Rui Tavares, deputado único eleito pelo Livre e dirigente mais reconhecido daquele partido, considera que o Governo ainda vai a tempo de mudar o Orçamento do Estado. Se nada for feito, avisa o antigo eurodeputado, António Costa não poderá contar sequer com a abstenção. “O Livre já anunciou o voto contra se nada de substancial mudar”, antecipa.
Em entrevista ao Observador, no programa “Sob Escuta”, Rui Tavares reconhece que a perda real nos salários e o corte no aumento das pensões é o preço a pagar por alguma “prudência” que importa ter num cenário de inflação. À esquerda, Bloco e PCP anteciparam o voto contra precisamente por esses motivos, mas o deputado do Livre não recua: “Já se percebeu que BE e PCP têm a sua maneira de estar na política.”
No futuro, o Livre admite que pode apresentar propostas no sentido de agravar a carga fiscal de empresas com poucos trabalhadores e muita mão de obra robotizada; e para aqueles que, tendo frequentado o ensino superior, tenham mais rendimentos. “São discussões a ter em conta”, admite.
Mas é mesmo na reta final da entrevista que Rui Tavares falou — ainda antes da demissão do secretário de Estado Adjunto do primeiro-ministro — do momento mais delicado que o PS atravessa. “Considero que o caso oferece muitas dúvidas e que tem de ser esclarecido. E ao oferecer muitas dúvidas também oferece dúvidas sobre a capacidade de Miguel Alves continuar. É um caso que parece bastante sério e que o Livre quer ver esclarecido”, advertia então o fundador do Livre, longe de adivinhar que horas depois estaria consumado o afastamento de Miguel Alves do Governo.
[Veja aqui a entrevista na íntegra a Rui Tavares]
“É importante que o Governo mude alguma coisa de substancial”
O Livre absteve-se na votação na generalidade do Orçamento. Admite abster-se também na votação final perante um Orçamento que implique cortes nos salários reais da Função Pública, como acontece agora?
O Livre deliberou, de forma bastante clara, que iria optar pela abstenção na generalidade — porque achamos que o Orçamento deve ser discutido e melhorado — e, se nada mudar, votar contra na votação final global.
O que é que quer dizer com “nada mudar”?
É importante que mude alguma coisa de substancial.
Mas mantendo-se um corte nos salários reais da Função Pública, admite abster-se?
Repare: a estratégia do orçamento é uma estratégia do governo, não fui eu que a decidi.
Certo: mas o voto do Livre é decidido pelo partido.
O voto do Livre não terá em conta o conseguir mudar a estratégia global do Orçamento, porque aí passaria a ser um voto a favor. O que o Livre pretende obter são mudanças substanciais para apoio àqueles que estão a sofrer mais com o aumento do custo de vida (na alimentação, na energia), com o alargamento do programa 3C — Casa, Conforto e Clima para aumentar o conforto térmico na casa das pessoas…
Só para perceber: um Orçamento com cortes nos salários reais da Função Pública, com cortes nos aumentos das pensões e que tenha como pilares fundamentais a redução da dívida pública e do défice pode ter a abstenção do Livre?
A redução da dívida pública e do défice, em nosso entender, é importante mas devia ser feita a outro ritmo. O que diferencia a leitura do Livre da leitura do Governo no atual momento económico é que o Governo subestima o perigo de recessão — e, por isso, dá prioridade à consolidação orçamental.
Vamos ser mais diretos: um Orçamento com cortes nos salários reais da Função Pública e com cortes nos aumentos das pensões pode ter a abstenção do Livre?
A inflação come sempre nos rendimentos reais das pessoas. O que precisamos de fazer é impedir que isso aconteça a quem mais sofre e tentar alargar, tanto quanto possível, a recuperação de rendimentos e a mitigação dos efeitos da inflação. O Livre tem um deputado em 230, não conseguirá fazer para toda a gente. Se assegurarmos que os mais vulneráveis não sofrem tanto com os efeitos da inflação e se conseguirmos que as contas das pessoas possam bater mais certo ao fim do mês — dando prioridade aos transportes públicos, a ajudas no custo da energia, às obras na casa para poupar na energia, tudo que tem a ver com as famílias e gastos com as crianças e tentando que o mínimo de pessoas perca rendimentos — isso serão mudanças substanciais.
“Perda nos salários e pensões? Alguma prudência orçamental não é errada”
Perante este Orçamento, com cortes nos salários reais e com cortes nos aumentos das pensões e com a prioridade dada à dívida e ao défice, o PCP e o BE foram muito rápidos a anunciar que votariam contra. Admitindo, como já admitiu, que o Livre não tem ainda força eleitoral para mudar estruturalmente o Orçamento, não seria mais transparente anunciar já o voto contra?
Mas o Livre anunciou o voto contra — se nada de substancial mudar.
Mas já admitiu que o governo não vai mudar esta estratégia.
Seria difícil que um partido com um deputado em 230 conseguisse mudar a estratégia global de Orçamento do Governo. Mas, para o Livre, a discussão não é entre quem acha que gastar é sempre bom e quem acha que cortar é sempre bom. Estamos num momento peculiar da economia, que já não vivíamos há muito tempo. Para o Livre, era necessário dar um cheirinho de acelerador à economia e não travar a fundo porque estamos numa curva. De tanto querer a consolidação orçamental, o Governo corre o risco, se houver uma recessão, de perder também o controlo do Orçamento, como aconteceu no passado.
Não percebe que BE e PCP anunciem já o voto contra?
Não há nada mais transparente do que aquilo que o Livre fez. O que não percebo é: quem votou a favor de Orçamentos do PS (o Livre nunca o fez) que cumpriam com as regras do Tratado Orçamental e tinham consolidação orçamental até para lá do que este tem.
Este é o primeiro Orçamento que prevê uma perda real de salários e um corte no aumento das pensões.
Mas temos que distinguir entre um Orçamento que esteja numa época inflacionária e de guerra na Europa e Orçamentos que estavam em épocas de crescimento.
Portanto, depreendo que compreende estas medidas do Governo nos salários e nas pensões.
Estamos a viver um momento em que alguma prudência orçamental não é errada.
À custa de salários e pensões.
Não, não é à custa de salários e pensões. Já disse qual é que seria a estratégia do Livre: apoiar através dos rendimentos a economia, evitando ao máximo que ela entrasse em recessão. Achamos que a estratégia do Governo tem alguns riscos. No entanto, não estamos a discutir entre quem acha que gastar é sempre bom e que cortar é sempre bom. A maior parte dos portugueses entende duas coisas: o nosso país é socialmente frágil e que ter salários mais altos e ter uma economia de alto valor acrescentado não se faz do dia para a noite; no entanto, a inflação apareceu do dia para a noite. Tal como as subidas nas taxas de juro do Banco Central Europeu, das euribor, na prestação de casa… Não há nenhum país do mundo que não esteja a reagir aos acontecimentos.
“Já se percebeu que BE e PCP têm a sua maneira de estar na política”
Uma das medidas que o Livre quer ver inscrita neste Orçamento do Estado é a questão do passe ferroviário nacional com preço único para todo o país, como foi feito na Alemanha. O ministro Pedro Nuno Santos já disse que isso é impossível porque não há capacidade para transportar mais passageiros. Ficou convencido?
Não fiquei completamente convencido. Aquilo que defendemos é que, num momento em que as pessoas estão com dificuldades, ajudemos a poupar naquilo que mais custa às pessoas e, ao mesmo tempo, as ajudemos a abandonar o automóvel.
Mas o ministro Pedro Nuno Santos diz que não há capacidade para transportar mais passageiros.
Esse é um problema real. Mas por exemplo: o que acontece é que há muita gente que já foi expulsa não só das cidades como das regiões suburbanas e que vêm da Azambuja ou de Tomar para trabalhar em Lisboa e os passes são muito caros; para andar na linha regional do Algarve, chegam aos 80 euros, não são competitivos com o automóvel. Há muita coisa que se pode fazer.
Isso já é uma proposta totalmente diferente daquela que apresentou.
Sim, mas o Livre faz propostas como gostaria de as ver implementadas.
Mas é irrealista. Não há comboios suficientes para meter lá as pessoas.
Isso dizem vocês.
Não, diz o ministro. E pareceu-me que estava a concordar com ele. Portanto, é uma proposta irrealista.
Não é irrealista. É realista de uma forma faseada. O irrealista neste momento é sempre irrealista até que passa a ser realista. O que sabemos é que temos de ajudar as pessoas. Um passe ferroviário nacional a um preço reduzido, já amanhã, seria o ideal; mas podemos começar por um passe ferroviário nacional que, por exemplo, funcione nos comboios regionais.
“Não me passa pela cabeça que Governo falhe às vítimas de violência doméstica”
No OE2022, o PS incorporou uma proposta do Livre sobre o alargamento do subsídio de desemprego a vítimas de violência doméstica e ao cônjuge de alguém que se mudasse para o interior. Em troca, o Livre absteve-se. Mas, entretanto, essa medida está parada. O PCP e o Bloco tinham razão quando diziam que o PS não cumpre as suas promessas?
A medida não está parada.
Falta regulamentar. Já estamos a discutir um novo Orçamento do Estado e ainda não houve nenhum avanço concreto.
Estamos a discutir o novo Orçamento do Estado. Estamos em 2022 e a aplicar o Orçamento do Estado para 2022. Estamos muito atentos à execução. Se virmos, até ao dia da votação final global que aquilo que conseguimos em 2022 não está a ser cumprido e que o que não está a ser cumprido não tem boas razões para não estar, isso influencia o voto final.
A questão é que o Bloco de Esquerda e o PCP também diziam sempre que estavam atentos à execução e depois as medidas não eram executadas.
A esta altura do campeonato já se percebeu que o Bloco de Esquerda e o PCP têm a sua atitude e maneira de estar na política que é absolutamente legítima. Reconheço a legitimidade do Livre ter a sua atitude e maneira de estar na política. Somos muito transparentes em relação ao que dizemos em geral é que influencia a votação final global do Orçamento 2023 sabermos se as medidas de 2022 estão a ser cumpridas ou não. Estamos a fazer essa análise com o Governo, não se constrói confiança para estar a discutir 2023 se o que discutimos há uns meses não estiver a ser implementado.
No concreto, em que ponto estão?
Não conseguimos tudo o que queríamos em relação ao alargamento do subsídio de desemprego. De três categorias conseguimos uma, para as vítimas de violência doméstica. Em relação aos casais que se mudam para o interior o que foi acordado foi uma majoração ao abrigo do programa Interior Mais, está a ser implementada. Para as licenças de formação, está em discussão na Concertação Social. Para as vítimas de violência doméstica, em setembro, o Governo disse-nos que seria através de decreto, em posterior análise perceberam que era preciso alterar o código do trabalho. O que é preciso é que esteja em vigor e implementado o mais depressa possível. Não seria falhar ao Livre ou à Assembleia da República; seria falhar às vítimas de violência doméstica e isso seria gravíssimo. Não me passa pela cabeça que se possa falhar numa promessa deste género.
Essas três questões têm que estar fechadas antes da votação final do Orçamento?
Se uma depende da Concertação Social confiamos que todos acham bom que os trabalhadores se qualifiquem. Precisamos é de saber o que está a ser implementado, o que é que tem algum atraso e porquê e o que não conseguiu ser implementado e o motivo. O Livre é um partido razoável. O que o Livre está a construir na Assembleia da República é um percurso que passa por credibilizar o partido e defender propostas da esquerda verde europeia que faça o eleitorado desejar ter em Portugal um partido médio, já seria bom, como há noutros países. Para isso temos que ter fiabilidade e previsibilidade. Do outro lado, ao Governo, exige-se o mesmo. Seja na Assembleia da República ou na Câmara Municipal de Lisboa, com a direita, um tipo de oposição leal e pedimos o mesmo.
Outra das propostas que está atrasada é o programa 3C – Casa, Conforto e Clima. Em setembro, dizia que nada tinha sido implementado. Já há novidades?
O programa 3C também é um programa em que vamos por partes para conseguir o que o Livre sempre defendeu. É preciso que Portugal faça um grande esforço para resolver os problemas que temos e outros países já resolveram. Há gente que morre no inverno em Portugal porque tenta aquecer a casa de forma insegura.
Mas o Governo está a cumprir ou não?
O Governo está a implementar, mas sempre dissemos que o Governo devia adiantar o dinheiro, pelo menos para as categorias de mais baixos rendimentos que não têm capacidade para enfrentar a burocracia nem o dinheiro disponível. Além do crédito fiscal para as empresas.
As propostas do Livre são conhecidas, importa é perceber a que é que o Governo deu resposta.
O Governo deu resposta a partir do Fundo Ambiental, fez avisos do vale eficiência para as categorias de mais baixo rendimentos. Ao abrigo do qual há avisos de 100 milhões de euros já públicos que não estão a ter a toma desejada por parte das pessoas. O que nós prevíamos.
Por causa da burocracia e porque a proposta do Livre de o Estado adiantar o valor não vingou?
Exatamente. E é por isso que queremos alargar ao 3C.
Mas em setembro estava insatisfeito com a implementação da medida. Agora já está satisfeito?
Continuo insatisfeito e até lhe digo uma coisa: em setembro do próximo ano também vou estar porque este problema não se vai resolver de um dia para o outro.
Portanto, o Governo não está a incumprir aquilo com que se comprometeu consigo.
O Governo comprometeu-se com menos do que aquilo que eu desejaria, mas está a cumprir.
Vamos falar de outras propostas…
Mas há uma coisa nova de que se tem falado muito pouco, e até é pena, que é o programa Repower EU, que são mais 700 milhões para tudo o que tem a ver com energia em Portugal. Quando foi o PRR, falou-se muito, houve o relatório Costa Silva, houve um debate público importante e no Repower não está a haver. O que o Livre quer é que uma parte substancial do Repower EU seja, em 2023, para o programa 3C. E, portanto, queremos que essa parte seja pelo menos equivalente ao que já está nos avisos. Que haja o adiantamento. Ou seja: que as pessoas recebam primeiro para fazer as obras. E estamos a lutar porque o tal crédito fiscal de 10%, que sempre achámos que fazia a diferença, porque põe as empresas do setor a irem ter, nos bairros, nas nossas cidades e vilas e aldeias.
“Propinas devem ser abolidas.” Mais ricos podem ter acréscimo de imposto? É uma discussão”
Defendeu a criação de um fundo de apoio aos estudantes do Ensino Superior, que seria financiado através de um aumento de impostos. Mas seria um aumento que incidiria sobre as pessoas que, para usar a sua expressão, tenham “beneficiado do ensino superior e rendimentos muito acima da média”. Porque é que só alguém que tenha “beneficiado do ensino superior” é que pagaria este aumento?
Defendo um debate sobre um novo modelo de financiamento do Ensino Superior. Não tenho as respostas todas em cima da mesa. Mas acho que há três pilares para um novo modelo de financiamento do Ensino Superior que são muito importantes, nomeadamente se quisermos verdadeiramente abolir as propinas e eu quero. Mas não basta dizer que vamos abolir as propinas amanhã, é preciso saber como financiar as universidades e como fazer isto de uma maneira que não seja disruptiva para o Ensino Superior, pelo contrário que melhore o Ensino Superior. Pode passar pela criação de um fundo estratégico de investimento no Ensino Superior para que os reitores não tenham que andar a negociar ministro a ministro. E este fundo pode vir da atividade económica que beneficia do aumento das qualificações da força de trabalho. Pode ser através da consignação de uma parte do IRC.
E mais?
O Estado assegurar as despesas de funcionamento das universidade, através do Orçamento do Estado. As pessoas muitas vezes dizem: ‘Porque é que vamos abolir as propinas e vamos meter aqueles que nunca beneficiaram do ensino superior a pagar os estudos dos filhos de quem beneficia do Ensino Superior ou pagar os estudos de alguém que, fazendo o Ensino Superior, vai beneficiar de um emprego melhor e de um salário mais alto.’ Mas este argumento não é verdadeiro porque muita gente faz o ensino superior e não tem um salário mais alto.
Alguém que não tenha frequentado o ensino superior mas tenha muito dinheiro não contribui.
Mas esse está a pagar através do Orçamento do Estado as despesas de funcionamento da Universidade.
Certo. Mas essa pessoa não tem este acréscimo de imposto.
Acho que não é um debate impossível de se ter. É um debate sobre a possibilidade de quem já fez o ensino superior público e, de facto, tem rendimentos acima da média, poder dar uma parte do seu imposto — que pode ser através dos 0,5% que damos voluntariamente a ONGs ou pode ser mesmo uma parte do IRS. Se me diz se eu teria todo o gosto em fazer isto para um fundo de apoio ao estudante de ensino superior para pagar cantinas, bolsas de estudo e refeitórios, eu pessoalmente, sim. É um debate moral de justiça geracional.
Mas só para perceber: alguém que tem rendimentos muito altos mas não frequentou o ensino superior não paga. Alguém que frequentou o ensino superior privado também não paga esse acréscimo de impostos.
O Livre defende que o IRS seja ainda mais progressivo. Não somos a IL, que defende uma flat tax. Ou seja, quero que os ricos, com ou sem ensino superior, quem tem mais altos rendimentos, pague mais, porque pode mais e o país precisa disso.
Estamos a falar num adicional de imposto.
Acho que há um debate a fazer: então e quem beneficia do ensino superior? Deve pagar já, enquanto está a frequentar o ensino superior? E eu digo: não. As propinas devem ser abolidas porque há muita gente obrigada a desistir do curso por dificuldades financeiras. Pode pagar mais à frente, no seu futuro, quando está a beneficiar da qualificação que teve e que todos financiámos através das despesas de financiamento e que o pode fazer? Será voluntário, através de uns 0,5% como fazemos com ONGs e IPSS? É uma discussão.
Isso é diferente, não é um aumento de imposto.
Claro, mas aumento de imposto não foram palavras minhas.
A sua proposta surgiu no âmbito de ter ser necessário mais dinheiro para o ensino superior.
Não é uma proposta… Precisamos de meter mais dinheiro no ensino superior e devemos todos colaborar nesse esforço. E quero que propinas sejam abolidas. E fazer um debate no qual haja caminhos para que nem os reitores fiquem sem futuro para planear, nem as faculdades fiquem sem papel higiénico por problemas de financiamento, nem deixemos os estudantes mais vulneráveis — os que precisaram de bolsas de estudo, como eu, que sempre estudei com bolsas de estudo. E não me importo, se for do primeiro decil de rendimentos, de colaborar nas bolsas dos que vieram depois de mim. Isso faz sentido moral e é um debate que vale a pena ter.
“Costa está a pôr o carro à frente dos bois na sustentabilidade da segurança social”
Defende um aumento das pensões de acordo com a lei, o que implica uma despesa extra em relação ao aumento desenhado. Pretende financiar isso com um novo imposto, que incidiria sobre empresas com lucros muito altos mas que têm uma força de trabalho relativamente reduzida, por usar inteligência artificial, robótica ou software. Que números tem na cabeça quando fala em força de trabalho relativamente reduzida e lucros muito altos?
Temos a vida facilitada nisso porque há um grupo de trabalho do Governo a trabalhar nisso. A coisa correta a fazer do ponto de vista moral e da confiança pública é: se acham que o adiantamento das pensões deve ser dado agora, dêem; deixem em letra de lei que as pensões para 2024, 2025, etc, vão contar com esse adiamento na base de incidência de cálculo e as pessoas não perdem; e apresentem o estudo que prometeram — estão há sete anos no Governo, já deveriam tê-lo feito. Vamos ter de rever a forma de financiamento da Segurança Social.
Mas, para o Livre, o que é uma “força de trabalho relativamente reduzida” e o que são “lucros muito altos”?
Isso estou à espera de ver de acordo com o grupo de trabalho que o Ministério do Trabalho e Segurança Social tem sobre isto. O que o primeiro-ministro nos disse, com números não muito convincentes, é que se mantiver os aumentos de pensão de acordo com a lei, os 26 anos que temos de pé de meia da Segurança Social diminuem 13 anos. Se isto for verdade, é uma coisa que deve preocupar toda a gente. Mas acho que o primeiro-ministro está a pôr o carro à frente dos dois. Tem de cumprir a lei e, com o resultado desse estudo olhar para a frente e para novas fontes de financiamento da Segurança Social. Cabe ao Governo ser franco. Têm de dizer, com essa análise: dá para cumprir a lei, ou não dá.
Estávamos a olhar em concreto para uma proposta que apresentou e a tentar perceber como é que ela funciona e se ajudaria a resolver o problema e de que maneira.
Toda a gente sabe que com as mudanças no mundo do trabalho, a inteligência artificial e a robótica vai substituir mais trabalhadores e, no tempo das ciberempresas, não podemos fazer como no tempo da Ford e das linhas de montagem. É uma análise que está a ser em todo o mundo ao mesmo tempo. O que estranho é que, antes de completar o seu estudo, o Governo já tenha dito que mantendo a lei não dá, quando a sua obrigação é dizer que ‘a lei é para ser mantida, o estudo está para sair, vamos ver o que se consegue recuperar através de novas formas de financiamento’. É ao Governo que compete essa honestidade e essa clareza.
José Vieira da Silva, ex-ministro da Segurança Social do PS, criticou essa proposta e considerou-a um instrumento de conservadorismo que pode impedir a inovação tecnológica. Discorda?
Que eu saiba, Vieira da Silva considera que a transição para novas fontes de financiamento da Segurança Social é positiva.
As críticas dele são em relação a propostas como esta que fez.
Que me lembre, em 2015, na campanha do Livre das legislativas, num debate sobre esta assunto em que contámos com José Vieira da Silva ele concordou que há uma reflexão a fazer sobre novas fontes de financiamento, disse que não tinha fetichismo pela fórmula de atualização de pensões que estava na sua lei. Estamos a falar em abstrato, como se fosse um jogo do puxar a corda entre os partidos e o Governo, mas as pessoas, os pensionistas e os futuros pensionistas, querem duas coisas: que o que lhes foi prometido seja cumprido, segurança no curto prazo; mas também no longo prazo. E vai haver um momento da história da nossa força de trabalho que vamos ter menos gente a contribuir do que os pensionistas que teremos. Acho que toda a gente percebe que quanto maior for o pé de meia da Segurança Social, melhor.
“Tenho dúvidas sobre a capacidade de Miguel Alves para continuar no Governo”
Em abril deixou uma espécie de aviso ao PS de que a maioria absoluta não deveria ser sinónimo de falta de abertura para o diálogo. Um partido que chumbou 16 audições de membros do Governo em seis meses é um partido disponível para o diálogo e para o escrutínio?
O PS tem de pensar muito bem na forma como gere a sua maioria absoluta. Há sinais contraditórios. No ano passado, descrevi as negociações para o OE, em termos de metodologia, como adequadas, um adjetivo um bocadinho lacónico. Este ano, devo dizer que, em termos de metodologia, as coisas melhoraram muito e já não diria só que foram reuniões adequadas, foram reuniões boas. Construtivas, atempadas, com os ministérios que pedimos.
Noutro plano…
Noutro plano, vejo o PS chumbar demasiadas coisas de valor. Do Livre, do BE, do PCP, do PAN, da IL, de quem quer que seja. Acho que não há necessidade e pergunto-me se é falta de comunicação entre grupo parlamentar do PS e o Governo, estão à espera que o primeiro-ministro diga alguma coisa para saber se podem aprovar ou não? Dou um exemplo sobre a Euribor: o Livre apresentou uma proposta para que as pessoas possam ir para a taxa fixa; foi aprovada, mas o PS absteve-se, o PSD absteve-se, a IL absteve-se e o Chega absteve-se. Passou com uma votação incomum no Parlamento. Nos debates com o primeiro-ministro, o Governo nunca a mencionou e agora vem com uma proposta que parece a mesma coisa mas que não garante que os bancos sejam obrigados a fazer oferta à taxa fixa. É isto desejável numa maioria absoluta? Não, não é e o PS tem de ter cuidados porque percebemos que há grandes desafios das democracias. Quem tem uma maioria absoluta tem uma absoluta responsabilidade de fazer a democracia funcionar à mesma com abertura, com os outros partidos, porque o que pode vir aí no futuro é muito pior. Espero que estejam à altura da responsabilidade mas infelizmente não tenho essa resposta.
Disse que era importante estar à altura desses desafios e blindar a democracia. Nestes primeiros meses que António Costa leva no novo mandato como primeiro-ministro, o Governo tem somado casos, casinhos e várias polémicas. Sobre o mais recente, considera que Miguel Alves, secretário de Estado Adjunto de António Costa tem condições para se manter no cargo?
Considero que o caso oferece muitas dúvidas e que tem de ser esclarecido. E ao oferecer muitas dúvidas também oferece dúvidas sobre a capacidade de Miguel Alves continuar como secretário de Estado Adjunto. Não esqueço, no entanto, que no caso do agricultor Luís Dias, que estava a fazer greve de fome em frente à residência do primeiro-ministro, quem conseguiu desbloquear essa situação foi Miguel Alves. Acho que foi uma ação política importante. Mas o caso, se continuar não esclarecido, é um caso que parece bastante sério e que o Livre quer ver esclarecido.
O Livre usou um anúncio para contratar assessores para a Câmara de Lisboa mas, dos nove escolhidos, só um não pertence ao partido. Não conseguiram encontrar mais ninguém competente fora do Livre?
Pelo contrário, encontrámos gente muito competente, o problema é que entraram no Livre depois. As pessoas fizeram o concurso, provavelmente já estavam alinhadas com os valores do Livre porque senão não quereriam trabalhar com o Livre.