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No passado, Miranda Sarmento admitiu eleições se OE for "desvirtuado"
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No passado, Miranda Sarmento admitiu eleições se OE for "desvirtuado"

DIOGO VENTURA/OBSERVADOR

No passado, Miranda Sarmento admitiu eleições se OE for "desvirtuado"

DIOGO VENTURA/OBSERVADOR

Governo "completamente exposto" à especialidade. Se OE for "desvirtuado", Montenegro pode exigir eleições

Constitucionalistas e antigos governantes concordam: mesmo sendo aprovado na generalidade, oposição pode alterar profundamente OE contra plano do Governo. Montenegro pode enfrentar "algo nunca visto".

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Não há soluções jurídicas criativas ou originais. Mesmo com o Orçamento do Estado para 2025 aprovado na generalidade, se este sofrer alterações profundas ao ponto de o desvirtuar no debate da especialidade, Luís Montenegro não terá grande alternativa: ou executa um Orçamento que não é o seu ou exige uma clarificação e tenta convencer Marcelo Rebelo de Sousa a convocar eleições antecipadas sob o argumento de que está em causa o regular funcionamento das instituições democráticas.

Quer isto dizer que, mesmo depois de Pedro Nuno Santos ter anunciado esta noite que viabilizaria o Orçamento (e que “não será causador de desequilíbrios de contas públicas na especialidade”), os problemas do Governo ainda não acabaram. Num raro consenso no meio académico, político e jurídico, todos os constitucionalistas e especialistas ouvidos pelo Observador convergem neste ponto: apesar de ser o governo em funções (qualquer ele que seja) a ter a competência de apresentar uma proposta de Orçamento do Estado, assim que o documento entra na Assembleia da República passa a depender da vontade dos deputados. O que se torna naturalmente mais dramático para os governos minoritários.

Quer isto dizer que, se a oposição, através de votações cruzadas entre o PS e o Chega, impuser medidas contra a vontade do Governo e até contra a visão política de Luís Montenegro, não há nada na lei que o impeça. O primeiro-ministro aceita ou pede uma clarificação eleitoral. Ainda que, num primeiro momento, as atenções mediáticas e políticas se centrassem mais na votação da generalidade do Orçamento (sem a qual não existiria, naturalmente, especialidade), este sempre foi o cenário que mais tem feito perder o sono ao núcleo duro do Governo.

Os socialistas chegaram a ameaçar votar contra o seu Orçamento do Estado para 2020 quando a oposição tentava impor a redução do IVA da luz para 6%. O recuo do PCP acabaria por salvar António Costa. Este ano, Montenegro poderá enfrentar o mesmíssimo problema a multiplicar por dez. Especialistas confirmam que não há nada na lei que impeça partidos de alterarem profundamente o documento

Governo teme alterações substantivas

O Executivo já trabalha nesta hipótese desde junho, como explicava o Observador. Se chegar a uma situação limite, Luís Montenegro admite provocar uma crise política e avançar para eleições antecipadas. “Se a oposição desvirtuar o Programa do Governo, teremos de perguntar aos portugueses se aceitam”, avisava Joaquim Miranda Sarmento ainda em agosto, em entrevista ao Público e à Rádio Renascença.

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O Observador sabe que o Governo teme alterações substantivas na especialidade, ainda que tenha confiança de que o PS não vai propor medidas radicais que comprometam o equilíbrio das contas públicas — garantia que Pedro Nuno Santos já deu. Mas há três linhas que podem ser assinaladas como vermelhas por parte do Executivo: propostas que ponham em causa o posicionamento ideológico do Governo; medidas que venham a anular bandeiras como IRS Jovem ou descida do IRC; ou medidas que impliquem um grande impacto orçamental. A única garantia de que isso não aconteceria seria a existência de um acordo prévio com Pedro Nuno Santos. Mas o entendimento falhou e o país entrou agora em terra de ninguém.

Há quem entenda que o Governo poderia não executar as medidas aprovadas contra a sua vontade, interpretar de forma diferente ou até suspender a execução. No entanto, um elemento do Governo ouvido pelo Observador argumenta que essa decisão seria “menos viável“, até porque os partidos que propuserem determinadas medidas vão estar especialmente atentos e exigir a sua implementação. “E O Governo será instado a explicar porque não o faz”, antecipa a mesma fonte.

No dia em que apresentou a proposta de Orçamento do Estado, Joaquim Miranda Sarmento multiplicou-se em avisos, sabendo que a partir de agora há pouca coisa que o Governo possa fazer para controlar as decisões dos demais partidos. Lembrando que o excedente é de ‘apenas’ 700 milhões de euros, quase que sugeriu que a margem é: nenhuma. “Não lhe chamaria margem para negociar”, fez questão de sublinhar o ministro das Finanças. Não é um cenário muito animador para a próxima fase orçamental — se ela vier a acontecer.

Em França, Michel Barnier, o novo primeiro-ministro escolhido por Emmanuel Macron, contornou a falta de maioria no Parlamento utilizando o artigo 49.3 da Constituição, que permite a adoção de um determinado texto (no caso, a lei orçamental) sem que seja votado pelos deputados — medida muito controversa mas utilizada várias vezes no passado e que só pode ser travada através de uma moção de censura. Ora, esta válvula de escape do regime francês não tem paralelo no quadro constitucional português

João Leão: “Um governo tem de ter capacidade de coordenar a governação”

O ex-ministro das Finanças, João Leão, explica ao Observador que o Governo tenta sempre acomodar no Orçamento as propostas de alteração aprovadas no Parlamento. Mas pode haver situações limite. Durante os governos minoritários socialistas — nos quais foi secretário de Estado do Orçamento e ministro das Finanças (após Mário Centeno ir para o Banco de Portugal, em meados de 2020) — João Leão foi confrontado com várias ‘coligações negativas’  — quando a oposição à direita e à esquerda do PS se juntavam para impor medidas contra a vontade do Governo.

Uma das mais famosas levou a uma ameaça pública de demissão de António Costa. Foi a aprovação da reposição integral das carreiras dos professores. Esta medida foi aprovada em 2019 fora do Orçamento do Estado e poderia ir contra a lei travão, mas o PSD, então liderado por Rui Rio, acabou por recuar.

Meses depois, o segundo governo minoritário liderado pelos socialistas, voltaria a enfrentar uma coligação negativa que queria impor a descida do IVA da eletricidade e do gás natural para 6% em 2020. Esta medida, diz João Leão, era de tal forma impactante — os números trazidos à luta parlamentar pelo Governo apontavam para uma perda de 800 milhões de euros anuais — e a “perceção que existia no Ministério das Finanças sobre a sua aprovação era de tal modo grave” que se considerou que poderia por em causa todo o Orçamento.

[Já saiu o terceiro episódio de “A Grande Provocadora”, o novo podcast Plus do Observador que conta a história de Vera Lagoa, a mulher que afrontou Salazar, desafiou os militares de Abril e ridicularizou os que se achavam donos do país. Pode ouvir aqui, no Observador, e também na Apple Podcasts, no Spotify e no Youtube. E pode ouvir aqui o primeiro episódio e aqui o segundo.]

“Não era só por causa do impacto financeiro, mas também pela perda de autoridade do Governo que ficaria posta em causa na sua capacidade de coordenar as decisões do país”. Seria sempre “uma decisão de “todo o Governo” e não apenas das Finanças, mas o cenário do PS votar contra o Orçamento do seu governo chegou a ser comentado. E até noticiado. A decisão limite não teve que ser tomada porque à 25ª quinta hora, os socialistas convenceram o PCP a tirar o tapete ao PSD de Rui Rio.

Na altura, recorda João Leão, a “situação financeira e orçamental do país era diferente” da atual. O primeiro excedente orçamental tinha sido conseguido apenas em 2019 (e voltou ao défice com a pandemia), a dívida pública era muito alta e o rating não tinha voltado ao nível pré-troika.

“Devemos sempre olhar com rigor para o impacto das medidas, mas a avaliação do Governo pode ser diferente porque a situação financeira é melhor agora”. Por outro lado, defende, “não é só o valor das medidas que deve pesar, mas também a ponderação sobre se essas alterações podem dar um “sinal claro de ingovernabilidade“.

“Um governo tem de ter capacidade de coordenar a governação”, diz. Se todo o planeamento financeiro para o ano for alterado por medidas casuísticas sem uma avaliação do impacto conjunto e do percurso, é o pior cenário. “Isso é perigoso porque estamos a entrar numa situação de descontrolo.”

Já no ano seguinte, em 2021 quando a proposta do Bloco de Esquerda para apagar a linha que aprovava a transferência para o Fundo de Resolução (e que tinha como destino a injeção no Novo Banco) foi aprovada, o cenário limite não esteve em cima da mesa. “Foi possível encontrar uma solução dentro do quadro orçamental” e que neste caso passou por um empréstimo dos bancos ao Fundo de Resolução.

Como a ameaça do IVA da luz fez Costa convocar reunião de emergência e negociar com CDS, PCP, PAN e Joacine

Na antecâmara de “algo nunca visto” 

“A partir do momento em que a proposta de Orçamento do Estado entra na Assembleia da República, o Governo perde poder de iniciativa e já não pode alterar a proposta. Não pode interferir no processo”, explica Guilherme W. Oliveira Martins, antigo secretário de Estado das Infraestruturas no primeiro Governo de António Costa. O especialista em finanças públicas afirma que “o Governo tem de aceitar o resultado que vier do Parlamento porque durante estes 50 dias de discussão e votação quem tem o poder orçamental é a Assembleia da República. E é um poder ilimitado.”

“O Parlamento pode alterar a proposta do Governo na especialidade e não está sequer limitado pela ‘lei-travão’, sintetiza o constitucionalista Tiago Duarte, cuja tese de doutoramento (“A Lei Por Detrás do Orçamento”) é precisamente sobre o tema. No limite, se as alterações impostas pelo Parlamento fossem “tão intensas” ao ponto de descaracterizarem “totalmente a proposta do Governo”, seriam “inconstitucionais“, uma vez que “tornavam a reserva do Governo de apresentar a proposta do Orçamento numa mera formalidade”.

Mas esse é um cenário-limite que não está verdadeiramente na equação — não é razoável imaginar que os partidos consigam maiorias para aprovar algo tão dramaticamente diferente que seja uma flagrante violação da Constituição da República Portuguesa. “Seria sempre necessário uma desconstrução muito visível da proposta do governo para o Tribunal Constitucional intervir”, concede o mesmo Tiago Duarte.

Agora, num cenário bem mais razoável, Pedro Nuno Santos e André Ventura podem, por exemplo, fazer aprovar medidas que aumentem a despesa estrutural do Estado e/ou diminuem a receita comprometendo as contas do Governo ou, em alternativa, obrigando Montenegro a fazer escolhas que alterem a visão estratégica que tem para o país. E não há nada na lei que proteja o Governo do resultado final das votações.

Pedro Nuno Santos tem dito repetidamente que o PS não será irresponsável no processo da especialidade e que todas as alterações que propuser respeitarão a margem orçamental que o Governo diz ter — o tal excedente de 0,3% e 700 milhões de euros. Mas, uma vez apresentando medidas de alteração à proposta, o partido deixará de controlar o processo de votação e as medidas podem ser aprovadas por maiorias variáveis.

Aliás, na contraproposta que apresentou a Montenegro, o socialista trocou medidas que diminuíam receita (através da redução de impostos) por alternativas que implicavam aumento da despesa estrutural (mais investimento na Habitação, por exemplo). Mesmo que o PS respeite a margem que Joaquim Miranda Sarmento pretende manter (os tais 700 milhões de euros), nada garante que os socialistas não tentem forçar alterações substanciais ao rumo escolhido pelo Executivo — e o Chega será sempre uma incógnita.

“Do ponto de vista político, se o Governo não se revir na lei do orçamento (por as opções do governo terem sido alteradas na especialidade), o Governo poderá demitir-se. Naturalmente, nesse caso, fica com o ónus de ter sido ele a tomar a iniciativa de se defender”. No limite, as bancadas parlamentares do PSD e do CDS votariam contra a proposta de Orçamento do próprio Governo. “Seria algo nunca visto“, resume o mesmo Tiago Duarte.

"Um governo tem de ter capacidade de coordenar a governação", diz João Leão ao Observador. Se todo o planeamento financeiro para o ano for alterado por medidas casuísticas sem uma avaliação do impacto conjunto e do percurso, é o pior cenário. "Isso é perigoso porque estamos a entrar numa situação de descontrolo."

“Um grande 31”

“O nosso sistema constitucional deixa os governos minoritários completamente expostos. A oposição pode alterar por completo o Orçamento do Estado ao ponto de podermos chegar a uma situação caricata em que os partidos que suportam o Governo podem ser obrigado a votar contra o Orçamento”, concorda Jorge Reis Novais, constitucionalista e Professor na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.

Ainda recentemente, em França, Michel Barnier, o novo primeiro-ministro escolhido por Emmanuel Macron, contornou a falta de maioria no Parlamento utilizando o artigo 49.3 da Constituição, que permite a adoção de um determinado texto (no caso, a lei orçamental) sem que seja votado pelos deputados — medida muito controversa mas utilizada várias vezes no passado e que só pode ser travada através de uma moção de censura.

Ora, esta válvula de escape do regime francês não tem paralelo no quadro constitucional português. Pelo que, a única alternativa que restaria aos deputados da Aliança Democrática seria chumbar o Orçamento do próprio Governo. “Seria um grande 31”, subscreve Jorge Pereira da Silva, Professor da Escola de Lisboa da Faculdade de Direito da Católica. Como recorda o próprio, já em dezembro de 2023, à boleia da demissão de António Costa e da crise política que se abriu. Já nessa altura, num texto de opinião publicado no Expresso, o constitucionalista falava num “sistema de Governo à deriva”.

“A metamorfose do orçamento no instrumento central de efetivação da responsabilidade do governo perante o Parlamento – com a quase certa demissão daquele e ou dissolução deste – resulta de uma combinação improvável de duas doutrinas políticas. Por um lado, a ‘doutrina Cavaco Silva‘, primeiro-ministro e professor de finanças públicas, segundo a qual não há disciplina orçamental sem um orçamento aprovado a tempo e horas, para entrar em vigor no dia 1 de janeiro. Por outro lado, a ‘doutrina António Guterres‘, o engenheiro do diálogo que sempre associou o fracasso na aprovação do orçamento ao seu próprio pedido de demissão”, contextualizava então Pereira da Silva.

Ainda assim, o constitucionalista recorda ao Observador que o processo na especialidade é longo e percorre várias etapas. Depois de apresentadas, as propostas têm de ser discutidas e votadas na comissão de Orçamento, fechadas na especialidade e, por fim, confirmadas em votação final global. Ora, Pereira da Silva entende que a única arma ao alcance de PSD e CDS é avocar para plenário a votação de determinadas normas para servir como “fator de moderador” dos ímpetos de uma oposição que se diz responsável.

Por outras palavras: uma coisa é aprovar medidas no recato de uma comissão especializada; outra coisa é impor alterações ao Governo à vista de todos e com elevado grau de escrutínio. Seria o recurso possível para os deputados da Aliança Democrática. Seja como for, o possível resultado prático é o mesmo. “No final, o Governo pode ter um Orçamento do Estado que não corresponde ao seu desiderato. Pode ter que se demitir”, remata Pereira da Silva.

Em matéria orçamental, o Governo só recupera o poder de iniciativa a partir de janeiro. E pode então avançar com um orçamento retificativo, ou com alterações por diploma, contando uma proteção extra face a iniciativas da oposição, defende. Não fica condicionado nas medidas pela lei travão.

“O poder legislativo é exclusivo do Parlamento e o poder executivo é exclusivo do Governo”, realça Guilherme W. Oliveira Martins. “A margem de manobra do Governo pode jogar-se nessa separação de poderes, mas sempre tendo em conta que o Presidente estará atento para verificar se não está a ser posto em causa o regular funcionamento das instituições”.

Um orçamento retificativo num Parlamento partido em três blocos encara as mesmas dificuldades em passar que o atual. Mas há uma situação em que os deputados da oposição podem ser mais abertos a viabilizar. Isto num cenário em que as medidas aprovadas contra o Governo no orçamento original anual  provoquem uma degradação das contas públicas — passar de um saldo positivo ou défice residual para um saldo claramente negativo — que force o Executivo a reforçar o teto do endividamento.

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