis civis venham a estabelecer a este respeito, o homem não pode nunca submeter-se a uma lei intrinsecamente imoral (…). Ele não pode participar numa campanha de opinião em favor de uma lei de tal género, nem dar-lhe a própria adesão. Ele não poderá, menos ainda, colaborar na sua aplicação.”

Em segundo lugar, João Paulo II determinou que “os cristãos, como todos os homens de boa vontade, são chamados, sob grave dever de consciência, a não prestar a sua colaboração formal em ações que, apesar de admitidas pela legislação civil, estão em contraste com a lei de Deus”. “Na verdade, do ponto de vista moral, nunca é lícito cooperar formalmente no mal”, acrescentou. Aqui, o “mal” é usado pelo Papa genericamente, como expressão para caracterizar qualquer defesa do aborto ou da eutanásia.

Finalmente, o Papa polaco, entretanto canonizado pela Igreja Católica, faz um aviso concreto a todos os decisores políticos confrontados com dilemas éticos no exercício das suas responsabilidades. “Num regime democrático, onde as leis e as decisões se estabelecem sobre a base do consenso de muitos, pode atenuar-se na consciência dos indivíduos investidos de autoridade o sentido da responsabilidade pessoal”, escreveu João Paulo II. “Afirmo, uma vez mais, que uma norma que viola o direito natural de um inocente à vida é injusta e, como tal, não pode ter valor de lei. Por isso, renovo o meu veemente apelo a todos os políticos para não promulgarem leis que, ao menosprezarem a dignidade da pessoa, minam pela raiz a própria convivência social.”

Para a Igreja, nem todas as conceções do bem têm o mesmo valor

O ano de 2002 foi decisivo para o início do debate atual sobre a admissibilidade legal e moral da eutanásia. Foi o ano em que dois países europeus — os Países Baixos e a Bélgica — se tornaram os dois primeiros países do mundo a legalizar a prática. No caso holandês, a aprovação da nova lei pelo Parlamento foi o culminar de um debate de trinta anos que fez correr muita tinta, entre comparações com a Alemanha Nazi e uma forte oposição dos setores mais conservadores e religiosos da sociedade. Dois meses depois, foi a vez da Bélgica, onde a primeira lei, bastante restritiva, foi entretanto alterada para permitir a eutanásia por motivos psicológicos e também para menores de idade.

Justamente nesse ano, o Vaticano, por via da Congregação para a Doutrina da Fé (o organismo que sucedeu à Inquisição e que mantém as funções de guardião da fé católica), fez sair uma nota doutrinal sobre “a participação e comportamento dos católicos na vida política”. O documento foi especialmente redigido para os “políticos católicos” e para “todos os fiéis leigos chamados a tomar parte na vida pública e política nas sociedades democráticas”.

"Seja lá o que for que as leis civis venham a estabelecer a este respeito, o homem não pode nunca submeter-se a uma lei intrinsecamente imoral (...). Ele não pode participar numa campanha de opinião em favor de uma lei de tal género, nem dar-lhe a própria adesão. Ele não poderá, menos ainda, colaborar na sua aplicação."
Congregação para a Doutrina da Fé, 1974

Nesse documento, o Vaticano posicionou-se contra o “relativismo cultural” que “teoriza e defende um pluralismo ético” — no seio do qual surge a ideia de que “todas as conceções possíveis da vida” podem ter “o mesmo valor”.

“A liberdade política não é nem pode ser fundada sobre a ideia relativista, segundo a qual todas as concepções do bem do homem têm a mesma verdade e o mesmo valor, mas sobre o facto de que as actividades políticas visam, vez por vez, a realização extremamente concreta do verdadeiro bem humano e social, num contexto histórico, geográfico, económico, tecnológico e cultural bem preciso”, defendeu a Santa Sé em 2002. “Do concreto da realização e da diversidade das circunstâncias brota necessariamente a pluralidade de orientações e de soluções, que porém devem ser moralmente aceitáveis.”

À semelhança do que João Paulo II tinha feito em 2005, também neste documento doutrinário a Santa Sé afirmou que é a democracia, e não a ética, que deve ser relativizada. Se, por um lado, o Vaticano admite que “a via da democracia é a que melhor exprime a participação directa dos cidadãos nas escolhas políticas”, por outro lado, sublinha que “isso só é possível na medida em que exista, na sua base, uma reta concepção da pessoa”. E é aqui, diz o Vaticano, que é impossível admitir um sistema democrático que caminhe no sentido da legitimação do aborto ou da eutanásia.

“Assiste-se, ao invés, a tentativas legislativas que, sem se preocuparem com as consequências das mesmas para a existência e o futuro dos povos na formação da cultura e dos comportamentos sociais, visam quebrar a intangibilidade da vida humana. Os católicos, em tal emergência, têm o direito e o dever de intervir, apelando para o sentido mais profundo da vida e para a responsabilidade que todos têm perante a mesma. João Paulo II, na linha do perene ensinamento da Igreja, afirmou repetidas vezes que quantos se encontram diretamente empenhados nas esferas da representação legislativa têm a ‘clara obrigação de se opor’ a qualquer lei que represente um atentado à vida humana”, lê-se na nota do Vaticano. “Para eles, como para todo o católico, vale a impossibilidade de participar em campanhas de opinião em favor de semelhantes leis, não sendo a ninguém consentido apoiá-las com o próprio voto.”

Mais: “A consciência cristã bem formada não permite a ninguém favorecer, com o próprio voto, a atuação de um programa político ou de uma só lei, onde os conteúdos fundamentais da fé e da moral sejam subvertidos com a apresentação de propostas alternativas ou contrárias aos mesmos. Uma vez que a fé constitui como que uma unidade indivisível, não é lógico isolar um só dos seus conteúdos em prejuízo da totalidade da doutrina católica.”

Num parágrafo dirigido especificamente aos decisores políticos que enfrentam dilemas morais, o Vaticano não poupou nas palavras: “Quando a acção política se confronta com princípios morais que não admitem abdicações, excepções ou compromissos de qualquer espécie, é então que o empenho dos católicos se torna mais evidente e grávido de responsabilidade. Perante essas exigências éticas fundamentais e irrenunciáveis, os crentes têm, efectivamente, de saber que está em jogo a essência da ordem moral, que diz respeito ao bem integral da pessoa. É o caso das leis civis em matéria de aborto e de eutanásia.”

No mesmo parágrafo, o Vaticano explica que os políticos católicos também estão moralmente proibidos de apoiar ou aprovar o casamento entre pessoas do mesmo sexo — uma proibição que, eufemisticamente, é referida como a necessidade de salvaguardar “a tutela e promoção da família, fundada no matrimónio monogâmico entre pessoas de sexo diferente e protegida na sua unidade e estabilidade, perante as leis modernas em matéria divórcio: não se pode, de maneira nenhuma, pôr juridicamente no mesmo plano com a família outras formas de convivência, nem estas podem receber, como tais, um reconhecimento legal”.

"Quantos se encontram diretamente empenhados nas esferas da representação legislativa têm a ‘clara obrigação de se opor’ a qualquer lei que represente um atentado à vida humana. Para eles, como para todo o católico, vale a impossibilidade de participar em campanhas de opinião em favor de semelhantes leis, não sendo a ninguém consentido apoiá-las com o próprio voto."
Congregação para a Doutrina da Fé, 2002

Para a Santa Sé, é igualmente inadmissível que um político católico vote favoravelmente ou implemente políticas que violem a “garantia da liberdade de educação, que os pais têm em relação aos próprios filhos” (casos recentes em Portugal como os cortes dos contratos de associação para os colégios privados e a situação de uma família em Famalicão que recusou permitir a participação dos filhos numa disciplina de cidadania mereceram também posicionamentos fortes da parte da Igreja Católica), mas também a necessidade de proteção dos menores, o combate às “modernas formas de escravidão” (que incluem a droga e a prostituição, para a Igreja), a promoção de uma economia que respeite a justiça social e ainda a defesa da paz.

No entender da Igreja Católica, “não é consentido a nenhum fiel apelar para o princípio do pluralismo e da autonomia dos leigos em política, para favorecer soluções que comprometam ou atenuem a salvaguarda das exigências éticas fundamentais ao bem comum”. Além disso, o Vaticano insiste que não se pode sequer falar num conjunto de “valores confessionais” que apenas dizem respeito a quem tem fé: “Tais exigências éticas radicam-se no ser humano e pertencem à lei moral natural.” E também não se pode, diz o Vaticano, “negar que a política deve também regular-se por princípios que têm um valor absoluto próprio, precisamente por estarem ao serviço da dignidade da pessoa e do verdadeiro progresso humano.”

Neste contexto, é frequentemente evocado o conceito de laicidade do Estado para assegurar que a fé religiosa não interfere nas decisões democraticamente tomadas — mas o Vaticano antecipa essa discussão apelando a uma “clarificação” do termo.

“Para a doutrina moral católica, a laicidade entendida como autonomia da esfera civil e política da religiosa e eclesiástica — mas não da moral — é um valor adquirido e reconhecido pela Igreja, e faz parte do património de civilização já conseguido”, diz a Santa Sé. Se, por um lado, a independência das duas esferas é fundamental para uma democracia saudável, algo “completamente diferente é a questão do direito-dever dos cidadãos católicos, aliás como de todos os demais cidadãos, de procurar sinceramente a verdade e promover e defender com meios lícitos as verdades morais relativas à vida social, à justiça, à liberdade, ao respeito da vida e dos outros direitos da pessoa. O facto de algumas destas verdades serem também ensinadas pela Igreja não diminui a legitimidade civil e a ‘laicidade’ do empenho dos que com elas se identificam, independentemente do papel que a busca racional e a confirmação ditada pela fé tenham tido no seu reconhecimento por parte de cada cidadão.”

Escolher entre a fé e uma lei que permita o aborto ou a eutanásia

A discussão em torno da participação dos católicos na vida política ativa ganhou especial relevo nos Estados Unidos, marcados por uma profunda divisão social com base em assuntos fraturantes como o aborto, a eutanásia ou os direitos das pessoas LGBT, mas também o acesso às armas de fogo e o problema do racismo. É certo que, quando falamos da Igreja Católica, não nos ocorre de imediato a realidade norte-americana, onde as denominações protestantes estão em maioria, mas a verdade é que os EUA são uma das principais forças do mundo católico: com mais de 75 milhões de católicos, são o quarto país do mundo com mais fiéis, sendo a casa de 7% dos católicos do planeta. Na hierarquia, estão ainda mais bem representados: com 16 cardeais, os EUA são o segundo país com mais representantes no colégio cardinalício, apenas atrás dos 48 de Itália, historicamente sobre-representada devido à localização do Vaticano.

Nos últimos anos, as tensões sociais geradas pela polarização entre democratas e republicanos desenharam-se também no plano da religião, com os setores mais conservadores, que representam sensivelmente metade do país, a pugnarem por uma “América cristã” — onde não há, supostamente, lugar para quem defende o aborto e a eutanásia, por exemplo.

Nas eleições de 2004, em que o democrata John Kerry se apresentou a votos contra George W. Bush, que se recandidatava ao cargo de Presidente dos EUA com uma base de apoio reforçada devido ao modo como respondeu aos ataques terroristas do 11 de Setembro, os valores morais e as posições dos candidatos em relação a questões como o aborto e o casamento entre pessoas do mesmo sexo estiveram entre os temas mais debatidos. Em novembro desse ano, o editorial da revista evangélica Christianity Today perguntava: “Em quem votaria Jesus?” Nesse artigo, a revista mencionava uma das disputas eleitorais em destaque na altura: a eleição para o lugar de senador pelo estado do Illinois, disputada entre o republicano Alan Keyes e o democrata Barack Obama, à época uma estrela em ascensão. O argumento usado por Keyes para desqualificar o seu oponente era justamente o de que Jesus nunca votaria em Obama, já que o democrata tinha dado um voto favorável a uma lei pró-aborto no Senado estadual. Ainda assim, Obama ganhou mesmo a eleição e assumiu o seu lugar no Senado dos EUA em 2005, para quatro anos depois chegar à Casa Branca.

USA - Presidential Inauguration - Barack Obama Sworn in as President

Barack Obama fez o juramento presidencial com a mão sobre a Bíblia

Corbis via Getty Images

Em 2008, meses antes da eleição presidencial que viria a ganhar, o ainda senador Barack Obama deu uma entrevista à Christianity Today na qual falou justamente sobre esta fronteira entre a fé e as decisões políticas. “Sou cristão e sou um cristão devoto. Acredito na morte redentora e na ressurreição de Jesus Cristo. Acredito que a fé me dá um caminho para ser limpo do pecado e ter a vida eterna. Mas, mais importante, acredito no exemplo que Jesus deu ao alimentar os famintos, ao curar os doentes e ao dar prioridade aos mais pobres em vez dos poderosos”, disse Obama, para depois acrescentar: “Aceitar Jesus Cristo na minha vida tem sido um guia poderoso para o meu comportamento, para os meus valores e os meus ideais.”

Nessa entrevista, essencialmente destinada a atrair o voto dos cristãos, Barack Obama falou sobre a sua posição em relação ao aborto, adotando uma postura intermédia: a prioridade, disse, deveria ser “tornar o aborto menos frequente”, através da educação sexual e da diminuição do número de gravidezes indesejadas, mas deixando sempre a porta aberta à legalidade do aborto em situações excecionais.

Durante a campanha eleitoral de 2004, com os temas da moral religiosa a entrarem no debate político, o próprio Vaticano interveio na discussão pública americana. Na altura, o então cardeal Joseph Ratzinger, à época prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé e braço direito do já debilitado Papa João Paulo II, enviou aos bispos americanos uma nota doutrinal sobre a “dignidade para receber a sagrada comunhão”. Nesse documento, Ratzinger explicava aos bispos quais os critérios que deviam ser seguidos para admitir ou recusar a comunhão a um católico — e, também naquele texto, a eutanásia e o aborto foram temas centrais.

Na prática, qualquer católico que violasse os princípios que João Paulo II tinha determinado naquela encíclica de 1995, incluindo apoiar, implementar ou cumprir uma lei que permita a eutanásia e o aborto, estava a incorrer em pecado grave e ficava, por isso, proibido de receber a comunhão. Curiosamente, este foi o documento em que a Igreja Católica afirmou, preto no branco, que o aborto e a eutanásia são questões morais mais relevantes do que a guerra ou a pena de morte.

"Pode haver uma legítima diversidade de opiniões entre os católicos sobre a guerra e sobre a aplicação da pena de morte, mas não sobre o aborto e a eutanásia."
Cardeal Joseph Ratzinger, 2004

“Nem todos os assuntos morais têm o mesmo peso moral que o aborto e a eutanásia”, escreveu o futuro Papa Bento XVI em 2004. “Por exemplo, se um católico discordar do Papa sobre a aplicação da pena de morte ou da decisão de declarar guerra, não será, por essa razão, considerado indigno de se apresentar para receber a sagrada comunhão. Embora a Igreja exorte as autoridades civis a procurar a paz, não a guerra, e a usar de discrição e misericórdia na punição dos criminosos, pode ainda ser admissível recorrer às armas para repelir um agressor ou recorrer à pena capital. Pode haver uma legítima diversidade de opiniões entre os católicos sobre a guerra e sobre a aplicação da pena de morte, mas não sobre o aborto e a eutanásia.”

No texto, Ratzinger não deixou qualquer margem para dúvidas: um político tem mesmo de escolher entre estar em comunhão com a Igreja Católica e aprovar uma lei que permita o aborto ou a eutanásia. “No que toca ao grave pecado do aborto ou da eutanásia, quando a cooperação formal da pessoa se torna manifesta (o que é entendido, no caso de um político católico, como a sua campanha consistente e voto a favor de leis permissivas do aborto e da eutanásia), o seu pastor deve encontrar-se com ele, instruí-lo sobre a doutrina da Igreja, informá-lo de que não se deve apresentar à sagrada comunhão até terminar a situação objetiva de pecado, e avisá-lo de que, de outra maneira, ser-lhe-á negada a eucaristia”, escreveu Ratzinger. Ou seja: o político que decida a favor do aborto ou da eutanásia fica fora da comunhão dos fiéis católicos.

A tensão entre Joe Biden e os bispos americanos

As tensões político-religiosas em torno dos assuntos fraturantes da moral cristã aprofundaram-se nos últimos cinco anos, com a eleição de Donald Trump, que apostou no conservadorismo religioso para fortalecer a sua base de apoio entre os republicanos. Trump foi, por exemplo, o primeiro Presidente em funções a participar na Marcha pela Vida, manifestação anual contra o aborto — e foram as suas escolhas para juízes do Supremo Tribunal que estiveram na origem da recente reversão do precedente jurídico que garantia o direito constitucional ao aborto.

As eleições presidenciais de 2020 vieram intensificar ainda mais a divisão cultural e acirrar os ânimos político-religiosos: de um lado, o republicano Donald Trump, o homem cujas ideias conservadoras agradavam aos setores mais tradicionalistas (com grande expressão na Igreja americana), mas que se identificava com o protestantismo; do outro lado, o democrata Joe Biden, católico romano, mas que defendia a implementação de legislação federal destinada a proteger o direito ao aborto, um dos temas mais divisivos da política americana — onde o juramento presidencial é tradicionalmente feito com a mão colocada sobre a Bíblia e que pode terminar com a fórmula So Help Me God.

Posição do católico Biden sobre o aborto aprofunda discórdias na Igreja no dia da tomada de posse

Biden não só não escondeu a sua fé católica como a usou para angariar votos entre os fiéis e tornou-se no segundo Presidente católico da história dos EUA, depois de John Kennedy. Contudo, a sua relação com a hierarquia da Igreja Católica americana foi tensa logo desde o primeiro momento, quando a Conferência Episcopal dos EUA emitiu um comunicado de saudação a Biden que lhe apontava várias falhas morais. No comunicado, a palavra “aborto” apareceu oito vezes, o dobro das referências aos pobres e à pobreza, prioridades do Papa Francisco, e quatro vezes mais do que as referências à luta contra a pena de morte. O comunicado gerou grande polémica até entre os bispos americanos, profundamente divididos entre progressistas e conservadores.

US President Biden Arrives At Vatican To Meet Pope Francis

Joe Biden é o segundo Presidente dos Estados Unidos que se identifica como católico romano

Getty Images

Poucos meses depois de Joe Biden entrar em funções, os bispos americanos preparavam-se para dar um passo em frente no confronto com Biden, aprovando uma norma interna que proibia todos os políticos apoiantes do aborto de comungar, quando o Vaticano interveio em defesa de Biden.

Na guerra entre Joe Biden e os bispos, o Vaticano interveio para defender o Presidente dos EUA

Para os bispos americanos, não era suficiente que Joe Biden fosse católico praticante e guardasse a devoção para a vida privada. “Como é que ele pode dizer que é um católico devoto e fazer estas coisas que são contrárias ao ensinamento da Igreja?”, questionou na altura o arcebispo de Kansas City, Joseph Naumann, o presidente da comissão episcopal americana responsável pelas questões de doutrina. A pergunta de Naumann resumia o sentimento de grande parte da ala conservadora. A partir do Vaticano, o Papa Francisco acompanhou a disputa e interveio, através de uma carta assinada pelo cardeal Luis Ladaria, jesuíta espanhol que lidera o Dicastério para a Doutrina da Fé. Nessa carta, Ladaria pediu “diálogo” e “unidade”, lembrando que alinhar numa política “contenciosa” poderia “ter o efeito oposto e tornar-se numa fonte de discórdia”. Em vez de decretarem proibições gerais, os bispos deveriam conversar com os políticos católicos pró-aborto sobre o facto de a sua posição ser inconciliável com a doutrina católica, apelando à sua responsabilidade moral num espírito de diálogo.

O Presidente religioso garante que não vai impor a sua convicção

No caso português, a convivência entre as esferas da política e da religião tem sido relativamente pacífica. É frequente dizer-se que o Estado português é laico — e, embora essa expressão não surja na Constituição portuguesa, a verdade é que a lei fundamental do país protege ambas esferas uma da outra. Por um lado, no artigo 41.º, é protegida a liberdade de consciência, de religião e de culto, tida como “inviolável”. As igrejas e comunidades religiosas são livres e independentes do Estado e a objeção de consciência é protegida por lei. Por outro lado, o artigo 43.º protege o Estado da interferência da religião, salientando, por exemplo, que “o Estado não pode programar a educação e a cultura segundo quaisquer diretrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas”.

Ainda assim, ao longo dos últimos anos, a Igreja Católica e outras confissões religiosas têm tentado pressionar os decisores políticos no sentido de não avançar com uma legislação que permita a eutanásia — ou, no limite, de devolver a decisão aos portugueses através da realização de um referendo. Em maio de 2018, quando um conjunto de projetos para despenalizar a eutanásia apresentados ao Parlamento estavam em discussão, um grupo de líderes de oito religiões, incluindo a Igreja Católica, a Aliança Evangélica e a Comunidade Islâmica, reuniu-se com Marcelo Rebelo de Sousa para pressionar o Presidente da República a não aprovar a eutanásia, classificada como um “retrocesso civilizacional”. Dessa vez, a eutanásia seria chumbada pelo Parlamento, mas a discussão manteve-se em aberto para o futuro.

Em novembro de 2019, numa conferência organizada pelo movimento católico Comunhão e Libertação, Marcelo Rebelo de Sousa falou acerca da sua visão sobre a eutanásia à luz da fé. “Telefonou-me uma jornalista esta semana a perguntar como é que me vou sentir perante estas leis. Eu respondi que me vou sentir muito bem. O problema é saber exatamente o que se defende, o que se pensa, aquilo em que se acredita, depois deixo fluir os acontecimentos”, disse Marcelo. “Eu confesso que sou um bocadinho providencialista. Admito que se possa ser cristão sem o ser, mas eu sou. Vejo sinais quando estamos atentos em momentos cruciais da nossa vida.”

Numa intervenção em que vincou a sua fé na ressurreição de Jesus Cristo, Marcelo Rebelo de Sousa afirmou mesmo: “Há de chegar uma altura em que há que tomar uma decisão, dizer uma palavra, definir uma atitude. Haverá quem defina outra, quem tenha outra palavra. É essa capacidade de fé, de esperança, que está presente em toda a nossa vida.” Adotando a linguagem habitualmente usada pela Igreja Católica para se referir ao fim da vida e para recusar a eutanásia, Marcelo sublinhou que “não há ressurreição sem sofrimento e morte”.

"E hoje a publicidade na televisão e nas redes sociais querem-nos vender um ser humano sem sacrifício, sem sofrimento e sem morte. Não existe, como não existe ser perfeito. Querem-nos vender isso. O que existe é a Via Sacra: a Via Sacra de São João Paulo II, de cada um de vocês, que conduz à ressurreição."
Marcelo Rebelo de Sousa, 2019

“E hoje a publicidade na televisão e nas redes sociais querem-nos vender um ser humano sem sacrifício, sem sofrimento e sem morte. Não existe, como não existe ser perfeito. Querem-nos vender isso”, disse. “O que existe é a Via Sacra: a Via Sacra de São João Paulo II, de cada um de vocês, que conduz à ressurreição.”

Já depois daquela intervenção, com a discussão da eutanásia de novo em cima da mesa, vieram novos apelos da esfera religiosa. Em fevereiro de 2020, o mesmo Grupo de Trabalho Inter-Religioso para as Questões de Saúde voltou a pronunciar-se contra a possibilidade de legalização da eutanásia e a pedir uma reunião urgente com Marcelo Rebelo de Sousa. Um ano depois, após a primeira aprovação da legislação no Parlamento, a Associação dos Juristas Católicos pediu ao Presidente da República que pedisse a fiscalização preventiva da constitucionalidade da lei ao Tribunal Constitucional.

Eutanásia. Juristas católicos pedem a Marcelo que suscite a fiscalização preventiva da lei

Em novembro de 2021, quando a eutanásia voltou a ser aprovada pelo Parlamento após o primeiro chumbo do Tribunal Constitucional, Marcelo Rebelo de Sousa tornou a fechar a porta à lei através de um veto político, alegando problemas de redação no texto final, no qual não era possível compreender exatamente qual o tipo de doenças que podem ser consideradas para o pedido de antecipação da morte. Questionado, na altura, sobre se o veto traduzia uma posição pessoal, Marcelo Rebelo de Sousa garantiu: “Isto não corresponde à minha posição pessoal. A minha convicção pessoal religiosa, ética, seria muito mais crítica em relação à lei, mas o Presidente não está lá para impor a sua convicção ética, religiosa ou política.”

Mais recentemente, durante uma intervenção na Universidade Católica Portuguesa a propósito do lançamento de um livro, Marcelo Rebelo de Sousa voltou a falar sobre a questão da eutanásia e sublinhou a crescente falta de influência da Igreja Católica nas decisões públicas, devido à ausência dos católicos do debate político — dando como exemplo atual precisamente a discussão em torno da eutanásia.

“O primeiro referendo sobre a interrupção voluntária da gravidez mostrara como se avizinhava uma viragem cultural numa sociedade na qual a Igreja Católica diminuíra a sua influência, sobretudo em setores de expressão cultural, na comunicação social, na juventude e nas decisões políticas nacionais, regionais e locais”, disse o Presidente da República. “E o segundo referendo sobre a IVG confirmou o processo vivido.”

Nos últimos anos, tornou-se “manifesta a mudança profunda na vida nacional”, especialmente visível “nos poderes públicos, nas leis, sua criação e aplicação”. Para Marcelo, o debate em torno da eutanásia é mais um exemplo.

“A chamada morte medicamente assistida constitui o mais recente exemplo deste processo de cultura cívica. E nem sequer é a atual ausência de moderados no palco político decisório — aliás, generalizada nas democracias que nos rodeiam — a grande causa do vivido”, afirmou o Presidente da República. “O dado determinante era outro: em todos os quadrantes, a menor presença ou relevância de católicos nas decisões coletivas passara a ser um traço comum.”

Marcelo Rebelo de Sousa assinalou ainda a “indiferença de bastantes deles perante debates mais relevantes”, como o do aborto ou o da eutanásia, motivados pela “recusa a abordar a substância, preferindo a forma, ou por resignação cívica ou por afastamento antissistémico”.

Segundo o Presidente da República, este afastamento dos católicos do debate público torna “mais espinhosas” as “magistraturas chamadas a arbitrar tópicos candentes nos quais a ausência quer dizer irrelevância cívica”.

“Com exceções, claro, e muito relevantes, mas cada vez mais circunscritas a clássicas áreas do posicionamento católico, não necessariamente às mais representativas nas decisões coletivas ou comunitárias”, rematou Marcelo, perante uma plateia onde estavam sentadas figuras como Cavaco Silva, Passos Coelho, Marques Mendes ou Ribeiro e Castro.

Aprovada pela terceira vez pelo Parlamento, a lei que despenaliza a eutanásia deverá chegar ao Palácio de Belém nos próximos dias — e Marcelo Rebelo de Sousa já indicou que não demorará muito tempo a tomar uma decisão.

Recorde-se que na primeira vez, em janeiro de 2021, Marcelo remeteu o texto para o Tribunal Constitucional, que chumbou a lei; na segunda vez, em novembro de 2021, foi o próprio Marcelo a vetar a proposta, alegando que vários conceitos não eram suficientemente claros, já que o texto usava expressões diferentes para definir o que era uma doença elegível para a aplicação da eutanásia.

Marcelo Rebelo de Sousa é católico e não esconde que a sua fé está presente na sua ação política

PAULO NOVAIS/LUSA

Nesses dois momentos, tal como aconteceu novamente agora, na terceira aprovação parlamentar, a posição da Igreja Católica, que recusa liminarmente a eutanásia e o suicídio assistido, entrou no debate. A Conferência Episcopal Portuguesa, que raramente se pronuncia sobre os assuntos da vida pública do país fora do ritmo das suas reuniões semestrais, emitiu vários comunicados ao longo dos últimos dois anos, lamentando a primeira aprovação da proposta, elogiando o chumbo do Tribunal Constitucional, voltando a lamentar o regresso do debate ao Parlamento e, mais recentemente, criticando a nova aprovação da proposta.

E o certo é que após dois chumbos, Marcelo volta a estar confrontado com as várias soluções e começa a desenhar-se um cenário de aprovação da eutanásia em Portugal — por exemplo, no caso de Marcelo Rebelo de Sousa devolver mais uma vez o texto ao Parlamento e os deputados reaprovarem a proposta sem alterações, forçando o Presidente a promulgar do diploma.

Questionado esta semana sobre o assunto, o Presidente da República confirmou que o “processo de maturação” da sua decisão tem sido enriquecido pelos contributos dos vários setores da sociedade civil.

Presidente de República prevê decidir rapidamente sobre o diploma da eutanásia e diz não ter dúvidas

“Não estou propriamente fechado numa campânula, numa cápsula, fora do mundo, alheio àquilo que setores muito diferentes da sociedade portuguesa, nesta como noutras leis, vão dizendo acerca da melhor solução para uma lei que está a atingir o momento final da saída do Parlamento”, disse o Presidente aos jornalistas. “Eu já tive ocasião de dizer que ao longo do processo – são sete anos com várias legislaturas – fui ouvindo e conhecendo tudo o que me chegava, entidades representativas de setores no domínio da saúde, grupos de cidadãos com posições diferentes, partidos políticos, instituições.”

De acordo com a Constituição, Marcelo Rebelo de Sousa tem um prazo de 20 dias, contados a partir do momento em que o decreto da Assembleia da República chegar ao Palácio de Belém, para promulgar ou vetar a proposta — ou então poderá optar, novamente, por pedir ao Tribunal Constitucional a avaliação da constitucionalidade da proposta, algo que a Associação de Juristas Católicos já veio defender. Se vetar o decreto, o Parlamento poderá voltar a discuti-lo ou então simplesmente tornar a votá-lo, confirmando-o sem alterações. Se houver um voto da maioria dos deputados que confirme o decreto, então Marcelo Rebelo de Sousa é obrigado a promulgar a lei no prazo de oito dias — mesmo que não concorde com ela.

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