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Nem que muito quisesse, Nuno Markl nunca teria a arte necessária para negar as evidências: “1986”, a série que criou e que escreveu em conjunto com Filipe Homem Fonseca, Ana Markl e Joana Stichini Vilela, não é autobiográfica mas tem muito da vida do argumentista e humorista. A história maior é a de um grupo de amigos, estudantes do liceu, e as respectivas e obrigatórias aventuras e desventuras. O cenário é o ano de 1986, não só nos aspectos formais mas também (e muito) no conteúdo, dos hábitos sociais à vida política. E cada uma das personagens conta com a sua própria trama, com detalhes e traços de personalidade que Markl procurou incluir no argumento com dedicação.
Foi precisamente no dia da estreia da série (vai passar na RTP 1 todas as terças, às 22h, num total de 13 episódios) que Nuno Markl esteve na redacção do Observador para uma conversa sobre a série, a inspiração para a histórias e as personagens e um obrigatório desfile de memórias.
Hoje estreia na RTP a série “1986”, série criada pelo Nuno Markl. Nuno, não escreveste a série sozinho…
Não, não, não quis enlouquecer. Recrutei pessoas para enlouquecerem comigo, para enlouquecermos todos em conjunto.
Apresenta-nos a série, como é que isto aconteceu, como é que tiveste a ideia…
Há várias maneiras de explicar. Eu cheguei à conclusão que esta série é uma espécie de ajuste de contas com o passado. Esta versão de mim, que é o protagonista de 1986, sendo outra pessoa diferente, é o nerd que consegue beijar a miúda.
Claramente tu não conseguiste beijar a miúda…
Não, não. Então tinha de resolver esse passado. Mas à parte disso, isto começou com um esboço de uma longa, ou curta, metragem — não tinha bem a certeza do que é que aquilo ia dar. Esse esboço foi escrito há muito tempo, em 2001, uma coisa a que eu chamei “O Videoclube”, porque eu sentia que assim como o “Cinema Paraíso” homenageou os clássicos filmes de gerações passadas, eu acho que as pessoas de 40 e de 30 e tais têm uma relação muito romântica com o VHS. E a ideia de fazer uma história passada nos anos 80, num videoclube… eu achava a história incrível. Iria ser uma história de amor, uma vez mais baseada na minha própria existência: tive uma paixoneta pela funcionária do videoclube do meu bairro, que nunca confessei — pode ser que ela agora perceba! E então achei que era o palco ideal para criar uma historinha, um videoclube, a maneira como os filmes dizem alguma coisa sobre quem os vê. Esse era o ponto de partida, mas depois aquilo ficou a marinar imenso tempo, porque na altura em que escrevi isto eu nem sabia bem a quem é que se apresentava propostas para fazer filmes. Já estava a trabalhar nas Produções Fictícias e estava, na altura, a fazer a “Paraíso Filmes”.
[o trailer de “1986”]
E, agora passados estes anos todos, havendo pelo meio a “Caderneta de Cromos” na Rádio Comercial (que foi aquela espécie de museu dos anos 80) com influências disso tudo aquilo se misturou na minha cabeça e eu pensei: isto, se calhar, dá um fresco sobre os anos 80 em que o videoclube é só uma parte. E pareceu-me uma coisa muito sedutora esta história passar-se em plenas eleições presidenciais Soares-Freitas. Foram as eleições mais pop da história e foi um “derby” presidencial incrível, o país estava dividido ao meio na segunda volta das eleições. Eu achei que as tensões geradas por essas eleições, que pararam o país, se refletissem, também, na dinâmica de um conjunto de alunos da escola, de namoros e de pais e filhos e professores. Então a série é sobre isso, como aquele grande acontecimento, que teve uma afluência às urnas tremenda e histórica, como é que aquele clima tão carregado influi nos cidadãos de um bairro — um bairro que, curiosamente, é muito inspirado em Benfica e São Domingos de Benfica, que eram as duas freguesias onde eu me movia. E grande parte da série foi filmada nesses sítios, também, para dar mais autenticidade à coisa.
Foi na minha escola secundária que fizemos as cenas da escola. Uma escola que está na mesma, para grande alegria nossa e para grande fúria dos professores que continuam a dar lá aulas. Eu e o Henrique Oliveira [realizador] chegámos lá e ficámos: “ahhhh isto está tal e qual como nos anos 80”. E eles [os professores] diziam: “pois, pois estááááá”. Mas para nós foi ótimo. Mas, pronto, o ponto de partida foi este. Depois foi escrever com a minha irmã e com o Filipe Homem Fonseca e com a Joana Stichini Vilela a alimentar-nos com páginas dos jornais da altura — ela fez um trabalho extraordinário, que já tinha feito no LX80, no livro, e foi a partir do livro que eu achei que ela seria a pessoa ideal para fazer isto. E todo o processo foi muito divertido, do princípio ao fim.
Já agora, como é que se chamava a funcionária do clube de vídeo?
Eh pá, eu nunca soube o nome dela… E na altura não se usavam chapinhas com o nome. Eu era ridículo, eu nem coragem tinha para lhe perguntar o nome. E, depois, os filmes que eu alugava estavam muito dependentes da impressão que eu achava que lhe ia provocar. Portanto, pornografia estava fora de questão… E tinha de ter algum cuidado porque, por exemplo, o “Predador” sim — era um blockbuster…
E era uma coisa de homens…
Claro. Mas se calhar o “Desaparecido em Combate” era uma coisa mais chunga. Já não seria tão bom para engatar miúdas.
“Sexta-feira 13”?
“Sexta-feira 13″… pá eu acho que os filmes de terror são ótimos para isso. Ainda estávamos a falar disso hoje na rádio, com os meus colegas, como os filmes de terror são bons para o romance. Têm de ser bem escolhidos, um Halloweenzito, um filme com um psicopata que vá atrás de um grupo de pessoas. O “Hostel” não aconselho. Com o “Hostel” já não vai haver sexo nessa noite.
É um bocadinho óbvio que gostas de trabalhar esta coisa dos anos 80…
Sim, mas se calhar agora, depois disto… Eh pá, temos ideia para mais uma temporada disto e está na altura de fechar a loja. Depois de fazer a “Caderneta de Cromos”, eu estava tão esgotado que parecia o Matthew McConaughey no “Interstellar”, quando ele está preso entre o espaço e o tempo, atrás da estante… eu dizia: “Não, pá, tenho de sair desta época, quero voltar para o presente”. Mas achei que se havia forma de voltar a pegar neste tema era através da ficção.
[Veja no vídeo o best of da entrevista na redação]
Um dos nossos colaboradores, o Pedro Vieira, pergunta: isto do mercado da nostalgia não se esgota?
É a tal teta, a teta nostálgica, em que todos gostamos de mamar — que foi o título que a Time Out escolheu numa entrevista que me fizeram. Há várias maneiras de chuchar na teta nostálgica. E não isolem esta frase, por favor… Tu podes chuchar na teta nostálgica para obter lucro e isso justifica que continuem a haver toneladas de compilações tipo “The Best of the Eighties”, porque aquilo não pára de vender. E, depois, podes chuchar na teta nostálgica por uma questão de aconchego e de uma certa ideia de… “eh pá, os anos da inocência eram tão bons…” Há muita gente que quer ficar lá — eu gosto de ir lá e voltar. Quando me dizem que os anos 80 estão na moda, há uma explicação muito simples para isso: as pessoas que estão agora em idade de fazer coisas, de fazer séries e rubricas de rádio, há muita gente que está nessa faixa etária. E se pensares bem, nos anos 80 grande parte dos filmes que havia eram sobre os anos 60: tinhas o “Bom dia, Vietname”, tinhas “Os amigos de Alex”… Ou seja, a geração que está no poder, em posição de fazer coisas, está sempre a olhar para a sua infância. E agora já são os anos 90: estreou agora há pouco tempo uma série na Netflix que já é sobre os anos 90, vai ser o próximo passo. Portanto, o que se passa é que estamos sempre a olhar em busca, se calhar, de um sentido para a nossa existência e, também, algum aconchego, deve ser um misto dos dois.
Santamaria, peta zetas e séries de TV: está aí a vingança dos anos 90
E tu, claramente, já encontraste os dois.
Não, ainda não encontrei um sentido para a minha existência, acho que se calhar não vou encontrar. Mas é divertido e é aconchegante de vez em quando ir lá ver como é que eram as coisas. E, para mim, é sempre um pouco terapêutico explorar o que foi a minha infância e a minha juventude. E “1986” foi muito interessante para eu, no fundo, dissecar e refletir, por exemplo, sobre a minha relação com o meu pai, que é uma das coisas que são abordadas nesta série, apesar de aquela personagem não ser o meu pai e a personagem principal — o Tiago — não ser eu.
O Adriano Carvalho interpreta um crítico de cinema comunista, o meu pai era um historiador de arte comunista. Eu escolhi crítico de cinema porque estou mais à vontade para escrever sobre cinema do que sobre história da arte. Ia dar-me muito trabalho ter de pesquisar sobre história da arte. Mas, também, porque quando comecei a pensar sobre aquela personagem comecei a pensar em como o meu pai era tão de se fechar dentro do seu universo da história da arte, do xadrez, as grandes paixões dele, eu noto que tenho esses traços dele. E não tenho de lhe apontar o dedo e dizer: “ah tu não falaste tempo suficiente….” Eu adorava o meu pai, e adoro, isto de forma alguma quando falo do meu pai quero aqui dizer que foi um mau pai, mas ele era muito metido no seu mundo — e eu sou muito metido no meu mundo. Portanto quando começo a fazer uma série em que estou a pensar nele, eu começo a dar-lhe, também, traços meus e começo a perceber que somos todos iguais, é uma linhagem.
“Possivelmente tinha votado no ‘bochechas’ para derrotar o ‘facho'”
Já falaste um pouco sobre isto mas porque é que escolheste este ano, em particular, e não outro? Foi por causa das eleições?
Foi mesmo por causa das eleições. Eu acho que se era para fazer uma série passada nos anos 80, ter esse pano de fundo que parou o país de uma forma tão intensa, achei que era o ideal. Achei que se não tivesse essa base sólida das eleições presidenciais seria uma série que andaria muito mais a boiar por memórias dos anos 80 e iria tornar-se, se calhar, muito mais uma espécie de museu dos anos 80 — que é um buraco em que tendemos a cair. E este primeiro episódio que vai hoje para o ar, de todos os da série, é capaz de ser aquele que está mais carregado de referências mas é mais para estabelecer o universo em que as coisas se passam.
Mas o que nós tentámos fazer — e eu já defini isto, de uma certa maneira — é que isto não é uma série sobre a coleção aeronáutica das pastilhas Gorila, mas é uma série sobre pessoas que por acaso fazem a coleção aeronáutica das pastilhas Gorila. O facto de termos essa base sólida das presidenciais — e o quão divertido foi aquilo, os hinos de campanha, os chapéus de palha do Freitas, o autocolante do sol com “o Soares é Fixe”. Foi tão incrivelmente folclórico aquilo, e refletiu-se de uma maneira tão direta na minha relação, por exemplo, com um dos meus bullies na escola, que era o Guterres… um abraço, Guterres, que será feito dele? Não confundir com o outro Guterres [António, antigo primeiro ministro], trata-se de uma pessoa diferente e nem sequer era da família. Mas eu lembro-me que os pais dele eram apoiantes do Freitas e do “Para a frente, Portugal”. O meu pai era comunista e estava a apoiar o Mário Soares, e agora, à distância isso é ouro cómico. Teres uma pessoa a quem o Álvaro Cunhal disse: “Tapem a cara do candidato e ponham a cruz”. O meu pai sofreu imenso, na altura, por causa disso. E, agora, à distância, é muito engraçado pegar nisso deste ângulo cómico: o engolir do sapo.
O leitor João Catarino pergunta: “Olhando para a forte adesão popular da campanha presidencial de 1986, como é que explicas que em 30 anos grande parte desse entusiasmo tenha desaparecido da nossa sociedade?”
Eu chego a várias conclusões sobre esse assunto — e não quero estar a dizer que são as certas. Mas, por exemplo, há um episódio da série, lá mais para a frente, que é inteiramente, ou quase todo, sobre o debate final, entre o Mário Soares e o Freitas do Amaral, que foi moderado pelo Miguel Sousa Tavares e a Margarida Marante. Tivemos de ir ver aquele debate, do princípio ao fim, até porque a história vai acompanhando as coisas que se vão passando no debate. A conclusão a que eu estava a chegar, na altura, é que era uma era de políticos com uma estatura e uma educação e uma pinta incríveis. Aqueles dois eram, claramente, os Beatles e os Stones. Eram duas forças grandes e dignas. E quem diz estes diz outros, nos outros partidos todos. E, por outro lado, a isso acresce o facto de hoje vivermos num mundo super-disperso, há tantos estímulos a acontecer.
Os miúdos de hoje querem lá saber de política, querem saber de youtubers e querem saber de tudo pela rama. Não estou a dizer que isto é mau mas é simplesmente a forma como as coisas funcionam. É um mundo muito mais superficial, saltita-se pelas coisas, seja música, seja cinema, seja política. E, portanto, “1986” é, no fundo, uma espécie de tributo à era em que ligávamos às coisas, em que tínhamos disponibilidade para acompanhar umas eleições, acompanhar o Top Disco, todas as semanas, para saber quem é que estava em primeiro lugar. Eu lembro-me: a minha relação com o Top Disco era incrível porque eu torcia para que os discos que eu tinha estivessem lá no topo. Isto é ridículo. Eu era um consumidor daquelas colectâneas “Jackpot 86”, era um saco de gatos de música porque saltavas de Jesus and the Mary Chain para a “125 Azul” dos Trovante. Tudo acontecia naqueles discos. E eu lembro-me que pedia, no Natal, que me dessem esses discos — o primeiro de todos há de ter sido o de 84 — e lembro-me de ver que no Top estava o “Jackpot 84” e eu “woooooowooooooo, estou tão contente com isto”! Mas vivíamos tudo mais intensamente, porque tínhamos menos coisas e prestávamos mais atenção a cada uma delas.
Já agora: na altura, terias votado em quem?
Cresci num ambiente de esquerda, mas sou bastante apolítico na realidade, mas possivelmente tinha votado no “bochechas” para derrotar o “facho”, que era o que eu ouvia o meu pai a dizer e decalquei para a série… há frases que o Adriano de Carvalho diz que são literalmente decalcadas de coisas que o meu pai disse. E portanto eu se calhar… eu nunca fui um filho de “os meus pais são de esquerda eu agora vou virar aqui de direita”, não, nunca tive essa reacção de ser do contrário do que eram os meus pais, e se calhar tinha votado no [Mário] Soares.
Ainda a propósito da nostalgia dos anos 80, e isto vem de uma conversa que tive oportunidade de ter com o Miguel Araújo, uma pessoa que fala e versa muito sobre os anos 80…
E que está na banda sonora desta série. # aproveito para dizer o disco estará à venda no dia 16…
Os anos 80 foram a última década em que existiu uma identidade comum? Falavas há pouco de que gerações seguintes já não se prendem a nada, andam sempre de moda em moda… os anos 80 foram o último momento em que havia uma identidade comum em Portugal?
Talvez. Eu não gosto nada de “no nosso tempo é que era”, odeio isso e acho que há muitas coisas boas no tempo que hoje atravessamos, mas se calhar havia algo mais próximo disto. Se calhar não há uma perda, se calhar a identidade mudou completamente em relação ao que era… mas claramente há logo uma diferença muito grande em relação a um tempo em que eu me lembro da ordem das faixas de um disco desde a primeira até à última. E hoje, mesmo dos discos de que gosto, não te sei dizer a ordem das músicas. Se calhar sei dizer as do Purple Rain do Prince, da primeira à última faixa, mas não te sei dizer, nem sei de cor… sei de cor poucas músicas. Às tantas até mesmo esta geração está contaminada pelo ritmo alucinante em que o mundo vive. Se calhar era mais fácil na altura pelo ritmo diferente a que tudo andava, se calhar encontrávamos uma identidade.
Hoje há uma identidade, mas dá a sensação de que andamos sempre agarrados a uma locomotiva e nós estamos ali a correr. Mas sou completamente contra a ideia de que “no nosso tempo é que era”. E sempre que alguém me diz isso como que concordando comigo… Ou, na “Caderneta de Cromos”, quando alguém me dizia “boa, Markl, no nosso tempo é que era”… Eu fico “calma, não é nada disso que estou a dizer”. Eu vejo a felicidade do meu filho a lidar com coisas tão contemporâneas como o Minecraft ou os youtubers, que ate deu uma polémica, bastante conhecida, mas… eu gosto de acreditar que é só diferente… claro que há coisas que podemos pensar que desfrutámos mais naquela altura, mas se calhar simplesmente hoje desfruta-se de outra maneira, o ADN está a mudar.
[veja aqui a entrevista a Nuno Markl na íntegra]
“A Super Gorila é do tamanho de uma Gorila”
Como é que andavas vestido 1986? Não escondas nada.
É só olhares para a figura que o Miguel Moura e Silva faz no episódio de hoje e vez logo o tipo de coisa que eu usava. Eu era muito adepto do anoraque, calças de bombazina e era bastante trágico, mas sentia que, apesar de querer ser mais cool, tinha consciência que se quisesse vestir uma coisa diferente não ia bater certo, vou-me sentir desconfortável, por isso é que depois aconteceu aquela barraca de quando finalmente consegui convencer a minha mãe a comprar-me um blusão branco parecido com o Don Jonhson… e de facto eu saí com aquilo à rua e foi desastroso… não, não , o Guterres não disse nada, eu era grande adepto de anoraques… não era adepto, mas achava que era inevitável que eu me vestisse daquela maneira. E eu olhava para aqueles betinhos com as roupas de marca e pensava “quem me dera ser assim, normal”.
Quantas pastilhas Super Gorila conseguias comer ao mesmo tempo?
Mais uma coisa que está a ser abordada na série. Eu consegui comer um pacote inteiro de pastilhas Gorila.
Nã…
A série esta cheia de diálogos completamente inúteis, ma eu achei que era importante que eles tivessem conversas normais da época e… há um episódio em que realmente se debate qual é a diferença entre uma Gorila e uma Super Gorila e a conclusão a que eu cheguei é: nenhuma. Simplesmente, se puseres uma ao pé da outra percebes que a Super Gorila é mais pequena e mais alta, a Gorila é mais alta e mais achatada. E o facto de ser achatada faz parecer que a Super Gorila é mais pequena…
Então fomos todos enganados…
Eu acho que se tu esmagares uma Super Gorila ela fica exatamente do mesmo tamanho que uma Gorila. Se calhar é chocante o que estou a dizer… mas no entanto havia a mística de que a Super Gorila é que rebentava com os queixos. Eu era particularmente fã das ácidas, havia umas de morango e outras de laranja e eu lembro-me que uma vez fiz uma bola de seis Super Gorila de laranja e senti claramente aqui o maxilar a desencaixar algumas vezes… mas consegui, tinha de o fazer para me sentir um homenzinho… não adiantou grande coisa para a minha vida na verdade.
António Rebelo pergunta se a série “Freaks and Geeks”, embora num espaço temporal diferente, foi uma das influências…
Absolutamente, houve várias referências. O “Freaks and Geeks” foi uma delas. Eu adoro essa série e foi uma pena que tivesse sido cancelada, teve só para aí 10 episódios, embora ainda possa ser vista na Netflix acho eu. Mas acima de tudo fomos influenciados. Nós nunca tivemos um “Pretty in Pink”, o nosso “Sixteen Candles” ou o nosso “Breakfast Club” e portanto parte da maneira como eu vendi a coisa à RTP foi: “E se o John Hughes tivesse acompanhado as eleições presidenciais em Benfica”. Portanto, foi uma homenagem a esses clássicos daquilo que se chamava a teen angst e portanto é uma das grandes influências. Mas sem dúvida que “Freaks and Geeks” também. Entretanto, assim que o trailer começou a passar muita gente me disse “hey, estás a imitar os Goldbergs”. Epá, eu os Goldbergs nunca vi, mas sei que é sobre uma família nos anos 80, o problema é: todos nós tivemos família nos anos 80… eu estou a falar da minha… e que acho que é bastante diferente dos Goldbergs. Se formos por aí, temos de dizer que “Stranger Things” é uma imitação dos “Goonies”. Portanto não, os Goldbergs não, mas assumo completamente as nossas referências, os filmes do John Hughes, um episódio idealizado pela minha irmã que é quase sobrenatural, o próprio título do episódio é “Juntos em Sonhos Elétricos”… e portanto quisermos prestar homenagem à cultura popular que nós víamos na altura, filmes, séries de televisão, do Duarte e Cia. também, há assim um caldeirão de referências.
Esta série de certeza que vai ter muito público que se recorda dos anos 80 e quer revê-la…
O público que não quiser ver novelas na concorrência, um pequeno David a lutar contra Golias…
A série também vai conseguir cativar os mais novos, numa altura em que temos YouTube, boxes que andam para trás, Snapchat… eles também vão querer vê-la?
Temos uma vantagem. O “Stranger Things” abriu um caminho interessante, há muitos miúdos de hoje que adoram o “Stranger Things”. Eu todas as manhãs tomo o pequeno almoço num café ao pé da Rádio Comercial e estou lá a escrever e há muitos alunos do liceu Maria Amália, aliás, o Miguel Moura e Silva, protagonista desta série, é um dos alunos do Maria Amália, mas havia duas miúdas que estavam numa mesa e estavam a discutir animadamente o “Stranger Things” e de repente para lá do “Stranger Things” uma estava a falar dos Pink Floyd que adora e que o pai lhe mostrava e há outra que desabafava e diz “epá, eu adorava ter vivido nos anos 80”. Eu pensei cá para mim: “Óptimo público para a série”. Pensei quase em levantar-me e em dizer “não perca”, dia 13…
Acho que por um lado há um fenómeno de moda dos anos 80, que de facto são as pessoas que cresceram naquela altura que estão agora a fazer coisas. Mas por outro lado acho que a história está cheia de sentimentos intemporais e de relações entre pais e filhos que tanto funcionariam em 86 como agora, espero que esse lado também peguem também consiga encontrar o seu público hoje. Isto não foi idealizado para ser só para pessoas barrigudas na meia idade. Se conseguir cativar miúdos… e foi muito interessante trabalhar com os atores jovens que fazem o papel dos cinco protagonistas porque todos eles, á partida, não foi preciso explicar-lhes muita coisa, tinham referências muito presentes dos anos 80, foi preciso afinar algumas coisas, explicar-lhes coisas do género “pôr um disco de vinil a tocar, é assim que se faz” ou “é assim que se sintoniza um rádio a pilhas”, tudo coisas com as quais não cresceram, o que é absolutamente natural. Entre este compromisso desta ideia idílica que se calhar alguns jovens têm do que eram os anos 80 e ao mesmo tempo o lado intemporal da relação entre pais, filhos, professores, colegas de escola, pode ser que consiga encontrar um público mais jovem também.
Qual é a tua série preferida de sempre?
É muito difícil. Neste momento acho que é um empate entre “Os Sopranos” e o “Breaking Bad”. E logo a seguir o “The Wire”, talvez. Talvez “Os Sopranos” esteja no topo de tudo, aquilo mudou a minha vida e ainda hoje gosto de ver episódios ao calhas porque aquilo é mesmo incrivelmente espectacular. Soube há uns dias que o David Chase vai fazer um filme prequela e estou em pulgas para isso. Fiquei doido com “Os Sopranos” do primeiro ao último episódio. Mas depois fiquei doido com o “Breaking Bad”, também.
Naquela década, o que é se via na televisão, o que é fazia mais sucesso?
Para já acontecia uma coisa que hoje era impensável que era: séries boas, sei lá, a “Balada de Hill Street” em horário nobre, seria impensável ter hoje um policial sempre em horário nobre. Mas de facto o país parava para ver isso. É tudo tão diferente, a própria formatação da cabeça das pessoas, aquilo que as pessoas gostavam de ver. E no entanto se tomassem a iniciativa de pôr uma série em horário nobre seria mortífero para as audiências. As pessoas estavam mais ligadas à ficção. E como tínhamos só dois canais acho que genericamente papávamos tudo. Eu lembro-me de ver o “TV Rural”. Porque sabia que a seguir ia haver o tempo dos mais novos e desenhos animados. Mas às vezes chegava antes e via o engenheiro Sousa Veloso ali a falar. Eu sei coisas sobre o míldio, que a juventude não sabe. E sobre determinadas pragas das culturas porque via o “TV Rural”. Tudo nos interessava, de certa maneira, na televisão, que é uma coisa que hoje é mais improvável. Sabe-se que novelas funcionam e que reality shows também funcionam. Uma das coisas que eu adorei desta administração da RTP foi ter ousado meter documentários, ser de facto alternativa, pensar que de facto o campeonato da RTP não é o da SIC e da TVI e que se calhar o serviço público passa por teres documentários sobre como vai ser o futuro, acho que é muito interessante.
“Sou um tipo super romântico, escrevo amor na boa”
Há pouco falavas de quando foste vender a ideia da RTP. Compraram a ideia com facilidade? Inevitavelmente o facto de estares envolvido terá pesado na decisão…
Lá dentro dividiam-se as opiniões. Eu agora posso falar, acho que ele não vai levar a mal…
Agora já está feito…
Agora já está feito… Por exemplo, nas primeiras reuniões, lembro-me do Virgílio Castelo, que estava a chefiar o gabinete de ficção, estar um tanto ou quanto cético dada a minha experiência mais em sketches e em escrever pequenas unidades narrativas. Lembro-me de termos uma discussão muito interessante em que ele dizia: “Epá, oh Markl, tu achas que consegues escrever amor?”, que bonita é esta frase. E eu disse: “Epá, Virgílio, eu acho que se calhar consigo”, e depois rodeei-me também do Filipe e da minha irmã Ana. Antes que as pessoas pensem “isto está tudo garantido” e “está lá o Nuno Artur Silva, com quem ele trabalhou muitos anos”, não. A série teve que ser submetida a aprovação, teve que ser debatida e eu tive de provar que, de facto, era capaz de escrever amor. Não é que a série seja só romântica, é uma série também cómica e também dramática — muita coisa acontece naquela série.
Foi muito interessante que, depois de termos despachado os 13 guiões, recebi uma chamada do Virgílio Castelo e pensei: “Será que ele acha que eu consigo escrever amor?”. Ele estava entusiasmado e disse: “Epá, sim senhor, parabéns. Isto está ótimo”. Isto serve para provar que, de facto, não podemos dar nada como garantido. Vou fazer 47 anos e tenho 20 e tal de carreira a escrever para televisão, mas ainda hoje sinto que tenho que provar coisas, portanto nada está garantido e eu acho que isso é bom. É bom termos de estar um bocado não comodamente sentados, mas assim à beirinha do assento. Acho que é interessante.
E escrever amor foi a parte mais difícil?
Eu sou um tipo super romântico, escrevo amor na boa… mas não. O mais difícil foi… E foi isso que me fez pensar “eu tenho de chamar pessoas para me ajudarem nisto”… Eu tinha escrito, no ano passado, um filme, o “Refrigerantes e Canções de Amor”, e escrever uma história de hora e meia, acho que isso consigo fazer. O que me estava a assustar era escrever uma história em 13 partes, aquela ideia de que tudo tem de ter um arco grande do primeiro ao último episódio e depois tem que haver arcos mais pequeninos lá dentro, isso aterrorizava-me. Portanto pensei na minha irmã, que é ótima, porque é criativa e ao mesmo tempo tem uma grande noção de estrutura e partilha as minhas memórias também. O Filipe tem uma grande experiência já a escrever ficção televisiva, e portanto foram as duas pessoas ideais para escrever a história comigo. Depois mais a Joana, com a parte mais de época. Sem eles acho que não teria conseguido levar isto, tinha enlouquecido.
Eu só me lembrava de histórias alucinantes, tipo a história da Rosa Lobato Faria a escrever uma novela sozinha, acho que foi a “Palavras Cruzadas”, e como aquilo quase a tinha levado à loucura. E eu pensei: “Eu posso tentar escrever isto, tem muito menos episódios que as ‘Palavras Cruzadas’, mas se calhar vou enlouquecer”. Isto é demente. E de facto o que acontecia muitas vezes era eu entusiasmadíssimo com uma ideia nova que me surgia e a minha irmã a puxar-me à terra a dizer: “Mas se fazes isso não faz sentido o que está no terceiro episódio”. E eu: “Ah claro, bolas!” Imagina como seria se eu não tivesse a minha irmã e o Filipe. Era a série mais desconexa e incoerente da história…
Era uma espécie de “Twin Peaks” em 1986…
Ainda por cima o Virgílio teria dito: “De facto não sabes escrever amor, rua!”
Mais uma questão de um leitor. Muitos deles estão desejar-te boa sorte para a série, alguns já perguntam quando vem a segunda temporada…
Temos uma ideia para a segunda temporada, mas agora… vejam esta para haver segunda…
O John Aguiar pergunta: “Que filme dos anos 80 é que influenciaram este trabalho?”
Parte deles foram estes que eu disse, o “Pretty in Pink”, o “Sixteen Candles”, o “Breakfast Club” — que eu recomendei aos atores todos que revissem –, mas depois há mais. Encontras ao longo da série referências a coisas como “O Pesadelo em Elm Street”, “Os Goonies”, “Electric Dreams”. É uma grande misturada de referências da altura ao nível de filmes.
Depois o que eu achei que foi mais interessante e novo para mim, mais do que filmes, foi pegar em canções e criar playlists no Spotify para dar aos atores, para eles perceberem bem como eram as personagens deles. Eu adorei fazer isto, adorei mesmo. Esta é a personagem do Tiago, esta é a personagem da Marta, esta é a da Patrícia, do Gonçalo, do Sérgio… a do Sérgio, que é o jovem fã de heavy metal, foi o Filipe Homem Fonseca. O Filipe é das grande sumidades portuguesas em heavy metal e fez uma playlist de centenas de canções incríveis que, para mim, que sou uma pessoa não versada em heavy metal, muitas delas soam todas muito iguais umas às outras. Eu com o heavy metal tenho uma relação que pareço um avô, tipo: “Isto é muito barulho”, mas gosto de rock. E todos os atores embrenharam-se naquela playlist, foi muito giro. Eu acredito mesmo que consegues perceber quem são as pessoas através das músicas que ouvem, acho mesmo que é uma boa maneira.
Foi a melhor formação que tiveram, porque a maior parte deles não viveu naquela altura…
Sim, mas todos tiveram pais que viveram naquela altura e acho que tiveram um grande enquadramento ainda antes da série. Quando tens pais que cresceram nos anos 80, acho que estás sempre a receber estímulos deles. O meu filho, a dada altura, começou a gostar de “Stranglers”, por exemplo…
E tu ficaste preocupado…
Eu comecei a mostrar-lhe “Stranglers” porque estava muito cansado de ouvir as coisas que ele ouvia no carro e então comecei a mostrar-lhe outras coisas. É muito giro nós fazermos esta espécie de lavagens cerebrais às nossas crianças.
Na sequência do que estavas a falar há pouco dos youtubers… Não és o maior fã de youtubers, mas são um pouco um produto inevitável nossos tempos…
Claro que sim. Na verdade, de repente acho que se generalizou muito aquilo que acho dos youtubers. Eu acho que os youtubers são pessoas muito diferentes umas das outras e há uns que acho mais graça do que outros. O que me fez confusão foi muito especificamente um episódio que aconteceu com um deles, que o meu filho estava a ver. Eu nunca tive problemas que o meu filho visse youtubers. Isto são os heróis da atualidade e acho que eles, na verdade, desbravaram um terreno novo.
Lembro-me de ter feito um texto sobre youtubers ainda antes desta questão ter acontecido em que eu dizia isso. Acho que eles estão a abrir novos caminhos, que podem ser bons até para pessoas que já são mais consagradas e, de repente, começam a olhar para a net a pensar “se calhar está aqui um caminho mais interessante até que a própria televisão hoje em dia”. O que fez alguma confusão — mas, ao mesmo tempo, eu consigo arranjar uma explicação para isso — é alguns deles não terem noção de que grande parte do público deles são pessoas com a idade do meu filho.
O que aconteceu foi que o meu filho estava a ver um deles e logo naquele momento ele estava a dar dicas para a vida e uma das dicas era “quando a tua mãe te acordar de manhã para ires para a escola manda-a pó…”. Eu aí achei que tínhamos de fazer uma pausa naquilo e tive uma conversa com ele que, de forma nenhuma, foi a proibir que ele visse. Basicamente o que lhe disse foi: “Pedro, pensa na mamã. Tu conseguias imaginar-te a dizer isto? Achas que ela merece ouvir uma coisa destas?” Ele achou que não e começou a chegar a conclusões de que, se calhar, quando a mãe nos vai acordar de manhã para ir para a escola, mandá-la… Epá, “ela carregou-te nove meses”, não mandem as mães para nenhum sítio. E foi isso que gerou a controvérsia toda, porque de resto, eu acho que é todo um novo universo que é respeitável e não podemos olhar para aquilo como “são todos iguais e é tudo mau”.
Há uns que fazem um trabalho ótimo, há outros que se calhar acho que fazem um trabalho parvo, mas isso é como tudo. Também na televisão há muita coisa diferente a acontecer. É um fenómeno interessante, acho só é que eles, às vezes, deveriam ter mais consciência de que grande parte do público deles não tem 18 nem 19 anos, são miúdos para quem eles são heróis e acho que mandar mães para determinados sítios não é assim muito fixe.
E se o teu filho quisesse ser youtuber?
Ele já diz que quer ser youtuber e, tendo em conta o que alguns deles ganham, acho que é ótimo, porque anseio o momento em que consiga viver às custas do meu filho. Portanto espero que ele venha a ser youtuber, que faça bons vídeos — já agora — e que ganhe rios de massa para eu deixar de trabalhar.
“Tínhamos piores penteados mas não foi uma má época”
“O Homem que Mordeu o Cão” hoje ainda é notícia ou o mundo tornou-se tão insólito que o bizarro é o novo normal?
Às vezes há notícias n'”O Homem que Mordeu o Cão” que já são a normalidade, mas mesmo assim eu gosto de acreditar ainda no quão bizarra é a espécie humana. Sou surpreendido todos os dias com coisas incríveis. Ainda hoje de manhã estava a falar de um pequeno excerto de um programa matinal em Inglaterra, em que os entrevistadores estão a falar com uma senhora todos de pé — eles costumam estar sentados.
Depois percebi qual era o drama da senhora, que estava em rodapé um citação dela, e de facto era “tenho medo que o meu rabo rebente”. Ela tinha feito uma operação às nádegas e acho que aquilo ficou com um excesso de silicone. Então o drama dela, e que ela levou à televisão naquele horário, é que ela não se pode sentar porque tem medo que as nádegas rebentem. E eu adorei aquele momento em que aqueles dois entrevistadores, em vez de estarem sentados nas suas cadeiras, levantaram-se por uma questão de cortesia, não vá o rabo da senhora explodir. Todos os dias chegam motivos interessantes de bizarria, mas sim o mundo está cada vez mais bizarro e estranho, às tantas começa tudo a dissipar-se. Vai haver um dia em que “O Homem que Mordeu o Cão” vai ser um noticiário normal.
Uma pergunta encomendada pelo Rui Miguel Tovar. O que é que te marcou mais: a lesão do Bento no México 86 ou a morte do Obi Wan Kenobi, uns anos antes?
Epá, obviamente que foi a morte do Obi Wan Kenobi. Não percebo nada de futebol e um dos meus medos a escrever esta série — e isto vinha à conversa muitas vezes nas preparações e brainstormings — era: nós temos que falar sobre futebol. Mas, de facto, nenhum de nós é um super perito no futebol daquela época. Há um diálogo de futebol que acontece lá pelo meio e que foi improvisada pelo Gustavo Vargas, que faz o papel do pai da Marta, da Laura Lutra. É ótimo o futebol estar representado nesse bocadinho. No entanto, umas das nossas intenções, se houver segunda temporada, é abordar o México 86. Toda uma eventual segunda temporada será passada no verão. Acho que é muito giro que a segunda série do “86” possa ser uma espécie de “Verão Azul” com o campismo, com… Temos várias ideias para a história. Mas acima de tudo, gostávamos de abordar o México 86 até porque é mais seguro de abordar do que estar a abordar tricas entre Benfica, Sporting e Porto porque se não começamos a levar no toutiço. Assim estamos a falar da seleção.
Vocês viram o México 86 em tua casa?
O meu pai era fã de futebol e, portanto, vimos o México 86. Prefiro o Espanha 82 porque adorava a mascote, o Naranjito. Aliás, eu adorava tanto essa mascote que ela faz uma aparição no “86”, apesar de se passar em 86 e não em 82. Mas consegui arranjar maneira de meter lá o Naranjito.
Uma pergunta por email da Susana Ramos: os anos 80 são tempos mal compreendidos, por serem marcados por uma aura pirosa, ou foram a grande transição para isto que somos hoje, uma geração que viveu tanto com a internet como sem ela?
Quando ela diz uma “grande transição para isto que somos hoje”, é uma frase que tanto pode dar para o bem como para o mal. Acho que não. Acho que hoje em dia toda a gente está a compreender mais os anos 80 e… epá, má moda possivelmente aconteceu em todas as épocas. OK, naquela altura talvez fosse, de facto, um exagero. Os penteados e tudo isso. O interessante nos anos 80 foi o quão poucas causas de jeito havia naquela altura para a nossa geração. Eu olhava sempre para a geração dos meus pais e para o Maio de 68 e para o 25 de Abril e olhava para a minha geração e pensava: “Não, não tínhamos nada, nada”. Epá, tínhamos: “Olha, saiu o Fizz Limão. Uh”. Era um bocado isso. “Ei, estreou a nova série — não se dizia temporada, na altura — do ‘Duarte e Companhia'”. Portanto, nós vivemos muito mais centrados na cultura popular porque não tínhamos assim uma causa objetiva que merecesse a nossa luta e isso é um bocado deprimente por um lado mas por outro lado faz de nós…
Privilegiados?
Se calhar, se calhar. Epá, um bocado. Mas ficámos muito mais atentos à cultura que nos rodeava. Nesse aspeto, não foi mau. Tínhamos piores penteados e não tínhamos causas, mas não foi uma má época.
Mas há bocado estavas a dizer que não és nada de pensar: “Naquela altura é que era, aquele é que era um bom tempo”. Mas há algumas coisas em específico das quais tens saudades, tirando a rapariga do clube de vídeo?
Tenho saudades do tempo que dedicávamos às coisas. Acima de tudo, é isso. Tenho saudades de, de facto, pegar num disco de vinil. Nós agora lançámos a banda sonora do “86”, vai sair sexta. De facto, não só em CD e em digital, vai estar no Spotify e na Apple Music, mas também em disco de vinil para ter aquela sensação de, de facto, ouvirmos um disco de uma ponta à outra. Porque é muito lixado fazeres uma espécie de zapping entre faixas num disco de vinil, quando ouvias um disco de vinil punhas aquilo no prato e sentavas-te e ouvias aquilo do princípio ao fim… e eu acho que tenho saudades de estar concentrado em coisas, eu hoje em dia adoro ver uma quantidade louca de séries mas às tantas estou a perceber que estou a deixar umas para trás porque entretanto estreou outra e outra e outra…
E entras em paranóia?
E eu acho que é ótimo que haja uma grande variedade de boa cultura popular para nós absorvermos, mas ao mesmo tempo todo este excesso de coisas faz com que eu sinta que é um stress, que estou a perder muita coisa… e possivelmente tenho que abraçar essa ideia, de que eu vou morrer sem ter visto muitas séries.
Vai acontecer.
É uma época que nos pressiona muito a estar a par de tudo. Imagina, eu partilhei um vídeo qualquer que encontrei no youtube que achei giro e de repente recebo uma data de comentários a dizer “eh, isso já e da semana passada” e eu “mas qual é o problema disso?”. E isso faz-me um bocado… é a única coisa que eu diria que me faz assim mais impressão na maneira de viver de hoje por oposição a da minha juventude… era o tempo que tínhamos para explorar as coisas.
Falaste das facilidades dos anos 80, até que ponto, perguntou Leonardo Abreu no Facebook, até que ponto isso está relacionado com a entrada na União Europeia e o tempo das chamadas vacas gordas?
Nós abordamos algumas dessas coisas. De repente, o fascínio das caixas de multibanco. As caixas de multibanco resumem um bocado o espírito de loucura, também da entrada na União Europeia. Parecia “agora até já chove dinheiro das paredes, é incrível, há dinheiro em todo o lado”. Sim, houve claramente esse espírito, acho que teve muito a ver com isso. E sim, está relacionado sem dúvida, nós não abordamos muito a entrada na União Europeia a não ser subtilmente porque queríamos estar muito centrados na luta presidencial, mas sim, houve essa espécie de boom de vaca-gordice — uma palavra que eu inventei agora — que nos fez pensar “agora é que isto vai ser um paraíso” e no entanto uma coisa que é engraçada é que mesmo no tempo das vacas gordas a palavra “crise” nunca esteve afastada do nosso léxico. Eu percebi isso aqui há tempos quando estava a fazer um documentário para a RTP sobre comédia, que foi “As Divinas Comédias” que passou na RTP… era com o Bruno Nogueira e com o Raul Solnado e eu fiz a pesquisa para isso e depois fiz a voz-off e de facto toda a comédia portuguesa, até mesmo nessa fase está la a crise metida sempre… é um tema favorito, portanto acho que sempre foi tudo assim uma ilusão.
“Toda a gente ouvia o ‘Tarzan Boy'”
Costumavas andar com um Walkman? E qual é que era a música que costumavas ouvir mais?
Costumava andar com um Walkman. Eu lembrei-me do incrível que era as esponjas dos auscultadores. Tinham umas esponjas cor de laranja. As esponjas dos Walkmans… parecia que podíamos tomar banho com aquilo, tirar e pôr gel. Foi o iPod da altura, e o iPod hoje em dia já é uma coisa também de outra altura. Mas a ideia de transportar a música… Há uma canção do Cliff Richard, como é que se chama aquela canção… sobre toda sobre a maravilha que são os Walkmans. É lindo ouvir aquilo hoje. Acho que toda a letra da canção é ele a dizer “isto é espectacular”… E o videoclip é ele a patinar com aquilo nos ouvidos, é maravilhoso… Portanto sim, ouvia muito o Walkman.
Esta série aborda uma altura também da minha vida em que não sabemos bem do que é que gostamos, estamos no meio de muitas coisas, estamos no meio da infância e de sermos jovens adultos e de sermos adultos, não se sabe bem ao que vamos e isso na cenografia da série… Olhas para o quarto, por exemplo, da personagem principal, do Tiago, e vês que há cartazes dos Smiths a coexistir com a roupa de cama do Star Wars e com o castelo de Grayskull dos Masters of the Universe, portanto há uma mistura, ele não sabe bem se é uma criança se é um adulto.
O título do primeiro episódio é “Tarzan Boy” e tem a ver com essa mítica canção dos Baltimora. E de facto o “Tarzan Boy” marca para mim uma espécie de fronteira entre o meu gosto por música má que toda a gente ouvia e o momento em que comecei a ouvir outras coisas… marca ali aquela ténue linha. Portanto digo-te que nesta altura mais ou menos, lembro-me de insistir muito numas férias em Lagos, eu já contei esta história… Estava um calor incrível e eu estava a passar com a minha mãe ao pé de uma montra onde estava o single do “Tarzan Boy” e toda a gente ouvia o “Tarzan Boy” e eu disse à minha mãe “por favor, compra-me isto” e a minha mãe, muito sabiamente, disse “não, estamos em Lagos, vamos ter de fazer a viagem para Lisboa, está muito calor, o vinil derrete”. E então não gastou dinheiro no “Tarzan Boy”. E foi ótimo que tivesse acontecido porque pouco tempo depois eu descobri os Talking Heads e portanto a minha vida mudou…
Estás a ver, há sempre hipótese… Acho que a canção do Cliff Richard é a “Wired for Sound”
“Wired for Sound”, epá sim! Esta canção é incrível, “Wired for Sound” claro….
https://www.youtube.com/watch?v=V57eqtN2K7E
Tens pena quando olhas para o teu filho e pensas que ele nunca vai ter a liberdade que se tinha nos anos 80, nos anos 90… de desaparecer uma tarde inteira sem ter que levar com os sms dos pais a toda a hora? Ou por um lado até ficas contente porque assim podes controlá-lo?
De facto há uma certa nostalgia dos tempos em que podíamos andar por esse mundo fora alegremente, mas é uma boa questão… Eu sou muito pai galinha, entro muito em pânico, a Ana [Galvão] é uma mãe muito mais descontraída, porque puxa-o muito mais para o exercício físico, e para… epá, eu lembro-me de o estar a ver com a Ana a subir rochas na praia da Parede, super escorregadias, e de eu estar tipo “ai, ai, ai, ai, ai, ai, ai, ai” e ela estava descontraída, “olha para ele, ele está na boa”, e eu “ai, ai, que ele vai cair”. Portanto, eu fico muito dividido nisso, acho que uma das coisas que a gente celebra neste série e que também vês no “Stranger Things” era uma coisa que de facto acontecia na altura que era a capacidade de haver grupos que iam explorar coisas. Vivíamos assim em bandos e tínhamos os nossos grupos de amigos e hoje em dia esta tudo… está cada um no seu Facebook ou no seu multiplayer, cada um na sua casa com a sua consola, portanto perdeu-se muito desse convívio de grupo. E eu tenho pena de que ele não vá experimentar isso de maneira tão intensa como nós naquela altura.
Mas em garoto tu eras assim um bandido?
Não, não, não, epá não era nada, mas eu era sinistro de certa maneira. Por exemplo, eu era o tipo que fazia rir colegas meus na sala e depois eles é que eram expulsos, disso eu arrependo-me terrivelmente. Mas eu era bastante pacato e até gostava muito de estar em casa e de estar fechado no meu mundo a desenhar e a ouvir rádio, eram coisas que gostava de fazer, não era nada bandido. No entanto, lembro-me de uma vez em 83, quando o Fonte Nova abriu em Benfica, e a livraria Castil… não sei se se lembram da livraria Castil, lá no meio, que era toda em paredes de vidro. Lembro-me que eu e um colega meu pensámos “e se roubássemos um livro?”. Eu senti-me super perigoso e sexy. E então entrámos lá e ele pegou num livro e pirou-se e eu fui a correr também com ele, fomos os dois a correr, naquela de “a adrenalina disto”… E eu lembro-me da explosão de adrenalina, cometemos um crime. E o livro não era grande coisa, era “previsões do signo aquário” e nem sequer nenhum de nós era do signo aquário. Foi completamente inútil… mais valia ter roubado um livro de jeito, a novelização do “Star Wars” ou do “Regresso ao Futuro”… Signo aquário… “Para que é que tirámos este?” “Epá, foi o primeiro foi o que eu consegui.” Ainda bem que a livraria Castil já fechou, porque hoje já não me podem cobrar isso. Imagina agora à conta desta transmissão eles apareciam: “Olhe, desculpe, o livro? Agora com o passar dos anos tem de nos pagar para aí mil euros”.
O Alexandre Borges deixou uma pergunta e esta é a pergunta mais importante. A grande dúvida dos anos 80: Samantha Fox ou Sabrina?
Samantha Fox, claramente. Claramente Samantha Fox. Porque ela tinha aquele single… OK, a Sabrina tinha a sua música “Boys, Boys, Boys”, mas a Samantha Fox tinha um élan acrescido porque tinha o “Touch Me” e essa canção, numa altura em que nós tínhamos muito pouco acesso a pornografia, em que tínhamos de pagar por ela… A revista “Gina” custava 500 paus, 500 paus, e nós não tínhamos… Havia um que milagrosamente comprava e depois estávamos na escola a ver e a guardar na memória aquelas imagens para mais tarde recordar… E a Samanta Fox gravou esse single, que era um single em que ela gemia e suspirava imenso. E eu então fabriquei a minha própria pornografia à conta dessa canção… O que eu fiz foi: gravei da rádio o “Touch Me” e depois fiz uma edição, tinha um daqueles rádios com dois decks de cassetes e fiz uma edição que era só com os suspiros da música todos colados uns aos outros. Então fiquei com meia hora da Samanta Fox a suspirar. Era o que a gente podia arranjar na altura. Epá, isto é tão doentio, quando conto isto em voz alta… As pessoas vão achar que eu sou tão inconveniente…
Tinhas posters no teu quarto?
Não, não. No meu quarto tinha cartazes de filmes, mas não tanto assim de miúdas, de grandes estrelas, essas estavam guardadas na minha imaginação.
Manuel Dias tem uma pergunta que se calhar faz sentido, podes ter-te lembrado de alguma coisa deste género quando estavas a fazer a série: escolhe uma coisa que desapareceu e que gostavas de trazer de volta.
Deixa-me cá pensar… Eu tenho genuínas saudades das bombocas originais, desde o tempo da caderneta de cromos… E dizem-me “Ah, mas hoje no IKEA arranjas”. Não é a mesma coisa, não é a mesma coisa… A bomboca original tinha o tamanho perfeito, estas hoje são muito pequenas, aquela era assim de um tamanho era incrível, havia vários sabores havia bombocas de morango, aquilo era fabricado pela Imperial, que ainda hoje existe, e eu desde o tempo da caderneta de cromos que imploro ao pessoal da Imperial, “Façam bombocas outra vez, as clássicas bombocas, naquela caixinha comprida”. Era ótimo. Eu adoraria resgatar as bombocas.
A propósito de bombocas, veio mesmo a calhar, quando soubemos que vinhas cá começou toda a gente a falar sobre os anos oitenta e uma das coisas incontornáveis foi precisamente as bombocas e surgiu uma grande questão, fraturante até: eras daquele género que comia as bombocas de uma vez ou eras daqueles tipos irritantes que comiam o chocolate todo à volta e depois deixava a parte branca para o fim, enquanto toda a gente ficava à tua volta a salivar?
Não, não, não, é um compromisso entre essas duas coisas e eu demonstrei isso no “Cinco para a Meia Noite” no outro dia porque me serviram esta espécie de bomboca, que não é bem bomboca mas que se vende hoje em dia. Na verdade, eu pegava na basezinha de bolacha da bomboca, a parte de cima ia inteira, de uma vez, ingeria o chocolate e o creme tudo misturado e depois no fim ia a bolacha. Era um compromisso entre essas duas maneiras de comer bombocas, mas adorava a maneira como aquilo se desfazia na boca, era um creme muito leve… Aquilo devia ser tóxico, nunca percebi bem de que é que aquilo era feito, mas era incrível. O chocolate era muita bom, era incrível.
O que é que gostavas mais — ou menos — nas raparigas dos anos oitenta, os penteados ou as roupas coloridas de licra?
Na altura eram só miúdas. Eram miúdas. Eu não avaliava a roupa, a roupa só começou a avaliar-se anos depois, na altura eram só miúdas e eu passava o meu tempo apaixonado por miúdas e sem conseguir quebrar a barreira para lhes dizer isso. E depois tinha aquele problema que aliás também está abordado na série que era o facto de elas olharem para mim como “ahhh, és tão amigo” e eu “raios”. “És como um irmão para mim”, “raios partam”… Portanto, eu não avaliava muito a história das licras. Eram miúdas que se vestiam como se vestia na altura, que era todo um pacote de época.
Tive algumas paixões como as que são vistas nesta série e depois usava técnicas que surgem hoje também no primeiro episódio, como por exemplo eu perceber que uma determinada era fã de Supertramp. Eu não conhecia assim tanto a obra dos Supertramp e lembro-me de comprar uma colectânea e de me embeber nas canções dos Supertramp para depois poder ter um motivo de conversa com ela. Mesmo assim continuava a não haver porque eu era super acanhado, mas se eu conseguisse andar pelo menos na escola com um disco dos Supertramp ou a dizer em voz alta “olha quem lançou agora uma colectânea muito boa foram os Supertramp”, podia ser que isso pegasse..
E que marcasses pontos.
Sim, sim, sim…
“A orca é uma coisa que ainda hoje me pedem muito”
Qual foi a personagem de um filme de animação que mais gostaste de fazer e, não querendo fazer aqui um show forçado: podes imitar essa personagem?
O que me deu mais gozo fazer foi também o que me deu mais trabalho fazer que foi no “Divertidamente” o Bing Bong, o amigo imaginário. Não sei onde é que fui buscar aquela voz nem sei se ainda hoje consigo recuperá-la, mas foi o Carlos Freixo, que é um mítico diretor de dobragens, que me levou até àquele sítio. Ao mesmo tempo tem o nariz meio tapado porque o gajo tem tromba e foi muito intenso. E depois, dado o final… Não quero ser spoiler porque pode haver pessoas que ainda não viram o filme… mas por esta altura se calhar já prescreveu e já se pode ser spoiler…
Acho que sim.
É um amigo imaginário que desaparece obviamente da mente da miúda assim que ela começa a crescer. E para mim foi um choque vê-lo desaparecer, fiquei arrasado com aquilo. O Carlos Freixo, que estava a dirigir a dobragem, já tinha visto aquilo milhares de vezes porque já tinha feito a dobragem das outras personagens todas. Eu lembro-me de ficar arrasado quando ele desaparece. Eu fico tipo “então mas é assim? Então mas eu morro assim?”. E ele: “Sim, está feito, está bom, vamos almoçar!”. Mas adorei fazer esse. Mas é uma coisa que eu adoro fazer, é quase como voltar à infância, de facto, fazer dobragens.
Foi mais difícil que a orca?
A orca é uma coisa que ainda hoje me pedem muito, não é? Nasceu nos “Contemporâneos”. Foi um sketch não escrito, que nasceu à hora de almoço, estávamos a fazer uma pausa para almoçar nas gravações dos “Contemporâneos” e eu estava distraidamente em frente ao Bruno Nogueira, a fazer aquele som e ele olhou para mim e disse “O que é isso?”. Eu disse “epá, não sei, acho que é uma imitação de orca que eu faço”. E então nessa mesma tarde: “Pá, vamos já fazer um sketch sobre isso”. E não tinha texto. Fomos só fazer aquilo e ainda hoje há muitas pessoas que me pedem na rua “imita a orca!”. Dantes parava para imitar a orca e o pessoal “Eheheh”. E hoje quando tenho muito trabalho já começo a incorporar isso de uma maneira muito descontraída. Às vezes vou a ter conversas de trabalho com pessoas pela rua e alguém diz “Markl, imita a orca!” e eu estou a dizer: “Não, porque realmente como eu te dizia temos que marcar reunião” e imito a orca pelo meio. Consegui incorporar a orca na minha existência. Possivelmente vou ser recordado por isso, posso andar a escrever imensas coisas, mas o que vai ficar é o tipo da orca e o tipo que fez um anúncio em que gritava “solta o javali” também. Ainda me gritam hoje.
Se calhar muito gente pergunta se és da família da Meghan Markle.
Ah, não, mas já me falaram disso, sim. Mas ela tem mais um “e”, portanto não posso tirar dividendos desse suposto parentesco. Não somos relacionados, não.
O Ricardo Ribeiro faz uma pergunta sobre os videojogos e sobre o ZX Spectrum. Já falaste sobre séries, sobre filmes, falta falar sobre vídeo jogos.
O ZX Spectrum aparece também no 1986. Há um episódio que é bastante centrado numa tentativa de programar uma música no ZX Spectrum. Tivemos alguns obstáculos, curiosamente, para usar imagens do ZX Spectrum porque acho que todos aqueles jogos, ou grande parte deles, têm direitos e então havia ali alguns problemas. Mesmo assim acho que a gente conseguiu safar a coisa. Mas o ZX Spectrum foi mais uma vez um testemunho do tempo que tínhamos, porque os jogos demoravam… Hoje em dia todos achamos “os jogos demoram para aí uma hora a entrar”… Não, não era assim tanto tempo, o tempo passava com outro ritmo, mas lembro-me de que havia alguns que demoravam seguramente uns 10 minutos. E de facto não tínhamos mais nada que fazer. Eu lembro-me de aguentar heroicamente o [som do do ZX Spectrum] e de estar ali em frente à televisão [som do do ZX Spectrum] a ver a imagem a formar-se. Ainda me lembro do som que fazia a imagem a formar-se, que era tipo [imita o som] e depois vinha a cor e fazia [imita som]. Lembro-me de tudo isto, coisa inúteis que eu tenho cá na cabeça.
Mas lembro-me do quão importante foi o ZX Spectrum, e na minha vida foi importante também por uma razão: eu não tinha. Os meus pais não compraram o ZX Spectrum, tínhamos um vizinho super entusiasta que… era muito fácil levares o ZX Spectrum de casa em casa, era um computador muito pequenino… e lembro-me de que esse nosso vizinho, que era o Vicente, chegou a nossa casa entusiasmadíssimo com o ZX Spectrum e ligou-o à nossa televisão e aquilo para mim foi uma epifania. Mas depois os meus pais nunca me ofereceram um ZX Spectrum e o que aconteceu foi que, em 86, a Junta de Freguesia de Benfica organizou um concurso para um cartaz para uma feira que ia haver, a Feira de Benfica. E eu pensei: “Pá, eu gosto de desenhar, se calhar vou fazer aqui um cartaz”. E desenhei um cartaz e ganhei o primeiro prémio do cartaz da Feira de Benfica e o primeiro prémio era um Spectrum, não um 48k, mas um 128k, que era a bomba que toda a gente invejava. Eu de repente via toda a gente com um 48k e eu “porra, vocês não sabem o que é jogar o ‘Match Day’ em 128k”.
O “Match Day” em 128k tinha som de público. E eu lembro-me de que toda a gente dizia “isto é incrível, o som do público!”. E agora passados estes anos todos fui a um daqueles emuladores de Spectrum que há na net e quis reviver a experiência maravilhosa de ter o “Match Day” 128 com o público a aplaudir. E aquilo que nós achavámos que era som de público é literalmente isto, quando o jogo começa há o árbitro e o que se houve é [imita som do público do ZX Spectrum]. E na altura aquilo era tipo “o público ao rubro! É incrível”. Não, não é. Mas isto mostra bem como tudo era tão relativo e como tudo muda à distância. Depois ia muito a uma loja num centro comercial no fim da minha rua, que já está hoje fechado, que era o centro comercial Igoper, ao pé da estação de Benfica, que tinha uma loja de jogos de Spectrum, e aquilo… A pirataria era uma coisa aceite, era assim que funcionava, chegavas à loja e dizias “quero o Match Day 2”, “sim, senhor, vamos aqui fazer” e então ficavas ali à espera de que eles copiassem a cassete. Ficavas ali ao balcão um bocadinho, ele estava ali [imita som da cassete a copiar]. “OK, 200 paus”, 200 escudos era quanto custava um jogo.
No mesmo ano, curiosamente, acho eu, em que foi lançado o Commodore Amiga.
Acho que sim, acho que sim. Eu tive o Commodore Amiga um bocadinho mais tarde, mas o Spectrum foi sempre assim a grande paixão.
Às vezes dou por mim a pensar que os humoristas vivem um bocado todos num daqueles liceus americanos, não é? Há as estrelas, há os melhores alunos intelectuais, os nerds e os javardos. É um bocado assim, não é?
Eu acho que isso é assim em todo o lado. Acho que tem muito a ver com a tendência humorística de cada pessoa. E se fores a ver, historicamente, sempre houve humoristas das mais variadas tendências e linguagens. Rapidamente percebi que o humor político não era a minha praia e acho que a minha vida mudou no momento em que comecei a ver o Seinfeld a falar de micro-coisas, tipo dos pacotes de amendoins nos aviões, esse tipo de coisa. E percebi que a observação, aquilo a que eu costumo chamar a “observação do cotão do umbigo”, é muito interessante porque são coisas que são intemporais.
Na verdade há coisas que foram motivo de piada nos anos 60 e 70, que continuam a ser motivo de piada agora e continuarão a ser porque, de facto, nós somos uma espécie muito perturbada e ruim. Eu estou cada vez mais niilista, acho que somos completamente passados dos carretos e acho que isto não pode levar a nada de bom. No entanto mais vale rir-mo-nos disso. Portanto, a minha escola é mais essa da observação. Depois há toda uma vasta gama de humores a coexistir uns com uns outros. Mas se calhar sim, é quase como se o mundo da comédia fosse uma gigantesca sitcom, em que há vários tipos a conviver, sim.
Para terminar, uma pergunta da tua irmã. “Nuno, onde é que está aquele órgão Yamaha com 100 sons que convenceste a mãe a comprar em vez de uma bicicleta para mim?”
Essa história é de facto chocante. o que se passou foi: houve uma altura, já não me lembro bem qual é que foi o enquadramento, em que a nossa mãe disse “está na altura de vocês começarem a andar de bicicleta”, e eu pensei “OK, se calhar tudo bem, sim senhor”. E então fomos a um hipermercado e eu vejo nesse hipermercado um órgão Yamaha com imensos sons e músicas e presets e pensei “não é a bicicleta, é isto, é isto que nós temos que levar para casa”. E então consegui convencer a minha mãe de que ali é que estava o futuro, é verdade. Eu sou quase um Jean-Michel Jarre. E, portanto, a minha irmã foi na conversa, foi tipo “eu gostava de ter uma bicicleta, mas pronto, OK”. E de facto, nós só percebemos de música na ótica do utilizador, não de quem faz a música. Nós temos memórias muito gratas de saber de cor uma canção que estava lá metida e que eu lembro-me ainda hoje da melodia e nós cantamos aquilo, que é [imita a canção], lembro-me disto.
O que aconteceu foi que esse órgão foi usado num programa chamado “Manobras de Diversão”, que era com o Marco Horácio, o Bruno Nogueira, o Manuel Marques, a Carla Salgueiro… E esse órgão foi usado nesse programa e foi para as Produções Fictícias e de repente desapareceu das nossas vidas e eu não sei dizer quem é que tem esse órgão hoje. E é com grande dor que digo à minha irmã “epá, não sei onde é que está esse órgão”.
Podes escolher uma câmara e fazer um apelo.
Se alguém tem esse órgão que o devolva, porque nós temos muitas saudades dele. A última vez que o vi foi, de facto, a ser tocado pelo Marco Horácio num sketch que foi feito na Feira do Livro, mas acho que não é o Marco Horácio que o tem. Não sei o que é que aconteceu a esse órgão, tenho muitas saudades dele. A minha irmã pôs o dedo na ferida.
Obrigado
Obrigado. Há que dizer o seguinte: a RTP vai fazer uma coisa maravilhosa, e de certa maneira histórica. Os episódios vão passar semanalmente às terças-feiras às 22h e as pessoas podem vê-los a esse ritmo, mas para as pessoas que estão habituadas à Netflix e binge-watching, que não podem esperar, os 13 episódios vão estar disponíveis na RTP Play e portanto as pessoas podem vê-los nessa plataforma já esta madrugada fora, se não tiverem mais nada que fazer. Mas se calhar eu até aconselhava a que as pessoas tentassem recuperar o ritual da espera, até porque este primeiro episódio acaba com um cliffhanger que eu acho… as pessoas não vão conseguir esperar.