816kWh poupados com a
i

A opção Dark Mode permite-lhe poupar até 30% de bateria.

Reduza a sua pegada ecológica.
Saiba mais

i

PA Images via Getty Images

PA Images via Getty Images

"The Last Movie Stars": a verdadeira história de amor de Joanne Woodward e Paul Newman

A série documental de seis episódios está na HBO Max a 3 de novembro e é tudo aquilo que prometia. Inesperada, cativante e uma homenagem feita também das partes mais sombrias dos dois nomes icónicos.

Algures numa das últimas entrevistas que deu, Joanne Woodward recordou o início da relação com Paul Newman:

“Eu não o amava, não sabia o que isso era. Mas estava enamorada, apaixonada.”

Mergulhar em “The Last Movie Stars” é mais ou menos isto desde os primeiros minutos. Ficamos enamorados, presos ao magnetismo de dois nomes que podíamos já conhecer muito bem ou muito mal — no final, esse detalhe vai revelar-se indiferente. Joanne Woodward e Paul Newman são os protagonistas desta história e, mesmo sem nunca estarem realmente presentes, estão vivos em cada frame, em cada história inédita agora relevada.

Tudo começou antes da pandemia, quando as filhas do casal de atores contactaram Ethan Hawke, pedindo-lhe que realizasse um documentário sobre os pais. Ele, sem saber bem o que teria em mãos, começou por lhe chamar filme, chamou amigos para ajudarem, foi percebendo ao longo de vários meses o que queria fazer e acabou com uma série documental de seis partes nas mãos — cuja estreia acontece na HBO Max esta quinta-feira, 3 de novembro. Seis episódios dedicados à vida e à carreira de duas pessoas não é muito? É, sim. Mas é também profundamente cativante e viciante e tem exatamente a duração e o ritmo certos para irmos digerindo os acontecimentos e aceitando, à medida que nos vamos preparando para o impacto, o desfecho.

Para uma biografia que nunca chegou a ser publicada, Paul Newman tinha pedido ao amigo e argumentista Stewart Stern que entrevistasse os seus familiares e amigos. Porém, em 1998, o ator pegou nas centenas de cassetes e incendiou-as. Por sorte, a maioria das conversas já tinha sido transcrita e foi esse material que foi parar às mãos de Ethan Hawke. Em pleno confinamento e total desconhecimento em relação ao futuro, Hawke começou a reunir com amigos através de videochamada e a explicar o que tinha descoberto. Ao mesmo tempo que contextualiza o espectador, explica que a ideia é ter atores a lerem os textos dessas entrevistas — como se estivessem num ensaio, numa leitura conjunta antes de filmarem uma cena. E assim, de repente, temos George Clooney a dar voz às palavras de Paul Newman e Laura Linney às de Joanne Woodward, numa voz off que vai servindo de guia para toda a série documental preenchida com imagens dos filmes que ambos protagonizaram, entrevistas, vídeos caseiros e fotografias. Mas há mais nomes: Sam Rockwell, Billy Crudup, Zoe Kazan ou Oscar Isaac oferecem-nos em áudio relatos preciosos, e nem sempre benéficos, de dois ídolos de Hollywood.

[o trailer de “The Last Movie Stars”:]

Porém, “The Last Movie Stars” não é a interpretação de uma peça da vida real. Os áudios vão sendo intercalados com a busca de Ethan Hawke, primeiro em entender Woodward e Newman, depois em perceber em que formato contará a história deles. Sempre que fala com algum dos outros autores, cada um isolado na sua janelinha de Zoom, os olhos dele brilham, como se fosse uma criança que acaba de descobrir um tesouro abandonado no sótão lá de casa. Ao ouvir os relatos de quem privou diretamente com eles (Martin Scorsese, Sally Field, as filhas), é visível o espanto e a certeza de que o que tem no colo é precioso e frágil. A forma como, a partir daí, escolher apresentar o projeto fará toda a diferença entre o melhor documentário do ano e um relato enfadonho que acumulará desistentes logo no primeiro episódio.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Há três momentos marcantes, e bem delimitados na história: o início das carreiras e a paixão avassaladora; a explosão de um e a estagnação do outro; e uma segunda oportunidade, já depois de uma tragédia que provavelmente mudou tudo.

Quando Joanne Woodward e Paul Newman se conheceram ele já era casado. No entanto, a atração foi fulminante e nunca mais se largaram. Após cinco anos de um caso extraconjugal muito pouco discreto, o ator deixou a mulher e três filhos pequenos. Os estragos só os reconheceria muitos anos mais tarde.

Paul Newman era um alcoólico funcional. Nunca falhou um compromisso profissional. Já em casa, passou ao lado de muita coisa. Certo dia, ébrio como era hábito, caiu da cama e fez um corte na cabeça. Foi a gota que fez transbordar o copo de Woodward: pegou nas crianças e resguardou-se na casa de férias. Ele ficou vários dias a dormir no carro, à porta de casa, à espera que ela o deixasse voltar.

Naquele momento, com Woodward, formava o casal que todos queriam ser. Ele era alto, lindo, com olhos azuis brilhantes. Ela era uma das atrizes mais conceituadas da sua geração. Logo depois de se casarem, Joanne Woodward ganhou um Óscar de Melhor Atriz. Transpirava talento, representar era inato, todos a cobiçavam. Quanto a Newman, há anos que lutava por papéis com relevo, que não o objetificassem apenas como uma cara bonita, mas, mais do que lutar contra a indústria, lutava contra ele próprio, profundamente inseguro quanto ao seu valor e lugar no cinema.

E depois o que é que aconteceu? Tiveram filhos. Não um, não dois, mas três — a juntar aos outros três do primeiro casamento. Joanne Woodward viu-se a mudar fraldas enquanto a carreira do marido disparava finalmente. Não era que não estivesse orgulhosa dele, mas o ressentimento apareceu também, atrelado a uma realidade que ela já tinha vivido e entretanto perdido. Não podemos esquecer-nos de que estamos a falar dos anos 70. A tarefa de uma mulher era ficar em casa, a cuidar das crianças, e não era assim tão diferente para uma atriz de Hollywood, mesmo com um Óscar na prateleira. Do nome dela já ninguém se lembrava para grandes papéis: havia outras atrizes talentosas, bonitas e muito mais disponíveis.

Juntos, Joanne Woodward e Paul Newman fizeram 16 filmes, além de três peças na Broadway e outros projetos. Excertos dessas produções vão-nos mostrando como ambos eram peças encaixadas na perfeição quando contracenavam, mas também como evoluíram ao longo dos anos. Newman encontrou os seus pontos fortes e papéis que lhe permitiram expandir-se, acumulou nomeações para Óscares (nove, mais precisamente), ganhou confiança e o respeito da crítica, para juntar à adoração que já tinha do público (sobretudo feminino). Woodward tinha tudo à partida e foi profundamente injustiçada nas opções cada vez mais escassas.

Aliás, basta fazermos um exercício: quantos dos que veem o documentário conhecem de fcato Joanne Woodward? Prestemos atenção à força que ela coloca em cada interpretação presente na série documental. Sair disto com uma lista de filmes para ver será inevitável. Os papéis realmente bons a que teve acesso foi ela que os procurou ou produziu, inclusive com o marido a realizar, em mais um ato de amor. Numa entrevista, a atriz confessou algo que muitos não se atreveriam a verbalizar: amava os filhos mas, se pudesse voltar atrás, não teria sido mãe para poder dedicar-se em pleno à carreira.

Embora completamente apaixonados um pelo outro, a vida familiar não era assim tão pacífica. “Desde a primeira vez que o vi, sempre soube que era um bêbado”, diz Joanne Woodward numa das entrevistas. Noutro momento recorda que as vésperas de Natal eram passadas a embrulhar presentes para colocar debaixo da árvore — mas não era um momento familiar, ela embrulhava enquanto ele já estava desmaiado de tanto beber.

Paul Newman era um alcoólico funcional. Nunca falhou um compromisso profissional. Já em casa, passou ao lado de muita coisa. Certo dia, ébrio como era hábito, caiu da cama e fez um corte na cabeça. Foi a gota que fez transbordar o copo de Woodward: pegou nas crianças e resguardou-se na casa de férias. Ele ficou vários dias a dormir no carro, à porta de casa, à espera que ela o deixasse voltar.

Newman, culpado pelo sucedido e pelos seus próprios excessos, agarrou uma segunda oportunidade na vida. Criou uma fundação em nome do filho, desenvolveu projetos para crianças doentes e olhou, finalmente, para o que tinha em casa, certificando-se que não cometia o mesmo erro outra vez.

Muitas vezes, no ecrã, pareciam um casal perfeito, quando em casa tudo estava mal. Outras vezes usavam aquilo que conheciam para enriquecer as personagens e essa é a parte mais interessante: ver os paralelismos  entre os dois universos, como é que os papéis influenciavam a vida deles e a vida deles mudava os papéis. Era um risco passar essa vulnerabilidade, lutas tão pessoais, para o cinema, mas a verdade é que funcionava.

Tal como funcionava a relação de ambos sem real explicação lógica. Numa entrevista perguntaram a Joanne Woodward que gostos é que os dois tinham em comum e ela respondeu “nada”. Era verdade. Ela fazia tricot, ballet e dedicava-se a montar peças de teatro; ele descobriu a paixão por corridas de carros no filme “Winning” e passava grande parte do seu tempo a competir. Ainda assim, algo magnético os juntava e fê-los aguentar infidelidades, ressentimentos, excessos e a morte de um filho. Scott, fruto do primeiro casamento, era um comboio a grande velocidade cujo único destino só podia ser a tragédia. Toda a gente sabia e ninguém conseguiu evitar. Consumiu drogas desde cedo, o pai não sabia lidar com ele, era irascível e inconstante e acabou por morrer na sequência de uma overdose.

“Acho que o mais bonito é que crescemos juntos. Éramos miúdos, idiotas e isso tudo, e crescemos juntos”, considerou Woodward numa entrevista

Newman, culpado pelo sucedido e pelos seus próprios excessos, agarrou uma segunda oportunidade na vida. Criou uma fundação em nome do filho, desenvolveu projetos para crianças doentes e olhou, finalmente, para o que tinha em casa, certificando-se que não cometia o mesmo erro outra vez.

“Entre os meus 16 e 25 anos tive aquilo a que chamámos os meus ‘anos horríveis’. Ele ia religiosamente à terapia comigo, uma vez por semana, durante nove meses. E eram consultas de duas horas”, conta a filha Clea.

Quando ela parou as consultas, ele continuou.

“Perdeu um filho [o único homem] e teve dois netos rapazes, uma segunda oportunidade. Foi um avô excelente”, revela outra das filhas, Melissa.

Os últimos anos ocupam todo o episódio final, que chega à 1h20. Ter à nossa frente duas pessoas que ainda há pouco víamos no auge da sua energia e beleza envelhecer e perder capacidades não é um exercício fácil — não estamos só olhar para eles, mas também para o que nos espera. Mas “The Last Movie Stars” consegue dar-nos aconchego suficiente para lidarmos com estes cenários. É que é aqui que se vê o verdadeiro amor, a cumplicidade e a constância.

“Acho que o mais bonito é que crescemos juntos. Éramos miúdos, idiotas e isso tudo, e crescemos juntos”, considerou Woodward numa entrevista.

Isso vê-se fora e dentro do ecrã, onde as últimas atuações em conjunto, como em “Mr e Mrs Bird” são uma espécie de dança feita de olhos fechados, sem ser necessário maestro ou sequer música.

E, falando de música, até nisso “The Last Movie Stars” tem beleza. Hamilton Leithauser assina a banda sonora e alguns dos seus temas ficam a tocar em loop nas nossas cabeças, desde “A 1000 Times” que fecha o primeiro episódio a “In Our Time (I’ll Always Love You)”, que encerra a série documental. As letras são perfeitas para a história, as melodias dão-lhe o remate final.

Ambos souberam que estavam doentes com nove dias de diferença. E o que Paul Newman fez depois disso é digno do argumento mais bonito que alguma vez alguém podia escrever — não vou estragar este texto com spoilers mas aviso já que o melhor é terem um pacote de lenços de papel à mão.

No total, há seis episódios para ver, um resultado que nem o próprio Ethan Hawke podia prever quando começou o projeto. Numa vídeochamada com a filha e atriz Maya Hawke, debatia a forma de apresentar a narrativa. Ela recordou-lhe uma conversa que tinham tido sobre relacionamentos:

“Tu disseste-me: numa relação há sempre três pessoas. A terceira é a relação, que tem uma personalidade própria. O teu filme devia ser sobre isso.”

Ethan Hawke foi mais longe: “Acho que o filme devia ser sobre o espaço entre eles [Newman e Woodward]”.

E é. Sobre o que os separa e o que os une. Sobre o que os apaixona e o que os destrói. Sobre o que nos apaixona, a nós, e o que nos destrói. A história de amor de Paul Newman e Joanne Woodward é muito mais perfeita do que um grande filme de amor — exatamente porque é tão imperfeita, tão desafiante, que é real e palpável. E até no final da caminhada a dois insistiram em estar de mãos dadas (tal como numa foto o cónica do dia em que renovaram os votos). Ambos souberam que estavam doentes com nove dias de diferença. E o que Paul Newman fez depois disso é digno do argumento mais bonito que alguma vez alguém podia escrever — não vou estragar este texto com spoilers mas aviso já que o melhor é terem um pacote de lenços de papel à mão.

“The Last Movie Stars” mostra dois nomes clássicos que podem não ser, realmente, as últimas grandes estrelas do cinema, mas são os protagonistas da história mais bonita, caótica e memorável que vão ver este ano. Podem mandar acabar 2022.

 
Assine o Observador a partir de 0,18€/ dia

Não é só para chegar ao fim deste artigo:

  • Leitura sem limites, em qualquer dispositivo
  • Menos publicidade
  • Desconto na Academia Observador
  • Desconto na revista best-of
  • Newsletter exclusiva
  • Conversas com jornalistas exclusivas
  • Oferta de artigos
  • Participação nos comentários

Apoie agora o jornalismo independente

Ver planos

Oferta limitada

Apoio ao cliente | Já é assinante? Faça logout e inicie sessão na conta com a qual tem uma assinatura

Ofereça este artigo a um amigo

Enquanto assinante, tem para partilhar este mês.

A enviar artigo...

Artigo oferecido com sucesso

Ainda tem para partilhar este mês.

O seu amigo vai receber, nos próximos minutos, um e-mail com uma ligação para ler este artigo gratuitamente.

Ofereça artigos por mês ao ser assinante do Observador

Partilhe os seus artigos preferidos com os seus amigos.
Quem recebe só precisa de iniciar a sessão na conta Observador e poderá ler o artigo, mesmo que não seja assinante.

Este artigo foi-lhe oferecido pelo nosso assinante . Assine o Observador hoje, e tenha acesso ilimitado a todo o nosso conteúdo. Veja aqui as suas opções.

Atingiu o limite de artigos que pode oferecer

Já ofereceu artigos este mês.
A partir de 1 de poderá oferecer mais artigos aos seus amigos.

Aconteceu um erro

Por favor tente mais tarde.

Atenção

Para ler este artigo grátis, registe-se gratuitamente no Observador com o mesmo email com o qual recebeu esta oferta.

Caso já tenha uma conta, faça login aqui.

Vivemos tempos interessantes e importantes

Se 1% dos nossos leitores assinasse o Observador, conseguiríamos aumentar ainda mais o nosso investimento no escrutínio dos poderes públicos e na capacidade de explicarmos todas as crises – as nacionais e as internacionais. Hoje como nunca é essencial apoiar o jornalismo independente para estar bem informado. Torne-se assinante a partir de 0,18€/ dia.

Ver planos