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Funcionário de colégio católico está preso por abuso de uma dezena de menores. Antes, uma escola pública ocultou os seus crimes

Escola primária de Cascais afastou suspeito, mas nada disse à Polícia. Duas semanas depois, abusos repetiram-se em colégio católico que acionou logo a PSP. E só aqui a PJ começou a investigar.

A direção de uma escola primária pública de Cascais ocultou da polícia suspeitas de abuso sexual contra um professor, que acabaria detido semanas depois de ter feito o mesmo a vários alunos de um colégio católico onde também trabalhava. Ricardo Jorge, à data com 18 anos, que fora contratado pela junta de freguesia para dinamizar atividades extracurriculares na escola, foi afastado de funções e a família da vítima foi mesmo aconselhada numa reunião com responsáveis da escola e da junta a não seguir com um processo crime para não “destruir” a carreira profissional do professor.

O caso aconteceu em outubro de 2020 na Escola Básica n.º 1 de Birre, em Cascais, onde Ricardo trabalhava uma hora por dia. Duas semanas depois da primeira denúncia, porém, perante uma denúncia idêntica, o Colégio Marista de Carcavelos, um colégio católico, adotou o procedimento oposto e contactou de imediato a polícia. Só por esta altura Ricardo foi preso. Acabou condenado e cumpre agora pena de prisão.

A forma como um e outro estabelecimento de ensino decidiram tratar um caso de abuso sexual foi mesmo notada pelos juízes do Tribunal da Relação de Lisboa que em junho de 2022 apreciaram o recurso do caso. Ricardo foi condenado a uma pena efetiva de seis anos de prisão e, no acórdão, os magistrados deixaram críticas à forma como os responsáveis da escola pública atuaram. “Não prestaram qualquer apoio às crianças, mesmo após a junta dizer que tinha um serviço psicoterapêutico gratuito”, lê-se na decisão. E mesmo “o afastamento do arguido de tal estabelecimento de ensino” não se deveu à escola, “mas à pressão que foi realizada pela junta de freguesia com quem o arguido colaborava na área do ensino para que o mesmo fosse afastado”, concluiu o tribunal. Este procedimento “contrastou de forma evidente com o procedimento que foi adotado pelo Colégio Marista”, que, por iniciativa própria, suspendeu de imediato o suspeito e prestou apoio às vítimas.

Auxiliar foi denunciado por abusos cometidos no Colégio Marista de Carcavelos em outubro de 2020. Mas duas semanas antes já tinha sido feita uma queixa contra ele numa escola pública, que não levou o caso à polícia.

O caso, trazido a público em 2020, conta-se entre as cerca de 400 denúncias que chegaram este ano à Comissão Independente que investiga os abusos sexuais na Igreja Católica. A comissão, liderada pelo pedopsiquiatra Pedro Strecht, chegou mesmo a enviar esta denúncia ao Ministério Público, mas o processo já tinha sido investigado e julgado, motivo pelo qual o caso foi arquivado, e foi agora consultado pelo Observador no Tribunal de Cascais.

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Como três meninas de 11 anos perceberam que tinham de “falar com um adulto”

10 de novembro de 2020. Era o dia de aniversário da professora Sofia, a diretora de turma do 6.ºA do Colégio Marista de Carcavelos, uma escola privada pertencente à ordem católica dos Irmãos Maristas, construída na década de 1960 naquela localidade do concelho de Cascais. Um grupo de alunos de 11 anos decidiu fazer-lhe uma surpresa: no intervalo do almoço, pediriam às funcionárias que, discretamente, abrissem a porta de madeira com uma pequena janela de vidro que dá para a sala da turma. Queriam escrever “PARABÉNS”, em letras garrafais, no quadro de giz, para fazerem uma festa à professora na primeira aula da tarde.

Porém, não tiveram sorte. As duas funcionárias que abordaram recusaram-lhes o pedido, uma vez que, apesar das boas intenções do grupo, composto por três raparigas e dois rapazes, não tinham autorização para abrir a porta fora dos horários letivos. No entanto, as funcionárias deram uma sugestão às crianças: talvez tivessem mais sorte se abordassem Ricardo, o jovem técnico de informática que tinha sido contratado pelo colégio no início daquele ano letivo e que, além de tratar das questões informáticas, também ajudava nas atividades da escola e até ocupava os momentos em que os alunos ficavam sem aulas, quando algum professor faltava. Apesar de ser novo no colégio, Ricardo já conquistara a simpatia das crianças.

A funcionária tinha razão. Ricardo, que também tinha uma chave da sala, acedeu ao pedido das crianças e abriu-lhes a porta, lê-se no processo consultado pelo Observador. Os seis precipitaram-se para o interior da sala e quatro das crianças dirigiram-se de imediato para o quadro, onde começaram a escrever as mensagens com que queriam surpreender a professora. Um deles, porém, ficou para trás. João (nome fictício) foi inesperadamente interpelado por Ricardo, que o pegou ao colo e o convidou a sentar-se numa das cadeiras. A criança, atónita, respondeu-lhe que não podia ser: devido à Covid-19, os alunos não estavam autorizados a sentar-se nos lugares dos colegas. Ricardo perguntou-lhe então qual era o seu lugar habitual, e João dirigiu-se até à mesa do fundo da sala, onde se costumava sentar nas aulas.

O caso que ocorreu no Colégio Marista de Carcavelos em outubro de 2020 deu origem à investigação judicial

Facebook Colégio Marista de Carcavelos

Ricardo indicou-lhe que se sentasse — e sentou-se ele próprio de seguida à sua frente. Discretamente, Ricardo pegou na mão da criança e puxou-a para o seu pénis, forçando-o a massajá-lo por cima das calças. O desconforto da criança era visível. Na parte da frente da sala, os colegas, que continuavam a escrever mensagens no quadro de giz, olhavam discretamente para trás e percebiam que algo de estranho se estava a passar. Enquanto obrigava a criança a tocar-lhe, por cima das calças, no pénis, Ricardo perguntou-lhe:

— É grande, não é?

Gelado, João não respondeu. Nessa altura, a criança conseguiu libertar-se para se juntar aos colegas no quadro. Mas Ricardo não desistiu. Levantou-se e disse ao grupo de crianças:

— Olhem, a professora Sofia está ali a chegar!

O grupo precipitou-se para fora da sala para ir em busca da professora aniversariante, mas Ricardo ficou para trás e puxou João. Assim que ficaram sozinhos dentro da sala de aula, o auxiliar fechou a porta, que a partir do exterior só abre com recurso a chave. Era mentira: a professora Sofia não estava nas redondezas e, assim que se aperceberam disso, as crianças voltaram a correr para a sala. Quando lá chegaram, perceberam que o auxiliar estava trancado no interior da sala, porque o viram através da pequena janela de vidro no topo da porta — e bateram, em busca do amigo que tinha ficado para trás.

Ricardo respondeu que não, que estava sozinho, mas perante a insistência das crianças a porta abriu-se e o pequeno João, de 11 anos, surgiu atrás do auxiliar, que foi embora do local. Graças à chegada rápida dos colegas, Ricardo não avançou mais.

A criança contou, então, aos amigos os pormenores do que lhe tinha acontecido minutos antes — e ainda lhes revelou que aquela não tinha sido a primeira vez.

Cerca de uma semana antes, Ricardo tinha feito algo parecido. João estava num corredor da escola a divertir-se enquanto arremessava uma garrafa de água em frente ao gabinete de uma outra professora do colégio quando a docente o repreendeu e castigou, ordenando-lhe que ficasse quieto à porta do gabinete. Resignado, João encostou-se à parede exterior do gabinete e ali ficou cerca de 10 minutos, até passar por ali Ricardo, que o interpelou. Colocando-se à frente de João, Ricardo comprimiu a criança contra a parede, pegou na mão do menor e puxou-a em direção ao seu pénis. João tentou resistir, mas sem sucesso: não tinha como lutar contra a força do jovem de 18 anos. Com a mão encostada às calças do auxiliar, João diz que sentiu o pénis de Ricardo, que lhe perguntou se estava a gostar. A criança não respondeu. Pediu-lhe apenas que o deixasse ir para as aulas — e Ricardo acedeu. Envergonhado com o que tinha acontecido, mas também confuso, porque gostava de Ricardo e achava toda aquela atitude muito estranha, João não contou nada a ninguém durante cerca de uma semana.

A história chocou as colegas, que pensaram que precisavam de agir rapidamente. Falaram com João. “Ele contou tudo o que aconteceu”, escreveria mais tarde uma das raparigas numa folha manuscrita em que contou os detalhes do caso aos professores do colégio, e que hoje se encontra arquivada no Tribunal de Cascais, no processo judicial que se seguiu. “Dissemos-lhe que tínhamos que comunicar isto a um adulto.”

O diretor do colégio ouviu a história da boca do próprio João, que lhe contou os dois episódios de abuso que tinha sofrido, e das três alunas, que acrescentaram pormenores sobre o episódio da sala de aula.

As três raparigas que tinham testemunhado os abusos convenceram João de que era necessário falar com os professores. O primeiro passo foi contar de imediato à diretora de turma, a professora que queriam surpreender com mensagens de parabéns pelo seu aniversário. No final da aula de Matemática, a disciplina a cargo da professora Sofia, o grupo aproximou-se da docente para lhe contar o que tinha acontecido. A professora percebeu de imediato a gravidade da situação e levou as crianças à coordenadora do 2.º ciclo, a professora Maria Antónia Ruas — que, por sua vez, decidiu que o caso tinha de ser encaminhado para o diretor do colégio, o professor Félix Lopes.

A história chegou aos ouvidos do diretor cerca de duas horas depois da situação ocorrida na sala de aula. Por volta das 15h30 daquele mesmo dia, 10 de novembro de 2020, Félix Lopes foi chamado de urgência ao gabinete da coordenadora do 2.º ciclo, onde encontrou, além de Maria Antónia Ruas, a professora Sofia, João e as três amigas. O diretor do colégio ouviu a história da boca do próprio João, que lhe contou os dois episódios de abuso que tinha sofrido, e das três alunas, que acrescentaram pormenores sobre o episódio da sala de aula.

Félix Lopes percebeu que estava na presença de um caso de abuso de menores e acionou de imediato o projeto “Contigo”, o protocolo interno daquela escola católica para lidar com casos de abusos — à semelhança do que acontece em múltiplas instituições da Igreja Católica que, nos últimos anos, adotaram programas de proteção e prevenção em resposta à crise dos abusos sexuais de menores na Igreja. O primeiro passo foi pedir às quatro crianças que escrevessem tudo aquilo de que se lembravam e entregassem as folhas de papel à coordenadora do 2.º ciclo. Na mesma tarde, o diretor da escola telefonou à mãe de João para a informar do que se tinha passado, para lhe explicar os procedimentos internos de averiguação que estavam previstos e para disponibilizar apoio psicológico à criança e à família.

Na manhã seguinte, antes do início das aulas, logo pelas 7h45, o diretor do colégio chamou Ricardo ao seu gabinete para o questionar sobre o caso. O auxiliar negou os relatos das crianças, argumentando que só tinha ido à sala para dar a sua opinião sobre as mensagens escritas no quadro. Félix Lopes determinou, então, que era necessário esclarecer o que se tinha passado e ordenou-lhe que fosse para casa: estava suspenso de funções até à clarificação do caso.

Mas o diretor do colégio não sabia que a história estava longe de ficar por ali. Entretanto, a situação do dia anterior já começara a circular entre as crianças do colégio e fizera acordar outras histórias adormecidas. Por volta das 10h daquele dia, depois de dispensar Ricardo das suas funções, o diretor recebeu no seu gabinete os pais de duas outras crianças que, na noite anterior, lhe tinham contado que também eles haviam sofrido abusos às mãos de Ricardo, que os sentava no colo e lhes tocava nos genitais.

Félix Lopes pediu a estes pais que também escrevessem tudo aquilo que tinham ouvido dos filhos e, perante o agigantamento do caso, o diretor do colégio convocou uma reunião de urgência da direção. Nessa reunião, os membros da direção confirmaram a suspensão de Ricardo e determinaram a abertura de um processo disciplinar ao auxiliar.

Um professor suspenso e uma queixa em 48 horas

Na manhã seguinte, cerca de 48 horas depois da situação da sala de aula e já com Ricardo suspenso, o diretor do colégio telefonou ao serviço Escola Segura, da PSP, para comunicar o caso. A partir desse primeiro contacto, tudo avançou rapidamente: poucos dias depois, a Polícia Judiciária já estava no terreno, no trilho do passado de Ricardo.

Nos primeiros dias da investigação, porém, a PJ descobriu que o caso era muito maior do que parecia à partida: Ricardo já tinha abusado antes, numa escola pública — e as denúncias anteriores tinham sido ocultadas e tratadas dentro de portas tanto pela escola como pela junta de freguesia responsável pelo pessoal encarregado das atividades extracurriculares.

O diretor do colégio contactou o serviço Escola Segura, da PSP, que deu início à investigação do caso

Filipe Amorim/Global Imagens

Ricardo também não esperou pela averiguação da escola. Logo no dia 12 de novembro mandou uma carta aos serviços da escola a apresentar a sua demissão alegando sobrecarga de funções. “As funções para o qual fui contratado para exercer [sic] são muitas desgastantes e ao final das horas de trabalho diário fico exausto, pondo em causa a minha saúde mental”, escreveu na carta que consta no processo e em que descreve “funções em simultâneo entre a informática, comunicação e audiovisual”. Terminou negando qualquer possível acusação que lhe viessem a fazer. “Refuto toda e qualquer acusação negando os factos que me são imputados”, escreveu.

O nome de Ricardo não constava nas fichas de informação da polícia. Esta foi a primeira conclusão da PJ assim que tomou conta das suspeitas que agora recaíam sobre ele. Era um jovem de 18 anos, nascido e criado na zona de Alcabideche, que recentemente até tinha ganhado o prémio Bolsa de Talentos da Câmara Municipal por causa de um projeto que desenvolvera sozinho. O feito valeu-lhe algumas entrevistas locais e juntou-se a um currículo de atividades em que participou desde pequeno, como o curso em arbitragem em futsal, voluntariado e o curso técnico de vídeo.

Mais tarde, o tribunal viria a concluir que Ricardo vivia com os pais e o irmão mais novo, de 11 anos, e que até então não havia a assinalar nenhum “comportamento desviante na adolescência e juventude”, como se lê no acórdão do Tribunal da Relação de junho.

Sem pistas, a PJ decidiu então contactar a junta de freguesia para que Ricardo tinha trabalhado antes de chegar ao Colégio Marista. E a resposta revelou aquilo que ninguém esperava: o professor tinha sido afastado de funções depois de uma queixa de abuso sexual feita por uma mãe à escola pública onde trabalhava, que nunca fora comunicada às autoridades policiais até àquele momento.

O presidente da junta foi célere a enviar à polícia o conjunto de emails trocados nessa altura entre escola, mães e departamento da educação da autarquia. E adicionou um currículo que mostrava que, antes, Ricardo tinha dado catequese na Escola Salesiana de Manique — onde a PJ iria depois, mas sem encontrar qualquer suspeita.

A denúncia que a escola pública não fez

Exatamente duas semanas antes do aniversário da diretora de turma do 6.ºA do Colégio Marista de Carcavelos, a desconfiança em torno de Ricardo começava a 10 quilómetros dali, na Escola Básica n.º 1 de Birre, em Cascais, pela voz de um rapaz de 7 anos.

Como sempre, V., de nacionalidade brasileira, ia buscar o filho e o sobrinho à escola, depois entregava o primeiro na casa da irmã e seguia viagem. Naquela tarde de terça-feira, dia 27 de outubro de 2020, o filho chegou da escola nervoso. Ela ainda lhe perguntou o que se passava, mas ele só responderia depois de ficar a sós com a mãe.

“Assim que deixei o meu sobrinho ele disse: ‘Mamãe, eu não quero ir mais para a escola. O professor Ricardo mexeu na minha pilinha’”, recordou V. ao Observador. Incrédula, avisou o filho de que se o que ele estivesse a dizer fosse falso, ela e o marido “podiam ir presos”. Mas a criança insistiu. “Eu portei-me mal, fui ao quadro e quando voltei ele pegou-me ao colo e mexeu-me na pilinha”, conta agora, por telefone, ao Observador.

Professores admitem que não ensinam História como gostariam, revela relatório

Foi na Escola Básica n.º 1 de Birre que surgiu a primeira denúncia — mantida longe dos olhares da polícia até ao caso dos Maristas

Site do Agrupamento de Escolas da Cidadela

Assim que chegou a casa, pediu ao filho para contar ao pai o que tinha acontecido e ficou, na cozinha, a ouvir. A descrição era exatamente a mesma. Decidiu contactar imediatamente a escola. Às 18h31 desse mesmo dia, enviou um email à professora titular do 2.º ano da escola de Birre. “Boa noite  professora olha aconteceu uma situação hoje cm [o meu filho] na escola e eu preciso falar cm a senhora, obrigada”, escreveu a mulher, no email que consta no processo crime e que o Observador consultou.

A professora Alexandra Ribeiro, responsável pelo 2.º ano, só viu a mensagem por volta das 21h00, hora a que tentou telefonar à mulher para perceber o que se passava — mas sem sucesso.

Na manhã seguinte, por volta das 9h, V. e o marido foram à escola. As regras da pandemia obrigavam a marcação prévia, mas perante a urgência do tema acabaram por ser recebidos pela professora do filho, uma técnica e um outro professor.

“Isso não pode ter acontecido. O [aluno] é uma criança que se porta muito mal na sala. Ele confundiu”, responderam-lhe, de acordo com o relato que a mãe faz dos acontecimentos, em conversa com o Observador.

V. e o marido insistiram. Conheciam bem o comportamento do filho, mas do mau comportamento a uma acusação destas a distância era enorme. “Eles duvidaram o tempo todo. Nunca acreditaram”, acusa, passados dois anos desde aquele dia, e com o caso provado em tribunal. Do lado da escola, onde ainda hoje o assunto está arrumado sem um único pedido de desculpa, pediram-lhe uma semana para resolver a situação.

Junta de freguesia ainda procurou outra escola para o suspeito

Um dia depois deste encontro, o próprio professor apresentaria a sua versão dos factos num e-mail enviado à responsável pela educação na junta de freguesia. Contava que tinha apenas tocado inadvertidamente no joelho da criança e que o que V. e o marido declararam não tinha acontecido.

No conjunto de e-mails que constam do processo, segue-se um email da coordenadora da junta para a direção da escola e do agrupamento a avisar que teve conhecimento do caso e que a escola devia explicar o que ia fazer. Há também um email do presidente da junta a pedir que se “tomem medidas adequadas” e a perguntar se foi apresentada queixa à polícia. Foram tomadas algumas medidas, mas a informação nunca chegou à polícia.

A responsável pela educação da junta, Teresa Nery, reuniu-se então com a direção do agrupamento da escola e, num email enviado ao autarca, deu conta das conclusões. Uma delas passava por mudar o professor Ricardo de escola para “sanar possíveis inseguranças”. Ricardo só não foi então transferido para outra escola pública porque o único horário disponível “não era compatível com a disponibilidade de Ricardo”, como se lê.

Teresa Nery referiu também que foram ouvidos os alunos que estavam presentes no dia dos alegados abusos, referindo que as crianças terão dito que “apenas” viram o colega sentado ao colo de Ricardo (o que ele negara). A responsável deu conta de que informou a escola das consequências de uma denúncia “tão grave” e informou que o professor deixaria de desempenhar funções na escola.

Nesta informação, Teresa Nery escreveu mesmo que, se o “boato” circulasse, poria em causa a idoneidade da escola e da junta. E que o próprio professor poderia apresentar uma queixa por difamação. “A escola considera que o assunto deverá ser sanado com a maior rapidez possível, bem como consideram que o professor, embora jovem, é adequado, e demonstraram disponibilidade para falar com o prof.”, lê-se no email enviado.

"Disseram que andaram a averiguar e que a situação não tinha sido assim. Que o professor era um rapaz muito novo e tinha um excelente currículo. Que era melhor não fazer nada porque ia acabar com a reputação dele, porque era muito conhecido na cidade, assim como a família."
V., mãe de uma das vítimas

V. foi contactada pela escola cerca de uma semana depois da sua denúncia. Nessa reunião, além da professora e da coordenadora da escola Cecília Lima, estiveram presentes também a coordenadora da educação da junta de freguesia, responsável pelo recrutamento dos professores das AEC.

“Disseram que andaram a averiguar e que a situação não tinha sido assim. Que o professor era um rapaz muito novo e tinha um excelente currículo. Que era melhor não fazer nada porque ia acabar com a reputação dele, porque era muito conhecido na cidade, assim como a família. Que o meu filho devia ter entendido alguma coisa mal e para ficarmos sossegados que ele tinha ido para outra escola”, diz hoje ao Observador.

O marido de V. ainda perguntou se a escola achava “justo” mudar um suspeito para outra escola, mas de nada valeu. “Saímos de lá chocados sem saber o que podíamos fazer, porque quem podia defender duvidou. Na altura só eu tinha visto de residência. O meu marido e o meu filho só tinham passaporte. Não tinha provas. Achei que a polícia também não iria acreditar”, conta agora, por telefone, ao Observador.

O nome de Ricardo chega à PJ pelos Maristas. E a junta de freguesia acaba a colaborar com a polícia

Duas semanas depois, em meados de novembro, ainda a tentar que o filho voltasse à escola sem medos, V. recebeu um telefonema dos inspetores da PJ que investigavam o caso de abusos nos Maristas. Nesse momento, percebeu que os seus receios se tinham concretizado. Na outra escola onde o professor trabalhava havia relatos quase iguais aos do seu filho. Era a prova de que não mentira, como aparentemente tinham pensado.

Nessa altura, V. partilhou a sua história no grupo de WhatsApp que tinha com as mães dos colegas do filho. E uma delas relatou que também o filho tinha falado de um toque suspeito por parte de Ricardo, mas ela achou que a criança podia ter interpretado mal. Esta mãe acabaria por comunicar as suas suspeitas à escola e apresentar queixa na polícia.

“A PJ ouviu o meu filho no agrupamento e depois ele foi chamado para prestar declarações em tribunal”, para memória futura. “Quando cheguei é que percebi que havia cerca de meia dúzia de vítimas de outra escola”, recorda V.

O Observador questionou o Ministério da Educação sobre estes episódios. A tutela lembra que o caso reportado se refere a um técnico sem contrato com o Ministério da Educação. Ricardo era contratado pela Junta para dinamizar as aulas extracurriculares nas instalações da escola primária. O Ministério da Educação refere que, “quando a Direção da Escola tomou conhecimento, através da Junta de Freguesia, já o técnico não se encontrava ao serviço. Contudo, a escola comunicou à autoridades os factos constatados, tendo reunido posteriormente com inspetores da Polícia Judiciária”.

O processo judicial conclui, porém, que não foi bem assim. A direção tomou conhecimento do caso pelos pais da criança logo no dia seguinte aos abusos. Ricardo informou a junta da sua intenção de se desvincular daquela escola e só depois a instituição e a freguesia comunicaram entre si, por iniciativa da segunda. E a Direção da Escola só reuniu com a Polícia Judiciária a pedido desta, depois de ter sido chamada a uma denúncia semelhante nos Maristas — como provam todos os autos que constam do processo e que contêm os emails e as informações então trocadas.

Nem a escola que João frequentava nem a junta de freguesia, presidida por Pedro Morais Soares (CDS), alguma vez reportaram às autoridades a denúncia de abuso de que tinham tido conhecimento. A junta garante não ter desvalorizado os factos. "Pelo contrário, adotou medidas preventivas imediatas, suspendendo o monitor, disponibilizando à família os serviços de apoio psicológico e colaborando com as autoridades."

O Ministério da Educação garante que, de acordo com a lei, “disponibiliza a todos os diretores, através da Direção Geral dos Estabelecimentos Escolares (DGAE), informação clara sobre um conjunto de procedimentos obrigatórios a serem seguidos, designadamente a necessidade de anualmente solicitarem os registos criminais de todos os trabalhadores que prestam a sua atividade na sua unidade orgânica”. Caso haja algum registo de condenação, deve o trabalhador (docente ou não docente) suspender o trabalhador. No entanto, esta regra levanta desde logo um problema: entre as suspeitas da prática de eventuais abusos, a detenção e uma possível condenação, podem passar anos. E só quando o processo está resolvido é integrado no registo criminal.

O Ministério da Educação não respondeu se existem diretivas claras e quais são disponibilizadas às escolas para levar em linha de conta quando existe uma suspeita de abuso sexual. O Observador também não obteve qualquer resposta da Escola Básica n.º 1 de Birre ou do Agrupamento para saber se desde a ocorrência deste caso os procedimentos mudaram.

O Observador questionou a junta de freguesia sobre por que razão não tinha avançado com uma queixa à polícia quando soube de tudo. Segundo o gabinete de comunicação da União de Freguesias de Cascais e Estoril, assim que a freguesia “teve conhecimento da denúncia, o monitor em prestação de serviços foi imediatamente suspenso”. “A partir desse momento não teve mais qualquer contacto com a escola e crianças”, lê-se.

Mais tarde, quando contactada pela PJ, a freguesia entregou toda a informação que tinha sobre o caso.

Quanto à reunião em que tanto a responsável pela educação da junta de freguesia como a coordenação da escola tentaram demover os pais da vítima de apresentar queixa, não houve resposta. A junta de freguesia, presidida por Pedro Morais Soares (CDS), garante não ter desvalorizado os factos. “Pelo contrário, adotou medidas preventivas imediatas, suspendendo o monitor, disponibilizando à família os serviços de apoio psicológico e colaborando com as autoridades”.

Uma postura que contrasta com a adotada pelo Colégio Marista, que implementou desde o primeiro minuto os protocolos internos de proteção de menores — incluindo a comunicação às autoridades. “A proteção da infância é para nós uma prioridade e um compromisso institucional desde a nossa fundação e um compromisso pessoal de todos os que formamos parte da instituição marista”, disse ao Observador fonte oficial da Província de Compostela do Instituto dos Irmãos Maristas, que tem a jurisdição sobre esta congregação em Portugal e parte de Espanha.

“Trabalhamos todos os dias com políticas, protocolos, equipas e especialistas na proteção da infância com o objetivo de que as nossas obras educativas sejam espaços seguros. O Projeto CONTIGO [nome do protocolo de proteção de menores em vigor na congregação] explana a política de proteção da infância da Província Marista Compostela e é aplicado em todos seus colégios e obras sociais. Inclui, entre outras coisas, formação aos educadores, compromisso de boas práticas e sensibilização a toda a comunidade educativa”, explica ainda a congregação.

Segundo a organização religiosa, “o caso de Carcavelos foi acompanhado pela Equipa Contigo Local em estreita ligação e com a colaboração da Equipa Contigo Provincial”. “Foram sempre aplicados os protocolos da política institucional e ofereceu-se toda a colaboração às autoridades competentes. Aplicámos os nossos protocolos. Acolhemos e escutámos as vítimas; atuámos com celeridade e com firmeza; informámos os pais dos menores e as autoridades; informámos toda a comunidade educativa, sendo transparentes e criando confiança”, refere o gabinete do irmão Máximo Blanco, superior da Província Compostela da Congregação dos Irmãos Maristas.

“Aplicámos todos os protocolos tendo sempre como objetivo a defesa e a proteção da infância. O mal é que tenha acontecido. Se houve algo bom, foi o facto de termos reagido rapidamente, uma vez detetados os indícios, aplicando os protocolos”, acrescentou o gabinete. “Os procedimentos de seleção de pessoal estão em contínua atualização, melhorando e aprendendo sempre com cada situação.”

O Instituto dos Irmãos Maristas foi uma das instituições onde a crise dos abusos de menores na Igreja teve maior expressão em Espanha. Pelo menos em dois momentos da história recente a imprensa espanhola revelou escândalos de grande dimensão naquela instituição: em 2016, o jornal El Periódico revelou dezenas de casos de abuso naquela congregação, o que esteve na origem do pagamento de uma indemnização de 400 mil euros a 25 famílias de vítimas; mais recentemente, em 2021, o El País revelou mais dezenas de casos ocorridos nos colégios maristas. No total, em Espanha, há indicação de pelo menos 71 casos de abuso em 29 colégios.

Em resposta à crise de credibilidade que se aprofundou nos últimos anos, os Irmãos Maristas lançaram o projeto Contigo e implementaram protocolos estritos de proteção das crianças nas suas instituições.

Seis anos de cadeia e indemnização às vítimas

Ao longo do processo, Ricardo só prestou declarações uma vez: pouco depois de ser detido. Sobre o aluno da escola pública, recusou que o tivesse sentado ao seu colo — como relatou a vítima e corroboraram os seus colegas de turma. Segundo ele, o aluno sentou-se numa cadeira e, como ficou perto dele, quando se levantou tocou-lhe “sem querer” no joelho. Já no episódio que ocorreu nos Maristas, alega que os colegas conheceram a sua história anterior e que as crianças “terão ouvido”, acabando por denunciá-lo quase como que replicando uma história.

O caso foi julgado no Tribunal de Cascais

Carlos Manuel Martins/Global Imagens

Ao longo de todo o restante processo, incluindo no julgamento, remeteu-se ao silêncio.

Ricardo cumpre agora uma pena de prisão de seis anos por um total de 14 crimes de abuso sexual agravado e cinco outros crimes de abuso sexual na forma tentada. O Tribunal da Relação de Lisboa confirmou que sete meninos foram abusados por ele e que ele tentou ainda abusar de três outros.

O acórdão, porém, não foi unânime. Uma das juízas acabou por votar vencida, alegando que a idade do agressor (18 anos) permitiria que a sua ressocialização fosse feita em liberdade, defendendo uma condenação por pena suspensa.

Os juízes do tribunal superior, ainda assim, baixaram-lhe a pena. Antes de chegar à Relação, Ricardo fora condenado a uma pena de prisão de oito anos e, como pena acessória, fora impedido durante 20 anos de trabalhar com crianças ou sequer tomar conta delas ou ser seu tutor.

No acórdão assinado pelos juízes Fernando Ventura e Maria José Machado não restam dúvidas, porém, daquilo que o suspeito fez às crianças. “Estes menores descreveram os factos que se passaram, com cada um deles, de forma objetiva e circunstanciada, segura e consistente”, lê-se. Os juízes não levantaram qualquer questão em relação à falta de memória de alguns pormenores. “A vida não acontece em fotogramas selecionáveis em que a data e o local dos factos aparecem e permanecem congelados na memória de cada um.”

Ricardo está preso numa prisão destinada a jovens em Leiria. Faz faxina na biblioteca e está a fazer terapia. Ainda quer tirar um curso superior na área da Comunicação Social.

O arguido foi ainda condenado a pagar uma indemnização a cada uma das vítimas.

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