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Na última semana de outubro, a poucos dias do início da 27.ª Conferência das Nações Unidas sobre as Alterações Climáticas (COP27), no Egito, o Twitter lançou discretamente uma nova conta institucional: a @TwitterEarth. O primeiro tweet, publicado no dia 1 de novembro, dizia apenas: “Olá, Terra.” No segundo, publicado no mesmo dia, a conta disse ao que vinha. “O Twitter é a voz da COP27. Participe no debate, usando as hashtags #COP27, #TogetherForImplementation e #JustAndAmbitious”, lia-se na mensagem, acompanhada de uma publicação da própria COP27 que anunciava a criação de um emoji comemorativo da cimeira climática.
https://twitter.com/TwitterEarth/status/1587472046698549249
Estava lançada uma parceria entre a COP27 e o Twitter, a rede social que se apresentou desde as origens como “a praça pública global”, para estimular o debate público sobre a sustentabilidade, o ambiente e o combate às alterações climáticas durante as cimeira da ONU. Porém, ao fim de apenas três dias e seis tweets, a conta ficou totalmente inativa. O último tweet foi publicado no dia 3 de novembro — ainda antes de a COP27 começar formalmente — e a conta nunca mais teve qualquer atividade. Durante mais de um mês, ficou-se pelos cerca de 500 seguidores e a cimeira da ONU decorreu sem que tivesse sido dado qualquer seguimento ao debate iniciado naquele espaço digital.
Em poucos dias, percebeu-se que o súbito desaparecimento da conta @TwitterEarth esteve relacionado com a compra da rede social pelo multimilionário Elon Musk. Nos jornais, entre o final de outubro e o início de novembro, já se começavam a desenhar os contornos da “era Musk” no Twitter: despedimentos em massa, a proibição do trabalho remoto e o início da venda de contas verificadas (o célebre visto azul). Nos primeiros dias como dono do Twitter, Musk despediu executivos e quase metade dos trabalhadores.
Entre os despedidos estavam Casey Junod e Sean Boyle, dois dos principais responsáveis pelo setor da sustentabilidade na empresa. No dia 4 de novembro, um dia depois do último tweet da @TwitterEarth, Casey Junod, gestor na equipa de sustentabilidade global da empresa, anunciava publicamente o fim da sua passagem pelo Twitter. “Obrigado pelas memórias”, escreveu. No mesmo dia, Sean Boyle, o ex-responsável do Twitter pelo setor da sustentabilidade, publicou apenas uma fotografia alusiva à rede social com a legenda “adora o local onde trabalhaste”. A conta @TwitterEarth mantém-se em silêncio até hoje.
A história da compra do Twitter por Elon Musk começou no início deste ano, quando o empresário que fundou empresas como a Tesla ou a SpaceX começou a dar sinais públicos de que pretendia criar ou comprar uma rede social. Em abril, soube-se que Musk tinha, discretamente, comprado quase 73,5 milhões de ações do Twitter, tornando-se no maior acionista individual da empresa. Mais tarde, Musk anunciou a sua intenção de comprar a rede social, por um valor fixado nos 44 mil milhões de dólares — um processo que ficaria terminado no final de outubro após vários meses de grande controvérsia em torno do negócio.
Elon Musk e Twitter. Os capítulos de uma aquisição com contornos de novela
Durante a sua campanha para comprar o Twitter, Elon Musk apresentou-se como um defensor absoluto da liberdade de expressão, atacou a rede social por controlar excessivamente os conteúdos permitidos e deixou pistas sobre a intenção de readmitir Donald Trump (que foi banido depois da invasão do Capitólio, em janeiro de 2021). Ao longo dos últimos meses, Musk deu a entender que pretendia mudar radicalmente o Twitter, afrouxando a moderação de conteúdos.
Nos primeiros dias depois da compra, oficializada a 28 de outubro, Elon Musk afastou o CEO e a maioria dos principais executivos, deu início a uma vaga de despedimentos e começou a implementar as ideias que promovera nos meses anteriores. Em poucos dias, os efeitos começaram a sentir-se: a frequência do discurso de ódio aumentou significativamente (já há dados concretos que o mostram) e o debate em torno das alterações climáticas transformou-se de modo radical. Por um lado, as teorias da conspiração, as notícias falsas e o negacionismo da ciência climática começaram a ganhar terreno; por outro, intensificaram-se os ataques de ódio contra ativistas e ambientalistas. Os dados são da CAAD, um grupo de organizações ambientais que monitorizam a desinformação climática na internet.
Mais recentemente, um novo impacto começou a sentir-se: vários cientistas, investigadores, académicos e ambientalistas começaram a abandonar a rede social. Como noticiou recentemente o jornal britânico The Guardian, vários académicos, habituados a usar o Twitter como plataforma de divulgação científica, decidiram reduzir ou mesmo terminar por completo a sua presença na rede social, devido à gradual transformação do Twitter num ambiente tóxico que não favorece a discussão baseada em factos. Muitos estão a transferir-se para o Mastodon, a nova rede social que se está a assumir nos últimos tempos como uma alternativa ao Twitter.
Entre “toots” e “boosts”, pode o Mastodon ser mesmo uma alternativa europeia ao Twitter?
Desinformação climática no Twitter bateu recordes
A face mais visível das mudanças implementadas por Elon Musk no Twitter ao longo das últimas semanas foi a intensificação do discurso de ódio na rede social — que já pode ser medida com números concretos. Segundo o The New York Times, que cita um estudo realizado pela organização britânica Centre for Countering Digital Hate, pela organização internacional judaica Liga Anti Difamação e por outras instituições internacionais, o recurso a insultos racistas contra cidadãos afro-americanos disparou de 1.282 ocorrências diárias antes da compra do Twitter por Elon Musk para 3.876 ocorrências diárias após a conclusão do negócio — ou seja, mais do triplo.
Já os insultos dirigidos aos homossexuais subiram de 2.506 ocorrências diárias para 3.964 depois da compra do Twitter. Por fim, registou-se uma subida de 61% das publicações antissemitas com referências concretas ao Judaísmo nas duas semanas seguintes à aquisição. Trata-se, segundo os especialistas que elaboraram o relatório, de uma subida sem precedentes do ódio online — e os investigadores acreditam que a abordagem “absolutista” de Elon Musk ao conceito de liberdade de expressão está por trás da subida em flecha. “Elon Musk enviou a todo o tipo de racistas, misóginos e homofóbicos o Bat-Signal de que o Twitter estava aberto. E eles responderam apropriadamente”, disse ao jornal americano o presidente do Centre for Countering Digital Hate, Imran Ahmed.
Ao mesmo tempo, a difusão de desinformação sobre as alterações climáticas também tem vindo a aumentar no Twitter desde a compra da rede social pelo fundador da Tesla. Embora seja genericamente conhecido o posicionamento de Elon Musk em defesa do clima e a política de sustentabilidade do Twitter não tenha sofrido alterações formais, a verdade é que o clima em que a rede social mergulhou nas últimas semanas está associado a um aumento da desinformação sobre a realidade das alterações climáticas.
O cancelamento da conta @TwitterEarth e o despedimento de dois dos principais responsáveis pela área da sustentabilidade da empresa foram um primeiro sinal do desinvestimento da empresa neste setor. A investigadora britânica Jennie King, responsável pela investigação em desinformação climática no think tank internacional Institute for Strategic Dialogue, explicou recentemente à Euronews que, nos últimos anos, eram visíveis os “progressos” no envolvimento do Twitter com a causa climática, inclusivamente com a criação de um “tópico especial sobre o clima durante a COP26, que ajudava os utilizadores a descobrir conteúdos confiáveis”. Estes progressos ter-se-ão agora esfumado.
“Infelizmente, todos os nossos intermediários já se foram embora, na sequência dos tumultos e demissões na empresa nas últimas duas semanas”, acrescentou Jennie King, salientando que ao longo do último mês o negacionismo climático ganhou expressão na rede social. Alguns dados foram recolhidos e sistematizados pela CAAD (Climate Action Against Disinformation), um grupo de organizações internacionais de ambiente que se dedica à monitorização da desinformação climática.
Uma das principais tendências detetadas pela CAAD foi a grande disseminação dos chamados “testes de censura”. Na prática, muitos dos utilizadores mais radicais, motivados pela retórica de Elon Musk em defesa de uma liberdade de expressão absoluta e contra a moderação dos conteúdos (que classifica como censura), são encorajados a replicar publicações incendiárias ou falsas — só para ver se são ou não retiradas pelo Twitter. A maioria, incluindo inúmeras alegações de que as alterações climáticas são um embuste, não tem sido removida. “Houve um aumento dos trolls e das contas que se sentiram encorajadas por este novo ethos de liderança”, disse Jennie King à Euronews.
23832
Tweets com a hashtag #climatescam em novembro de 2022. Mais do dobro do que aconteceu em outubro e 17 vezes mais do que a média mensal de 2021.
850000
Tweets e retweets com linguagem associada ao ceticismo face às alterações climáticas feitos em 2022. Um número muito superior aos 650 mil de 2021 e aos 220 mil de 2020
Outro problema prende-se com o Twitter Blue, o serviço de subscrição paga lançado no ano passado pela rede social que ofereceu aos subscritores funcionalidades como a possibilidade de editar um tweet 30 segundos depois da publicação. Recentemente, Elon Musk aumentou o preço da subscrição para oito dólares mensais e criou a possibilidade de os utilizadores pagarem pelo visto azul que certifica que se trata de uma conta verificada (anteriormente atribuído por decisão do Twitter a contas de entidades oficiais, empresas, figuras públicas, etc.). Várias contas anónimas dedicadas à disseminação de notícias falsas adquiriram a verificação e passaram a usar a maior credibilidade associada a essas contas para aumentarem o alcance da desinformação.
Outra análise, realizada recentemente pelo Centre for Countering Digital Hate a pedido do jornal inglês The Times, dá números concretos desta realidade. Em primeiro lugar, através de uma análise estatística de tweets e hashtags, os investigadores concluíram que 2022 foi o ano com maior número de conteúdos relacionados com o ceticismo acerca das alterações climáticas desde a criação da rede social — e novembro, o primeiro mês da liderança de Elon Musk, bateu todos os recordes. A principal hashtag usada pelos negacionistas das alterações climáticas, #climatescam, foi usada 23.832 vezes em novembro deste ano. Trata-se de mais do dobro do que tinha acontecido no mês anterior (10.041), sendo que outubro deste ano já era o ponto máximo de uma tendência crescente no uso desta referência, que se tinha começado a registar a partir do verão deste ano, altura em que a possibilidade de Elon Musk comprar o Twitter ganhava expressão.
Antes, a mesma hashtag surgia em média entre 1.000 e 1.500 vezes por mês — à exceção dos meses de outubro e novembro do ano passado, em que rondou as 3.000 vezes, na altura em que se realizou a COP26, em Glasgow. Nos últimos dias, a hashtag #climatescam era o primeiro resultado devolvido pela pesquisa na rede social, à frente de outras hashtags, como #climatecrisis ou #climateemergency.
NEW
— Adam Vaughan (@adamvaughan_uk) December 3, 2022
Climate-sceptic tweets have surged since @elonmusk's Twitter takeover
• UN's @MelissaFleming "alarmed" at "out-and-out climate change denial"
• @KHayhoe: “Climate denial on Twitter was already a dumpster fire... it had a litre of gas thrown on it"https://t.co/mO77FdSBM8 pic.twitter.com/K2S2KlKycQ
O grande fluxo de tweets com notícias falsas e desinformação sobre as alterações climáticas durante a COP27, além de ser uma manifesta contradição com a intenção original do Twitter de ser “a voz da COP27”, como enunciado nos primeiros dias da já defunta conta @TwitterEarth, está também a preocupar as Nações Unidas. “Estamos alarmados com os relatos de um fluxo de desinformação climática no Twitter durante a COP27. Ficámos particularmente perturbados pelo facto de o conteúdo ser diferente — não eram apenas as táticas habituais de adiamento e distração. Foi muito pior”, disse recentemente a subsecretária-geral da ONU Melissa Fleming, que tem a pasta da comunicação global, citada pelo The Times. “As publicações continham a negação total e completa das alterações climáticas, incluindo teorias da conspiração de que a crise climática é um embuste.”
Uma outra análise ao conteúdo da rede social, realizada por investigadores da City University of London, pinta um cenário amplamente negro quanto à evolução do discurso de ceticismo face às alterações climáticas no Twitter. Só este ano, já houve 850 mil tweets e retweets com linguagem associada ao negacionismo ou ceticismo das alterações climáticas, um valor bastante superior aos 650 mil em 2021 e aos 220 mil em 2020. Um aumento que, dizem os investigadores por trás do estudo, não é proporcional ao aumento do número global de utilizadores na rede social nos últimos dois anos.
Musk, o “absolutista da liberdade de expressão”
Os recordes de desinformação climática no Twitter não podem, em boa verdade, ser atribuídos a um posicionamento anti-climático do próprio Elon Musk. O criador da Tesla tem, ao longo dos anos, defendido que as alterações climáticas são uma das principais ameaças existenciais que a humanidade enfrenta (a par da baixa natalidade) — e, com a Tesla, foi um dos principais impulsionadores do mercado da mobilidade elétrica. Apesar de já ter comprado algumas guerras com os ambientalistas, designadamente por defender o recurso à energia nuclear e por ter admitido que no momento extraordinário da invasão russa da Ucrânia era necessário aumentar a produção de gás e petróleo.
No entanto, independentemente do seu posicionamento pessoal sobre o assunto, e a par dessa posição que sempre manteve, Elon Musk tem-se assumido como um “absolutista da liberdade de expressão” — isto é, um defensor da liberdade de expressão a qualquer custo. Essa era, aliás, a grande crítica de Musk ao Twitter antes de o comprar: a rede social estava politicamente enviesada (à esquerda) e abusava na moderação do conteúdo, adotando uma atitude de censura relativamente a uma grande quantidade de conteúdos. A título de exemplo, uma das primeiras medidas de Musk como líder do Twitter foi a recuperação da conta de Donald Trump — que tinha sido banido da rede social depois do ataque ao Capitólio em janeiro de 2021, por se considerar que as publicações do antigo Presidente no Twitter contribuíram para inflamar os ânimos.
Outro dos regressos de peso foi o do canadiano Jordan Peterson, que alcançou notoriedade mediática devido aos seus posicionamentos polémicos sobre temas fraturantes como os direitos das mulheres e das pessoas LGBT, o racismo ou as alterações climáticas. Em janeiro deste ano, por exemplo, numa entrevista ao igualmente polémico Joe Rogan, Peterson fez um conjunto de alegações falsas sobre as alterações climáticas, afirmando até que “o clima não existe”. O canadiano foi suspenso do Twitter em julho por ter violado as regras de conduta da rede social — e regressou agora, já no consulado de Musk.
Em poucos dias, a liberdade de expressão absoluta defendida por Elon Musk — que discorda abertamente das antigas políticas de moderação de conteúdos da rede social — começou a traduzir-se num aumento do discurso de ódio, do negacionismo da ciência e da desinformação. O antigo Presidente americano Donald Trump foi um dos primeiros a reagir à compra do Twitter por Musk: “Estou muito contente por o Twitter estar agora em mãos saudáveis e deixar de ser gerido pelos lunáticos e maníacos da esquerda radical que odeiam verdadeiramente o nosso país.”
O primeiro aspeto em que a liderança de Elon Musk se fez sentir foi na objetiva redução da moderação de conteúdos no Twitter: com a vaga de despedimentos (cerca de 3.700 trabalhadores foram despedidos, quase 50% do total da empresa), há literalmente menos pessoas a trabalhar na moderação de conteúdos, além de vários dos mecanismos automáticos de filtragem das publicações terem sido desativados. Mais recentemente, Musk anunciou a criação de um “conselho de moderação”, um grupo de pessoas com várias origens ideológicas que deverá definir as novas políticas de moderação de conteúdos da empresa.
É uma “falha induzida” no controlo da qualidade dos conteúdos, explica ao Observador o académico italiano Vania Baldi, professor no ISCTE e investigador no OberCom — Observatório da Comunicação, que tem investigado a desinformação nas redes sociais. Baldi fala numa “transformação na governance propagandeada com uma retórica assente na liberdade de expressão — na moldura em que esta expressão continua a ser enunciada pelo Elon Musk —, em que qualquer tipo de discurso pode ser admitido”, e que contribuiu decisivamente para “legitimar” todo o tipo de discursos, até o discurso de ódio e a negação de factos científicos.
“Esta retórica, conjugada com a eliminação dos instrumentos automatizados e do pessoal competente para avaliar constantemente os conteúdos, permite que os disparates e o discurso de ódio que antes tentavam penetrar na esfera do Twitter agora continuem a entrar e, mesmo que não tenham aumentado as tentativas, podemos dizer que aumentou a visibilidade deste discurso”, explica Baldi. Ou seja, mesmo que o número de utilizadores que tentam quebrar as regras não tenha aumentado, o número de utilizadores que conseguem passar pelos filtros (agora quase inexistentes) aumentou substancialmente.
Confrontado com as críticas, Elon Musk dirigiu no final de outubro uma mensagem aos anunciantes do Twitter a garantir que não pretende liberdade de expressão a todo o custo. “O motivo pelo qual comprei o Twitter é porque é importante para o futuro da civilização que exista uma praça pública digital comum, onde um grande espectro de crenças possa ser debatido de forma saudável, sem recurso à violência”, escreveu Musk numa mensagem publicada no Twitter. “Atualmente, existe o grande perigo de as redes sociais se estilhaçarem em câmaras de ressonância da extrema-direita e da extrema-esquerda, que geram mais ódio e dividem a nossa sociedade.”
“Na implacável procura dos cliques, a maioria dos media tradicionais alimentaram e serviram estes extremos polarizados, uma vez que acreditam que é isso que traz o dinheiro, mas, ao fazê-lo, perde-se uma oportunidade para o diálogo”, escreveu ainda Musk. “Foi por isso que comprei o Twitter. Não o fiz porque seria fácil. Não o fiz para fazer mais dinheiro. Fi-lo para tentar ajudar a humanidade, que adoro. E faço-o com humildade, reconhecendo que falhar na busca deste objetivo, apesar dos nossos melhores esforços, é uma possibilidade muito real.”
Musk garantiu ainda que, mesmo numa perspetiva de grande liberdade de expressão, haverá sempre limites. “Dito isto, o Twitter não pode, obviamente, tornar-se um inferno aberto a todos, em que tudo pode ser dito sem consequências! Além de aderir às leis locais, a nossa plataforma tem de ser acolhedora para todos”, assegurou Musk.
É aqui que o investigador Vania Baldi vê uma incoerência e pergunta quais são os limites que Musk pretende implementar. Por exemplo, no caso de Donald Trump, que está a ser investigado pelo Congresso americano pelo seu papel no incitamento à violência que conduziu à invasão do Capitólio em 6 de janeiro de 2021 (e vários tweets publicados por Trump nesse dia estão a ser usados como provas nessa investigação), Elon Musk considerou que a decisão tomada pelo Twitter no sentido de banir Trump foi “um erro grave”, uma vez que o antigo Presidente dos EUA “não violou a lei e os termos do serviço”. “Tirar a plataforma a um Presidente em funções minou a confiança de metade dos EUA no Twitter”, disse Musk. Na altura, o Twitter justificou a expulsão de Trump com o facto de o antigo Presidente ter violado várias normas internas da rede social, que “pretendem evitar a glorificação da violência que possa inspirar outros a replicar atos violentos”.
Por outro lado, já sob a liderança de Elon Musk, o Twitter suspendeu a conta do rapper americano Kanye West depois de o músico (que já tinha admitido que gostava de Hitler) ter publicado uma imagem de uma cruz suástica sobreposta a uma estrela de David. “Ele violou novamente a nossa regra contra a incitação à violência. A conta vai ser suspensa”, justificou Elon Musk.
“Musk baniu aquela celebridade do rap pelos seus comentários antissemitas. É até mais curioso, porque ele é o árbitro”, disse Vania Baldi ao Observador. “É ele que decide quais as personalidades que podem transgredir e quais não podem. Fica ainda mais arbitrário.”
A política de liberdade de expressão absoluta de Elon Musk, que contribui para uma legitimação dos discursos violentos e da desinformação, cria um “contexto que funciona como luta de gladiadores, onde não há regras nem respeito pelos factos”, diz Baldi. “Eu posso continuar a negar algo que todas as fontes confirmam ser verdade. Na rede, se isto se transforma num discurso militarizado com repercussões violentas na rua, então faz sentido desligar o microfone. Num contexto democrático, ter regras não significa ser submisso, escravizado, amarrado ou limitado nos pensamentos. Significa que não posso ter a liberdade de perverter os outros princípios.”
Cientistas em fuga
Em sentido contrário ao aumento da desinformação sobre as alterações climáticas e à intensificação do discurso de ódio, está a verificar-se um gradual desaparecimento dos cientistas, investigadores e académicos — que se sentem cada vez menos à vontade no Twitter.
Ao jornal britânico The Guardian, a académica Twila Moon, investigadora do National Snow and Ice Data Center, onde se dedica ao estudo da cobertura gelada da Gronelândia, explicou que tem vindo a reduzir a sua presença no Twitter. “Desde a compra de Musk, diminuí o meu próprio uso do Twitter e uso-o menos tanto para pesquisar notícias como para partilhar ciência”, disse a investigadora, salientando que o aumento do negacionismo e da desinformação climática na rede social é “particularmente preocupante” e “pode abrandar a ação climática de um modo que será devastador para as economias, as comunidades e a saúde”. Moon disse ainda estar preocupada com a perspetiva de colapso da rede de contactos entre cientistas que foi criada através do Twitter.
Outros cientistas, como os climatologistas americanos Michael Mann e Kim Cobb, confirmaram ao The Guardian estar a notar uma diminuição considerável do número de publicações de cientistas no Twitter. Ambos já criaram contas no Mastodon e estão, gradualmente, a transferir o debate científico para essa nova rede social.
“Entrámos numa nova era de debate em torno das alterações climáticas, em que há uma confiança diminuída e não há interação entre grupos que discordam”, disse àquele jornal britânico o investigador Andrea Baronchelli, da City University of London, um dos autores de um estudo recente que comparou o debate climático no Twitter durante a COP26 (Glasgow, 2021) e a COP15 (Paris, 2015). As conclusões do estudo são reveladoras: em 2021, as posições anti-climáticas quadruplicaram face a seis anos antes. “Quem está num campo não está necessariamente exposto às perspetivas do outro campo a não ser para gozar com elas.”
Mark McCaughrean, astrónomo na Agência Espacial Europeia, foi um dos cientistas que ao longo dos últimos anos ganharam destaque no Twitter. Com 16 mil seguidores, McCaughrean usou durante anos a rede social para divulgar conhecimento científico sobre o planeta e o Universo — mas, nas últimas semanas, a sua conta tem estado particularmente pouco ativa. A 18 de novembro, o astrónomo anunciou que os seus seguidores poderiam continuar a acompanhá-lo no Mastodon. Depois do “crepúsculo do Twitter”, o “mundo das redes sociais vai erguer-se de novo, limpo e fértil, e os sobreviventes vão encontrar-se noutro lugar para repopular a internet”, ironizou McCaughrean.
À revista Science, o astrónomo explicou que a transformação do Twitter devido à compra da rede social por Elon Musk o deixou preocupado com a crescente disseminação de informação falsa e anti-científica. “A dada altura, decidi que não queria apoiar pessoalmente o ecossistema dele”, afirmou. Outro cientista, o biólogo Carl Bergstrom, que tem 163 mil seguidores no Twitter, disse à Science que também já criou uma conta no Mastodon e que planeia começar a usá-la primordialmente — embora ainda não tenha abandonado por completo o Twitter.
“O anúncio dos cientistas que dizem que não querem estar na mesma plataforma onde estão aqueles que negam a ciência pode ter a ver com a ideia de quererem criar nichos digitais, contextos digitais onde pode ir quem quer informação mais baseada em factos”, diz ao Observador o investigador Vania Baldi. “Os cientistas estão a sair [do Twitter] como saíram da Rússia depois da invasão da Ucrânia, com a lógica de não quererem ser considerados cúmplices de um contexto que está a perder garantias.”
Mas não só. Os cientistas também estão a abandonar o Twitter por a rede social se estar a transformar gradualmente num ambiente hostil para eles — uma transformação que já vinha sendo registada ao longo dos últimos dois anos, sobretudo durante a pandemia da Covid-19. De acordo com estudos recentes, a pandemia foi um dos principais catalisadores para o discurso de ódio especificamente dirigido a cientistas nas redes sociais. Um estudo publicado na revista Nature em outubro de 2021, a partir de um inquérito a cientistas que protagonizavam uma discussão ativa nas redes sociais sobre a Covid-19, mostrou que a esmagadora maioria dos cientistas foi alvo de ataques, com destaque para ameaças de violência — e até ameaças de morte, que foram recebidas por 15% dos cientistas que participaram no estudo.
Um outro estudo, mais recente, publicado pela revista Science, a partir de um inquérito generalizado a cientistas que estudaram a Covid-19 (com ou sem exposição pública), mostrou uma realidade semelhante, com 38% dos cientistas envolvidos no estudo da Covid-19 a terem sido alvo de algum tipo de assédio online.
Esta realidade crescente intensificou-se nas últimas semanas, depois da compra do Twitter por Elon Musk, e está a contribuir para a grande migração de cientistas para outras paragens da internet, como escreve a revista Science: “Com a incerteza sobre como o Twitter vai mudar com Musk, muitos dos milhares de especialistas médicos e científicos na plataforma começaram a procurar alternativas ou estão a ponderar desistir totalmente das redes sociais. (…) Muitos investigadores têm publicado as suas novas contas do Mastodon e a encorajar outros a segui-los para aquele site, que ganhou mais de 100 mil novos utilizadores em poucos dias depois de Musk completar a sua compra.”
Para trás, os cientistas estão a deixar uma rede social marcada pelo “populismo” do seu novo dono, diz Vania Baldi. “O discurso muito ideológico de Elon Musk sobre a liberdade de expressão, as sondagens feitas por ele, são coisas do populismo que fazem pensar no Coliseu Romano de há 2 mil anos”, diz o investigador, referindo-se às muitas sondagens que Musk faz na sua conta de Twitter e que, aparentemente, usa como sustentação de várias das suas decisões. Por exemplo, Musk fez sondagens para saber se devia ou não recuperar a conta de Donald Trump (ganhou o “sim” com 51,8% dos mais de 15 milhões de votos) e para saber se a rede social deveria dar uma amnistia geral às contas suspensas (também ganhou o “sim”, com 72,4% dos mais de três milhões de votos). Musk acompanha várias vezes estas sondagens com a expressão latina “Vox Populi, Vox Dei” (voz do povo, voz de Deus), para sugerir a ideia de que os utilizadores é que, agora, mandam no Twitter — uma ideia forçada que tem valido duras críticas ao dono da Tesla e agora do Twitter.
Os últimos dias têm sido agitados no Twitter, com Elon Musk a continuar a disparar contra os antigos donos da rede social. No final da semana passada, vieram a público os “Twitter files”, um conjunto de documentos internos que ilustram como a rede social procurou censurar e bloquear informação sobre a polémica que envolveu Hunter Biden, o filho de Joe Biden, e os documentos encontrados num computador pessoal que apontavam para negócios internacionais suspeitos.
Em contrapartida, a conta @TwitterEarth, criada para impulsionar a defesa do clima no Twitter, continua parada e o projeto ficou em suspenso. Sophia Kianni, a ambientalista iraniano-americana que fundou a ONG Climate Cardinals, revelou em novembro que a sua organização — que se dedica à tradução de informação sobre as alterações climáticas, com milhares de voluntários em todo o mundo — tinha sido abordada pela equipa de sustentabilidade do Twitter para trabalhar no projeto com a rede social. “Depois, sem qualquer aviso, eles foram despedidos”, disse Kianni.
My nonprofit @ClimateCardinal worked on a project with @Twitter’s sustainability team
Then, without warning, they were fired.
In the middle of the most important climate moment of the year.
— Sophia Kianni (@SophiaKianni) November 11, 2022
Segundo explicou a ambientalista à Vice World News, a organização seria responsável pela tradução de conteúdos em múltiplas línguas para serem publicados na conta @TwitterEarth, mas o projeto nunca chegou a avançar. “As plataformas como o Twitter são fundamentais para chamar a atenção para a necessidade da ação climática e para levar informação sobre o clima às massas”, afirmou Kianni. “O Twitter permitiu-me alcançar milhões de pessoas e é uma ferramenta poderosa para aumentar a visibilidade de causas de justiça social.”
“É uma desilusão que a oportunidade de ter um canal oficial do Twitter para informação credível sobre o clima tenha sido tirada da equação”, lamentou a ativista. “Poderia ter um impacto realmente grande no combate à desinformação que frequentemente circula desenfreadamente nas redes sociais.”