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Corbis via Getty Images

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Partidos preparam forma de contornar chumbo da eutanásia. Marcelo tem forma de continuar a bloquear processo

Retirar classificação de sofrimento (físico, psicológico, espiritual) pode ajudar a contornar veto. Constitucionalistas divididos sobre solução. Marcelo pode bloquear processo com novas dúvidas.

Os partidos que desenharam a lei da eutanásia já estudam formas de ultrapassar o ‘chumbo’ do Tribunal Constitucional. A solução pode passar por retirar do diploma os conceitos de “sofrimento físico, psicológico e espiritual” na expectativa de que os juízes do Tribunal Constitucional deem luz verde à despenalização da morte medicamente assistida. No entanto, a última palavra será sempre de Marcelo Rebelo de Sousa, que pode levantar renovadas dúvidas sobre determinados aspetos do diploma.

Como o Observador explicava na segunda-feira, os partidos entenderam que estariam em condições de recorrer à eutanásia todos aqueles que estivessem a enfrentar um “sofrimento físico, psicológico e espiritual, decorrente de doença grave e incurável ou de lesão definitiva de gravidade extrema, com grande intensidade, persistente, continuado ou permanente e considerado intolerável pela própria pessoa”.

Ora, segundo a interpretação do Tribunal Constitucional, o uso do “e” levantava uma dúvida: alguém que queira antecipar a morte devia manifestar sinais de grande “sofrimento físico, psicológico e espiritual” ou ‘bastava’ que ‘apenas’ uma das condições (física, psicológica, espiritual) estivesse observada?

Os cinco partidos que se pronunciaram sobre a questão disseram rapidamente que a questão era cumulativa, ou seja, que tinham de estar verificadas as três tipologias de sofrimento. Sendo assim, o legislador teria de responder a outra dúvida, igualmente decisiva, do Tribunal Constitucional: como se define exatamente “sofrimento físico”. “Parece que a alusão ao caráter físico reclamará uma repercussão somática do sofrimento: a literatura vem ligando a expressão sofrimento físico à dor corporal ou, pelo menos sofrimento que advém da dor”, como explicaram os juízes do Tribunal Constitucional.

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Quatro juízes do Constitucional consideraram decisão da maioria injusta por se basear numa discussão sobre a palavra "e". No entanto, mesmo entre os que a consideram injusta, houve quem fizesse uma interpretação completamente diferente: a eutanásia podia ser pedida por quem manifestasse um sofrimento físico, psicológico ou espiritual de grande intensidade. O legislador não queria assim: o "e" é mesmo um "e", não um "ou".

Esvaziar o debate sobre o que é o “sofrimento físico”

Os partidos que assinaram a lei nunca entenderam o “sofrimento físico” como “dor corporal” no sentido mais restritivo do termo, como foram explicando ao Observador várias fontes ligadas ao processo legislativo. A título ilustrativo: alguém que esteja tetraplégico não sente “dor corporal”; mas está em “sofrimento físico” uma vez que, entre outras coisas, se encontra imóvel e perdeu a sua autonomia, argumentam as mesmas fontes.

Mesmo assim, e perante os alertas do Tribunal Constitucional, a questão poderia colocar-se sempre: como balizar o que é sofrimento físico e o que não é. Perante isto, sabe o Observador, a primeira leitura de alguns dos proponentes da lei é a de que, desde que retirados os três adjetivos (“físico”, “psicológico”, “espiritual”), será possível ultrapassar a questão levantada pelo Palácio Ratton.

Em entrevista ao Observador, no “Direto ao Assunto”, Isabel Moreira, deputada e o grande rosto do PS nesta matéria, sugeriu isso mesmo, sem, no entanto, se comprometer com uma solução definitiva. “Nunca esteve na mente do legislador que sofrimento físico fosse igual a dor física”, começou por notar. Confrontada com a hipótese de retirar esses três adjetivos, Isabel Moreira manteve a opção em aberto. “[A questão do] sofrimento de grande intensidade já passou no Tribunal Constitucional com uma formulação diferente, que não era tão exigente”, sugeriu.

Isabel Moreira referia-se à anterior redação da lei e ao respetivo acórdão do Tribunal Constitucional, que a declarou igualmente inconstitucional. Nessa altura, os partidos não explicitaram que o sofrimento de “grande intensidade” tinha de ser físico, psicológico e espiritual, não merecendo, de resto, qualquer censura por parte dos juízes conselheiros. Pelo contrário: nesta última decisão, há elementos do Tribunal Constitucional que questionam o porquê de o Parlamento português ter optado por entrar naquele terreno “espinhoso”.

“É difícil determinar o que levou o legislador a empreender tão espinhosa tarefa, tendo em conta que o acórdão [anterior] não [o] censurou neste aspeto. A verdade é que, para além de não ter logrado um conceito mais determinado, o que não lhe era de todo o modo exigível, o legislador português criou, suponho que inadvertidamente, uma nova indeterminação, esta grave e evitável”, escreveu Gonçalo Almeida Ribeiro na sua declaração de voto.

Ou seja, se, no anterior acórdão, os juízes do Constitucional entenderam que a referência à tipologia de sofrimento não era uma condição necessária à avaliação da constitucionalidade da lei, o raciocínio imediato dos partidos que defendem a despenalização da eutanásia é um: retirem-se os adjetivos (“físico”, “psicológico”, “espiritual”) e resolve-se quer a questão do cumulativo – porque os tipos de sofrimento deixam de constar da lei –, quer o debate em torno de “sofrimento físico” vs. “dor corporal”.

Esta formulação não foi exatamente uma originalidade.  Os partidos que desenharam o diploma recuperaram estes conceitos da lei de bases que regula o acesso aos cuidados paliativos, que utiliza, de facto, a formulação “sofrimento físico, psicológico, social e espiritual”.

Este caminho, que tinha sido de alguma forma apontado pelo próprio Tribunal Constitucional no acórdão anterior, mereceu as maiores reservas da maioria dos juízes nesta última decisão, precisamente por causa da verdadeira intenção do legislador: se queriam ou não que os três pressupostos (sofrimento físico, psicológico e espiritual) estivessem verificados em simultâneo uma vez que não é isso que acontece nos cuidados paliativos – ninguém é impedido de aceder por ‘só’ ter sofrimento físico, por exemplo.

Ao Observador, Isabel Moreira justificou esta aproximação à lei de bases do acesso aos cuidados paliativos precisamente por ter sido esse o caminho indicado pelo Constitucional. “[Esses pressupostos] estão e bem inspirados naqueles diplomas que o Tribunal achou por bem indicar [a legislação espanhola e a lei de bases do acesso aos cuidados paliativos”.

“Pelos vistos”, continuou Isabel Moreira, “o Tribunal queria que nos inspirássemos em tudo menos nesta questão”. “Tudo bem”, concede a deputada socialista, abrindo a porta a uma possível aproximação. A título de exemplo: a lei austríaca não utiliza qualquer adjetivo para balizar as várias dimensões do sofrimento de grande intensidade.

Isabel Moreira, deputada do PS, admite que a solução pode passar por retirar tipologia de sofrimento

MIGUEL A. LOPES/LUSA

Limar a lei basta? Constitucionalistas divididos

A constitucionalista Teresa Violante está inclinada, precisamente, para esta leitura. “A forma mais segura [de ultrapassar a inconstitucionalidade] é retirar os adjetivos e manter o resto”, argumenta a antiga assessora do gabinete de Juízes do Tribunal Constitucional, professora na Universidade Lusófona de Lisboa e investigadora na Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa.

“Essa solução pode acentuar a questão da falta de determinabilidade da lei”, discorda Tiago Duarte, professor de Direito Constitucional na Universidade Católica de Lisboa. Para este constitucionalista, “não qualificar de maneira alguma” o tipo de sofrimento que deve estar a sentir uma pessoa que peça a morte medicamente assistida tornaria o diploma “ainda mais indefinido”.

Recorde-se, aliás, que o Tribunal Constitucional ‘chumbou’ a lei por “intolerável indefinição quanto ao exato âmbito de aplicação”. “[Se assim for], estamos a assistir a uma rampa deslizante antes mesmo da aprovação da lei”, alerta Tiago Duarte.

Lei da eutanásia.”Em tese é possível” retirar adjetivos no conceito de sofrimento, diz Isabel Moreira

Marcelo de mãos atadas ou partidos comprometidos?

Se esta solução mais minimalista vingar, há quem, entre os partidos que desenharam a lei, entenda que Marcelo Rebelo de Sousa não pode enviar o diploma novamente para o Tribunal Constitucional, restando-lhe, como último recurso, o veto político da lei – e haveria sempre maioria no Parlamento para forçar a aprovação da lei contra a vontade de Marcelo, tal como prevê a Constituição da República Portuguesa.

Sem se comprometer com uma posição fechada e sem nunca vincular a opinião do PS à sua, Isabel Moreira acabou por sugerir isso mesmo em entrevista ao Observador. “O Presidente da República tem de fazer a interpretação de pensar se houve expurgo ou reformulação do diploma. Eu diria que se nos limitarmos ao que o Tribunal disse… Enfim, o Presidente ainda pode vetar politicamente”, argumentou a socialista,

Não é uma posição isolada a de Isabel Moreira. Existe, entre os partidos envolvidos no desenho da lei, quem entenda que basta retirar do diploma aquela tipificação do sofrimento (acabando com o problema do “e”) para impedir que Marcelo Rebelo de Sousa volte a enviar a lei para o Palácio Ratton, uma vez que as normas inconstitucionais tinham sido expurgadas do documento final.

Mais uma vez, Tiago Duarte discorda por completo. “Julgo que, tendo em conta o modo como a inconstitucionalidade foi decidida, não se pode falar de um expurgo de normas inconstitucionais”, argumenta o professor de Direito Constitucional.

De outra forma: o Constitucional não disse que uma norma em concreto era inconstitucional; disse que os deputados tinham de explicar o que não estava explicado; logo, não basta retirar conceitos para que o diploma passe a ser automaticamente constitucional aos olhos dos juízes do Ratton.

“A forma mais segura [de ultrapassar a inconstitucionalidade] é retirar os adjetivos físico, psicológico e espiritual e manter o resto”, argumenta a constitucionalista Teresa Violante. O professor de Direito Constitucional Tiago Duarte discorda: "Essa solução pode acentuar a questão da falta de determinabilidade da lei. [Se assim for], estamos a assistir a uma rampa deslizante antes mesmo da aprovação da lei".

Juízes tiveram interpretações diferentes sobre o “e”

A questão do “e”, determinante para a declaração de inconstitucionalidade do diploma, acabou por alimentar leituras diferentes, mesmo entre os juízes que consideraram que a decisão da maioria, assente quase exclusivamente naquele dado, não estava suficientemente justificada.

Mariana Canotilho, António José da Ascensão Ramos, Assunção Raimundo – indicados pelo PS – e José Eduardo Figueiredo Dias – nome proposto pelo PSD – assinaram uma declaração conjunta em que consideram que os motivos alegados eram “claramente insuficientes” e que o novo chumbo “minava” a relação de confiança entre o Constitucional e a Assembleia da República.

“O problema central desta fundamentação é que esta questão é irresolúvel. O conceito de sofrimento – por natureza, um estado holístico, com dimensões distintas, interrelacionadas e complementares – dificilmente se presta a uma definição cabal, em sede legislativa”, lamentaram os magistrados.

Os mesmos quatro juízes foram ainda mais longe: “O exercício de filigrana interpretativa que conduz à decisão lavrada no presente Acórdão resulta um standard de controlo que não se pode cumprir sem risco de abrir espaço a novas e distintas críticas à lei, numa espiral infinita de objeções possíveis”.

Exercício de “filigrana interpretativa” ou não, a verdade é que um outro juiz, José João Abrantes, também indicado pelo PS, apesar de concordar na crítica à decisão (“as dúvidas são manifestamente insustentáveis”), teve um entendimento completamente contrário em relação ao termo “e”.

“O enunciado ‘sofrimento físico, psicológico e espiritual’, sempre me pareceu claro no sentido de que compreende condições alternativas (e não cumulativas), tal como, aliás, acontece nas leis espanhola, belga e colombiana da eutanásia, sendo certo que uma questão de dúvida interpretativa não se confunde com um juízo de inconstitucionalidade”, defendeu.

Ora, nunca foi essa a intenção dos cinco partidos que desenharam a lei. Quando usou a formulação “sofrimento físico, psicológico e espiritual”, o legislador queria efetivamente que os três pressupostos estivessem verificados e foi isso mesmo que repetiram na reação à decisão do Constitucional, lamentando o excesso de zelo dos juízes em torno de uma questão que não levantava qualquer dúvida interpretativa. Aparentemente, levantava.

Há juízes do Tribunal Constitucional que entendem que a eutanásia, se aprovada, deve ser apenas e só o último recurso uma vez que o suicídio medicamente assistido obriga o paciente a lidar com a "dor de pensar". Marcelo pode aproveitar para levantar essa questão num próximo pedido de fiscalização preventiva.

Presidente pode levantar novas dúvidas

De todo em todo, e admitindo que Marcelo Rebelo de Sousa pode continuar a pedir a fiscalização preventiva da lei, isso levanta uma questão ao legislador: a extensão das alterações que vai ou não fazer ao diploma que despenaliza a morte medicamente assistida.

Qualquer alteração introduzida pode suscitar mais dúvidas a Marcelo Rebelo de Sousa. Se assim for, o Presidente da República pode pedir ao Tribunal Constitucional que se pronuncie sobre questões sobre as quais ainda não deliberou – quando confrontados com um pedido de fiscalização preventiva, os juízes do Palácio Ratton só se podem pronunciar sobre as objeções ou dúvidas levantadas pelo Presidente da República.

Ora, apesar de não ter sido abordado no texto comum do acórdão, alguns juízes decidiram questionar, nas suas declarações de voto, se não estaria em causa o princípio de subsidiariedade na dupla questão do suicídio assistido e da eutanásia. Para esses elementos do Tribunal Constitucional, a solução da eutanásia deveria ser subsidiária e não uma alternativa ao suicídio medicamente assistido.

Ou seja: é do entendimento de alguns dos juízes constitucionais que a eutanásia deveria ser uma solução apenas e só quando o paciente não está em condições de cumprir um suicídio medicamente assistido. É o que escreve o juiz Gonçalo Almeida Ribeiro na sua declaração de voto: “A exigência de que a pessoa pratique o ato confronta-a com a decisão de morrer até ao último momento, impedindo-a de se refugiar na exterioridade das palavras e no curso dos acontecimentos para aliviar a ‘dor de pensar’ (…) Ora, se a eutanásia é mais lesiva do que o suicídio assistido e desnecessária sempre que este seja possível, está claro que o princípio da proporcionalidade impõe que apenas possa ser admitida enquanto método subsidiário de morte medicamente assistida – e não, como no regime aprovado pelo legislador português, enquanto método alternativo”.

Acontece que Marcelo Rebelo de Sousa não levantou esta questão – tema que alguns juízes queriam ver discutida. Se os deputados entenderem acolher a recomendação de Almeida Ribeiro (entre outros), o Presidente da República estará em condições de pedir ao Palácio Ratton que se pronuncie também sobre esta questão – e a geometria de voto torna-se ainda mais imprevisível para os autores da lei.

Em contrapartida, se nada fizessem, os partidos que desenharam a lei arriscar-se-iam a ter de enfrentar, mesmo num cenário de hipotética promulgação da lei por parte de Marcelo, um processo de fiscalização sucessiva, que voltaria a bloquear a aplicação do diploma.

A escolha dos autores da lei pode muito bem passar por arriscar blindar o diploma agora, lidando com as dúvidas de Marcelo e possível novo ‘chumbo’ do Constitucional; ou não mexer nesse aspeto e ter de enfrentar nova crise no futuro.

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