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A maior parte das denúncias entregues ao Ministério Público pela comissão independente que estuda os abusos sexuais na Igreja Católica foram arquivadas sem sequer chegar à Polícia Judiciária para qualquer diligência de investigação. O Ministério Público argumentou esta semana que, perante a falta de dados de identificação das vítimas, nada pode fazer para investigar aquelas denúncias. Mas quem está no terreno partilha de uma visão completamente diferente: “Como é que se arquiva um processo sem sequer pedir a um órgão de polícia criminal para investigar e obter meios de provas?”, questiona-se uma das várias fontes da Polícia Judiciária ouvidas pelo Observador.
Segundo apurou o Observador, perante as notícias que têm saído na comunicação social e perante as informações tornadas públicas por parte da própria Comissão Independente, liderada pelo pedopsiquiatra Pedro Strecht, a Polícia Judiciária (PJ) chegou mesmo a deslocar-se a tribunais e a instalações do Ministério Público, para perceber em que ponto estavam certos processos relativos a algumas das 17 denúncias sobre os alegados abusos sexuais de menores por parte de membros da Igreja, que a comissão fez chegar à Procuradoria-Geral da República até este momento (o número poderá subir, estando a ser analisada pelos membros da comissão a validade de encaminhar para o MP cerca de 30 das denúncias entretanto recebidas).
Mas, mesmo depois dessas iniciativas da PJ no terreno, a maior parte dos processos nunca chegou às mãos dos inspetores que investigam estes crimes — ainda antes de qualquer investigação ser feita, o destino dos processos foi o arquivamento.
Para o Ministério Público, nos casos em que as vítimas não são identificadas — que serão quase todos, uma vez que a comissão prometeu sigilo aos denunciantes —, não haverá meios de prova para investigar. Por outro lado, entre os casos arquivados, alguns já prescreveram e nada há a fazer do ponto de vista criminal. Judicialmente, são assuntos arrumados. Mas a PJ não se revê nessa leitura, uma vez que, como lembra um dos seus elementos ao Observador, faz parte de um inquérito recolher esses mesmos meios de prova e afastar eventuais ligações a outras suspeitas de abusos pelos mesmos denunciados.
424 testemunhos, 17 denúncias ao MP e 4 investigações
Nos últimos nove meses, a Comissão Independente recebeu 424 testemunhos, a maior parte contra padres. Alguns deles já morreram, outros já não exercem funções devido à sua idade avançada, mas alguns continuam no ativo à frente de paróquias e mantêm contacto com menores.
Quando a Comissão iniciou funções e reuniu com a Polícia Judiciária para falar sobre o seu trabalho, logo depois de começar o seu trabalho, em meados de janeiro deste ano, foi a própria PJ que a alertou para o facto de um caso mesmo eventualmente prescrito não poder ser desvalorizado. Isto porque um abusador sexual raramente age uma única vez e uma história antiga pode levar a alguma mais recente, passível de investigação e até condenação.
O Observador sabe que, na altura, a Polícia Judiciária chegou mesmo a ponderar reunir uma equipa especial dedicada a estes casos, na perspetiva de que pudessem chegar denúncias às dezenas. Mas pouco depois percebeu que não seria bem assim.
Laborinho Lúcio, o juiz jubilado que integra a comissão, que foi também ministro da Justiça, optou por triar os casos denunciados e escolher aqueles que poderiam dar origem a um processo-crime, dando uma ampla janela às contas da prescrição, como ele próprio explicou na última conferência de imprensa da comissão, na Fundação Gulbenkian. A lei prevê que os crimes contra a autodeterminação sexual praticados contra menores só prescrevam quando a vítima perfaz 23 anos de idade (precisamente cinco anos depois de atingir a idade adulta). Num caso de alegado crime de abuso continuado, o último episódio de abusos de que haja informações é o considerado para esse cálculo.
Comissão Independente pondera enviar 30 testemunhos de abusos ao Ministério Público
Dos primeiros 300 testemunhos recolhidos foram entregues 17 denúncias ao Ministério Público (estando a comissão a avaliar a entrega de outras 30 denúncias), mas nada chegava à Polícia Judiciária. O próprio presidente da comissão, o pedopsiquiatra Pedro Strecht, perante aquilo que parecia ser a inércia do MP, chegou a ir pelo próprio pé à Polícia Judiciária para entregar uma lista de sete nomes de clérigos suspeitos de terem praticado abusos. Mas os inspetores ainda hoje não têm do Ministério Público indicação quanto à maior parte desses casos — que, aliás, em julho, segundo a Procuradoria-Geral da República, se resumiam já a apenas 10 inquéritos abertos, tendo os restantes sido arquivados por prescrição ou, num dos casos, porque a mesma história já tinha sido denunciada e até julgada em tribunal.
Três meses depois, o cenário mantém-se. Num novo balanço sobre estes 17 inquéritos, a Procuradoria-Geral da República informou que agora já só restam quatro inquéritos abertos e seis foram arquivados. Em Cascais, além do caso que já tinha sido julgado, foi arquivado um outro por prescrição. Em Vila Real, alegou-se falta de provas por não se conhecer o nome da vítima. Em Braga, não se conhecendo nem as vítimas nem os autores dos casos reportados, arquivou-se também o inquérito. Em Sesimbra, o destino do processo foi o mesmo, por não se conhecer o nome da vítima. E, em Loures, o caso foi arquivado porque o suspeito em causa já tinha morrido. Nenhum destes processos foi entregue à Polícia Judiciária para qualquer diligência de investigação.
Ministério Público diz que não pode fazer trabalho de “detetive privado”
Para o procurador Paulo Castro, que integra a direção do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, e que é também procurador no Tribunal de Família e Menores de Santa Maria da Feira e de Aveiro, estes arquivamentos são, porém, um procedimento normal. “Perante uma participação ao Ministério Público em que não é possível a identificação da vítima, [nem] muitas vezes o eventual autor do facto, como é possível traçar uma linha de investigação quando não se consegue aquilo que é básico?”, interrogou-se o magistrado no programa Explicador da Rádio Observador, esta terça-feira.
Mas, para a Polícia Judiciária, há meios de obtenção de prova e esse é o trabalho previsto para a polícia que tem competência neste tipo de crime. “Nós temos conhecimento do terreno e experiência na investigação deste tipo de crimes. Não percebemos porque é que os processos não nos chegam para tentarmos fazer alguma coisa antes de arquivar”, diz uma outra fonte da PJ ao Observador.
Para Paulo Castro, o Ministério Público “está adstrito ao cumprimento da lei” e não pode determinar buscas, escutas ou qualquer vigilância se não houver indícios suficientes de crime. “O Ministério Público não pode fazer de detetive privado”, diz o magistrado, que lembra que todos os suspeitos têm direito à presunção da inocência e que há direitos fundamentais que não podem ser violados. O mesmo se aplica a casos prescritos. Se o caso que chega ao Ministério Público já não pode ser investigado porque o crime prescreveu, então não podem ser feitas quaisquer diligências para recolha de prova, sustenta.
A posição da Polícia Judiciária foi, aliás, já assumida este ano, em junho, num seminário dedicado ao tema dos abusos de menores que decorreu no auditório da Direção Nacional da PJ. Na intervenção que fez, o diretor adjunto desta polícia lembrou que “uma participação feita à PJ está também a ser feita ao Ministério Público”, como uma espécie de recado à Comissão Independente, que optou por entregar os casos ao Ministério Público. Carlos Farinha sublinhou ainda a ideia de que quando as queixas são feitas diretamente à Polícia Judiciária a investigação pode começar de imediato. “Esta questão da sinalização externa não deve dar margem a tempo perdido”, disse o responsável. “O tempo urge para que a resposta possa ser a desejável.”
A mensagem não só caiu em saco roto como a maior parte dos casos denunciados nem sequer chegou à Polícia Judiciária.
Abusos sexuais. “Uma participação feita à PJ está também a ser feita ao Ministério Público”
Uma lista de nomes suspeitos que poderá ser inútil
A opção de entregar as denúncias ao Ministério Público foi, segundo apurou também o Observador, opção de Laborinho Lúcio, que já ressalvou publicamente que o papel da comissão não é o de comunicar os crimes às autoridades, mas que acabou por fazê-lo porque, no âmbito do trabalho que está a ser desenvolvido por aquele grupo, os seus membros serem considerados funcionários. Haverá, por isso, uma obrigação legal de dar conhecimento dos crimes públicos que ali cheguem.
Ainda assim, quando a comissão entregar o relatório final do seu estudo, no final deste ano, o objetivo é incluir no documento uma lista dos padres apontados pelas vítimas, e que ainda estejam vivos, ao Ministério Público e uma outra, com todos os nomes (de clérigos vivos ou que já tenham morrido), à hierarquia da Igreja. Para o Ministério Público, defende a comissão, este documento terá um papel importante na prevenção criminal, e para a Igreja poderá determinar o afastamento de alguns padres, uma vez que no direito canónico não existe a figura da prescrição.
No entanto, esta lista poderá revelar-se inútil. Isto porque, argumenta o procurador Paulo Castro, nem o Ministério Público nem as polícias podem “criar listas de suspeitos que possam monitorizar”. “Ao MP compete o exercício da ação penal, compete dirigir a investigação, é só o que pode fazer e já não é pouco”, afirmou.
Novos casos que chegaram à Procuradoria sem ser da Comissão Independente
No balanço que a Procuradoria Geral da República (PGR) fez esta semana, e que dá conta que dos 17 casos comunicados pela Comissão Independente só quatro estão de facto a ser investigados, constam no entanto informações de outras investigações entretanto abertas. O que significa que, além destes quatro processos, existem seis outros que foram abertos e que visaram membros da Igreja.
Estes seis inquéritos foram abertos, segundo a PGR, na sequência de três denúncias feitas pela Comissão Diocesana de Proteção de Menores e Pessoas Vulneráveis. A PGR, mesmo depois do pedido de mais esclarecimentos pelo Observador, não especificou se se refere à comissão coordenadora ou a uma das comissões que funcionam junto das dioceses de norte a sul do país (e que foram criadas ainda antes da Comissão Independente, por determinação do Papa Francisco, em 2019).
“Estas denúncias, uma das quais envolvendo vários nomes, foram remetidas às competentes estruturas do Ministério Público, onde foram instaurados seis inquéritos. Todos estes inquéritos se encontram em investigação”, diz a PGR.
A estas somam-se também os dois inquéritos abertos em nome de D. José Ornelas, o bispo de Leiria-Fátima que é também presidente da Conferência Episcopal e que foi alvo de uma denúncia por alegada ocultação de crimes de abuso de sexual na Igreja, que chegou às mãos do Presidente da República este verão (mais de 10 anos depois de o seu autor ter pela primeira vez contactado as autoridades judiciais e já depois de ser confirmado cinco vezes o seu arquivamento). Esta denúncia deu, ainda assim, origem à abertura de um processo em Lisboa e outro em Guimarães (Braga). Nenhuma das investigações terá já sido comunicada à polícia competente para investigar estes crimes.
Já o processo relativamente ao padre de Massamá, de que o próprio Patriarcado de Lisboa deu conta há uma semana, também foi arquivado por prescrição. Também este não chegou a ir sequer à Polícia Judiciária.
Mais recentemente, anunciou a PGR, chegou uma denúncia anónima ao Ministério Público, que ainda está em “apreciação” e que ainda não resultou em inquérito.