Marcelo Rebelo de Sousa decidiu vetar o diploma que despenaliza a morte medicamente assistida alegando dois motivos: uma vez que, com esta nova redação da lei, os pacientes só podem pedir a eutanásia se estiverem fisicamente incapacitados de recorrer ao suicídio medicamente assistido, importa agora clarificar quem reconhece e atesta a tal impossibilidade e, por outro lado, quem deve supervisionar o processo.
Já depois de devolver o diploma ao Parlamento, o Presidente da República falou aos jornalistas e aproveitou para apelar à Assembleia da República que acolhesse as suas recomendações, dando uma garantia aos partidos que desenharem a lei: se corresponderem ao pedido de Marcelo, então promulgará a lei. “Se ela for de encontro àquilo que proponho, não vejo razão para não promulgar”, assegurou o Chefe de Estado. Os partidos estarão dispostos a isso?
Parlamento prepara-se para contornar Marcelo
Olhando para o que foram as declarações dos quatro partidos que desenharam e a aprovaram a lei — PS, IL, BE e PAN — a resposta a essa pergunta é: provavelmente, não. “Assim como sempre respeitámos uma e outra, e outra vez a decisão legítima do Presidente da República, os acórdãos do Tribunal Constitucional, chegou a vez de ver respeitada a vontade do Parlamento”, começou por garantir a socialista Isabel Moreira. Perante algumas dúvidas sobre o alcance das palavras da deputada socialista, o Observador confirmou que a intenção do PS é mesmo voltar a aprovar a lei, sem qualquer tipo de alteração.
“Do nosso lado haverá disponibilidade para confirmar o texto tal como foi devolvido à Assembleia da República”, concordou João Cotrim Figueiredo. “Agora há um momento em que tem que se sobrepor a vontade soberana daqueles que são os representantes eleitos do povo português que pela quarta vez votaram favoravelmente uma lei e que está na altura dessa maioria ser respeitada”, concluiu.
“É chegado o momento de confirmar a lei e depois concentramo-nos no passo seguinte, que será a sua regulamentação”, acrescentou Catarina Martins, do Bloco de Esquerda. “As dúvidas do senhor Presidente da República estão amplamente ultrapassadas”, argumentou também Inês Sousa Real, do PAN.
Ou seja, os quatro partidos demonstraram pouca ou nenhuma margem para alterar o que quer que seja na redação atual da lei. Contas feitas, basta uma maioria absoluta de deputados em efetividade de funções (116) para confirmar (sem qualquer alteração) o diploma alvo do veto político — e essa maioria existe no atual quadro parlamentar.
Quando é que o Parlamento se vai pronunciar
A nova apreciação do diploma acontece a partir do décimo quinto dia posterior ao da receção da mensagem fundamentada, em reunião marcada pelo Presidente da Assembleia, por sua iniciativa ou de um décimo dos deputados. Ou seja, se não fizerem alterações, os partidos poderão voltar a suscitar a votação do diploma algures a partir do início de maio.
Se aprovarem, contornando o veto político de Marcelo Rebelo de Sousa, o Presidente da República fica assim obrigado a promulgar a lei no prazo de oito dias. Contas feitas, e se os partidos mantiverem as suas intenções, a despenalização da morte medicamente assistida poderá estar confirmada algures na última quinzena de maio.
Marcelo reconheceu constitucionalidade e não pode voltar a vetar
Como o próprio reconheceu, se o Parlamento aprovar novamente o diploma sem introduzir qualquer alteração, o Presidente da República está constitucionalmente obrigado a promulgar a lei, uma vez que só pode utilizar uma vez o veto político. “Se Assembleia da República decidir confirmar, o Presidente é obrigado a promulgar. A Assembleia da República tem esse poder. Sem dramas”, reconheceu Marcelo.
O n.º 2 do artigo 136.º da Constituição da República determina que, em caso de veto de um decreto, “se a Assembleia da República confirmar o voto por maioria absoluta dos deputados em efetividade de funções, o Presidente da República deverá promulgar o diploma no prazo de oito dias a contar da sua receção” — é o caso da lei sobre a morte medicamente assistida.
Com o recurso ao veto político, o Presidente da República abdicou de enviar o diploma para o Tribunal Constitucional, pedindo o pedido de fiscalização preventivo. Em declarações aos jornalistas, Marcelo explicou que não o fez por considerar que a lei, tal como está desenhada, não seria considerada inconstitucional pelos juízes do Palácio Ratton. “Não há nenhum problema de inconstitucionalidade, não levanto nenhum dos problemas que foram vistos pelo Tribunal Constitucional.”
Processo pode não ficar por aqui
Se a lei for de facto aprovada pelo Parlamento e promulgada pelo Presidente da República, este pode não ser o fim do processo para a despenalização da morte medicamente assistida. Em primeiro lugar, os partidos terão de cuidar da sua regulamentação jurídica e garantir que existe uma efetiva operacionalização da lei da morte medicamente assistida.
Nas declarações que fez aos jornalistas, aliás, Marcelo Rebelo de Sousa alertou para isso mesmo, argumentando que se os partidos não seguirem as suas recomendações tal vai obrigar a um regulamento da lei “mais pormenorizado“, o que implica uma engenharia jurídica mais complexa.
Mais à frente, poderá colocar-se outro desafio: a fiscalização sucessiva junto do Tribunal Constitucional. Esse pedido pode ser solicitado pelo Presidente da República (improvável, atendendo às declarações de Marcelo), presidente da Assembleia da República, primeiro-ministro (igualmente improváveis, dadas as conhecidas posições de Augusto Santos Silva e António Costa), Provedor de Justiça, Procurador-Geral da República ou um décimo dos deputados.
É este último cenário que pode servir de oportunidade para os partidos que se opõem à despenalização da morte medicamente assistida. André Ventura, do Chega, mesmo não dispondo dos 23 deputados necessários para pedir essa fiscalização sucessiva, já desafiou o PSD a juntar-se nessa posição assim que a lei seja aprovada. Sem responder ao repto, Luís Montenegro voltou a defender um referendo à morte medicamente assistida — uma exigência inconsequente uma vez que a atual maioria parlamentar não permitiria a aprovação desse referendo.
A grande mudança na lei
Nesta última versão do diploma, ficou explícito que a morte medicamente assistida só pode ocorrer por eutanásia “quando o suicídio medicamente assistido for impossível por incapacidade física do doente”. E esclarece-se que os métodos possíveis são, então, a “autoadministração de fármacos letais” pelo doente ou a sua administração pelo médico ou profissional de saúde habilitado para isso, sob supervisão médica, mas quando “o doente estiver fisicamente incapacitado de autoadministrar fármacos letais”.
Ora, isto representa uma mudança estrutural na discussão política sobre a morte medicamente assistida. Recorde-se que, da última vez que o Tribunal Constitucional chumbou o diploma, juízes houve que questionaram se não estaria em causa o princípio de subsidiariedade na dupla questão do suicídio assistido e da eutanásia.
Para esses elementos do Tribunal Constitucional, a solução da eutanásia deveria ser subsidiária e não uma alternativa ao suicídio medicamente assistido. Ou seja: era do entendimento de alguns dos juízes constitucionais que a eutanásia deveria ser uma solução apenas e só quando o paciente não está em condições de cumprir um suicídio medicamente assistido. Para superar esse eventual novo chumbo do Tribunal Constitucional, o Parlamento achou por bem acautelar estas orientações e dar primazia ao suicídio medicamente assistido sobre a eutanásia — o que motivou este veto político de Marcelo Rebelo de Sousa.
Esta nova versão também recuperou o conceito de “sofrimento de grande intensidade”, definindo-o como “o sofrimento decorrente de doença grave e incurável” ou de “lesão definitiva de gravidade extrema”, “com grande intensidade, persistente, continuado ou permanente e considerado intolerável pela própria pessoa”, deixando cair os conceitos de “sofrimento físico, psicológico e espiritual” — que tinham contribuído para o chumbo do Tribunal Constitucional.
A intervenção médica no processo
Assim que o doente anuncia a vontade de recorrer à eutanásia, o processo é entregue ao médico orientador escolhido por si para o efeito. O médico orientador deve emitir, no prazo de 20 dias a contar da abertura do procedimento, um parecer sobre o pedido do doente. Em caso negativo, “o procedimento em curso é cancelado e dado por encerrado e o doente é informado dessa decisão e dos seus fundamentos pelo médico orientador, podendo o procedimento ser reiniciado com novo pedido de abertura”.
Em caso de parecer favorável, o doente é depois avaliado por um especialista da patologia em causa, que deve emitir um parecer num prazo máximo de 15 dias. Se rejeitado, o caso volta à estaca zero, podendo o doente pedir reabertura do processo.
“É obrigatório o parecer de um médico especialista em psiquiatria, sempre que ocorra uma das seguintes situações: a) O médico orientador e ou o médico especialista tenham dúvidas sobre a capacidade da pessoa para solicitar a morte medicamente assistida revelando uma vontade séria, livre e esclarecida; b) O médico orientador e ou o médico especialista admitam que a pessoa seja portadora de perturbação psíquica ou condição médica que afete a sua capacidade de tomar decisões”.
O psiquiatra tem então 15 dias no máximo para emitir um parecer. Em caso negativo, o processo volta ao início, podendo o doente pedir ou não reabertura. A seguir, o paciente passará pelo crivo da Comissão de Verificação e Avaliação dos Procedimentos Clínicos de Morte Medicamente Assistida (CVA), que tem cinco dias para se pronunciar.
Esta comissão deve ser composta por um jurista indicado pelo Conselho Superior da Magistratura, um jurista indicado pelo Conselho Superior do Ministério Público, um médico indicado pela Ordem dos Médicos, um enfermeiro indicado pela Ordem dos Enfermeiros e um especialista em bioética indicado pelo Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida.
Mais: “Quando a CVA tiver dúvidas sobre se estão reunidas as condições previstas (…) deve convocar os médicos envolvidos no procedimento para prestar declarações, podendo ainda solicitar a remessa de documentos adicionais que considere necessários. Em caso de parecer desfavorável da CVA, o procedimento em curso é cancelado”.
“No caso de o doente ficar inconsciente antes da data marcada para a realização do procedimento de morte medicamente assistida, o mesmo é interrompido e não se realiza, salvo se o doente recuperar a consciência e mantiver a sua decisão”, pode ainda ler-se.